Por Wanderson Chaves

Pablo Polese, em resenha ao meu livro A questão negra: a Fundação Ford e a Guerra Fria (1950-1970), ecoou uma reclamação recorrente: o texto não traz, nas afirmações que faz, as posturas em que se reconhece a voz do autor; não tem programa explícito, não faz “considerações finais”, não conclui. Faço mea culpa porque há implicações prejudiciais que me cometo, quando escrevo assim, nas leituras mais comuns que recebo sobre este texto: a) o livro é uma crítica ao imperialismo norte-americano que referenda visões implicitamente freyrianas sobre o Brasil; b) o livro é uma crítica ao imperialismo norte-americano em que se ataca implicitamente o legado atribuído à “pós-modernidade”, sua herança política e seus avatares intelectuais. Digo que ambas as leituras não procedem, inclusive nas abordagens um pouco mecanicistas, nada relacionais, sobre o imperialismo como fenômeno geopolítico.

Estou considerando, não sendo freyriano ou “florestanista” e recepcionando simpaticamente toda crítica anti-stalinista de esquerda, seja de que tradição, que há 8 coordenadas fundamentais, não apenas para A questão negra, mas para esse debate temático, de forma ampla. Seriam:

1. A exemplaridade norte-americana

As políticas raciais norte-americanas vêm se globalizando desde o pós-guerra e de maneiras inéditas desde os anos 1970. Os impactos das várias propostas circulantes desde então redefiniram este mesmo tópico definitivamente no Brasil e, no turning point mais recente, desde os anos 1990. Pierre Bourdieu e Löic Wacquant, em “As artimanhas da razão imperialista” (1998), estão corretos nessa avaliação, muito embora ingenuamente equivocados com relação ao modo como esta dinâmica se estabeleceu no nosso país. É o que podemos argumentar nos livros A questão negra, meu livro solo, e em Guerra Fria e Brasil, livro meu em coautoria com Elizabeth Cancelli e Gustavo Mesquita, especialmente no que diz respeito à questão do hub providencial no qual Florestan Fernandes se tornou.

2. O racismo é um princípio de dominação

O racismo é uma linguagem sobre o poder. As técnicas que engendra realizam a função primordial de configurar permanentemente as desigualdades como constitutivas, inscritas na própria diversidade humana. Racionalizações racistas conferem pretensamente estabilidade à instabilidade que as desigualdades produzem dentro do dinamismo das sociedades modernas. Mas as diferenças físicas são apenas um entre os possíveis objetos dessas racionalizações, tendo sido, por outro lado, já também bastante notado que o racismo, o classismo e até mesmo o sexismo, tendo mecanismos análogos, podem operar reciprocamente.

Os racismos aplicam, em sua realização, técnicas de administração de natureza universal, mas de extermínio material ou simbólico contra os chamados “elementos estranhos”, aqueles que, através da construção imaginária, são considerados, em qualquer nível, ameaças à coerência “ontológica” das sociedades. Conforme as convicções racistas, os elementos estranhos seriam tudo o que perturba a lógica de ordem e a analogia supostamente observável na cultura entre sua história de formação “filogenética” e a expressão “psicossomática” de seus portadores, em suma, as fantasias sobre relações de causa, unidade e estabilidade entre corpo e civilização.

3. Resistências às estratégias antirracistas

A partir dos anos 1970, as principais tradições antirracistas do pós-guerra, a “antitotalitária” (liberal à direita e ao centro) e a “anti-imperialista” (à esquerda), convergiram de forma quase unificada para uma agenda de trabalho chamada de “promoção da igualdade de estima e respeito”. Esta agenda, ainda vigente, para sustentar a aceitação civil, moral, cultural e afetiva das “minorias” entre seus objetivos, privilegia como metas a sanitização da linguagem, o treinamento das sensibilidades e o melhoramento das maneiras públicas em um ataque organizado à construção de estereótipos raciais.

O saldo dessa estratégia que se toma pela mobilização para a construção de estereótipos positivos, pretendendo, com a reconstrução de discursos e imagens raciais, renovadas formas de inserção social e de relacionamento interpessoal, é a realização de um salto civilizatório na expressão dos comportamentos na esfera social, aliás seu âmbito fundamental de aplicação.

A lógica de dominação e desumanização do racismo se reinventa à medida que as linguagens nazifascista e colonial de suas principais vertentes vão sendo combalidas através de uma defesa republicana e democrática dos princípios de representação e de diversidade. As formas racistas emergentes desde então estabilizam sua disposição intrínseca de controle dos corpos como um “direito à diferença”, nos termos que o antirracismo das últimas décadas ajudou a implantar, mas frisando-se a diferença como uma forma de “natureza” a ser preservada.

Os “novos racismos” auferem de sua sofisticação e limpeza de expressão, adquiridos da articulação aos atuais princípios de correção e moralidade públicas, um salvo-conduto para realizar-se como propostas renovadas de produção da desigualdade humana e política.

Assim, se, nas últimas décadas, houve melhora na percepção da chamada “diversidade”, houve também um progressivo rebaixamento da agenda antirracista antitotalitária da “igualdade de oportunidades”, focada no estabelecimento de condições generalizadas de “livre competição”. Além disso, houve o virtual abandono do que a agenda antirracista da “igualdade de condições”, a proposta democrática de esquerda de combate à desigualdade, pretendia na transformação das formas de participação política, constituição e partilha do exercício de poder.

4. Os limites das políticas de representação

As “políticas de diversidade” foram uma das principais respostas norte-americanas dos anos 1970 para a estabilização das pressões, então vindas de praticamente todos os pontos da sua sociedade nos anos 1960. Elas eram produto de uma busca, especialmente ancorada no centro político (democrático e liberal), para que três orientações fossem equacionadas na resolução de conflitos sociais: a dos direitos humanos, de maneira a assegurar mínimas garantias individuais de proteção, especialmente contra a violência, e que fossem passíveis de realização mesmo na ausência de um Estado de Direito, em sociedades ou circunstâncias não-democráticas; a da tolerância, para que o estabelecimento de novos parâmetros de civilidade e de bom convívio, a construção de barreiras morais, culturais e éticas à expressão dos comportamentos, ao mesmo tempo sustentasse a proposição de uma forma “não-assimilatória” de inclusão social das “minorias” e protegesse também a esfera política de conflitos mais graves; e a do multiculturalismo, um novo princípio de governo, no qual toda forma de diferença humana estivesse representada nas posições material e simbolicamente importantes, na definição do que configura poder e status positivo nas sociedades.

A representação tornou-se central no ideal de pluralismo que reconfigurou as grandes reivindicações dos anos 1960. Porém, enquanto houve nos EUA povoamento de carreiras profissionais e de cargos de poder e status anteriormente segregados, e da mesma maneira no Brasil, mas de forma ainda inicial e incipiente, também houve um rebaixamento na atenção às frações de classe e renda não credenciadas para estas altas posições de representação. Ganhava importância uma agenda de moralização pública e de direitos civis, mas era rebaixada a importância da equidade e da igualdade como metas fundamentais. Temos assim dois fenômenos simultâneos e relacionados: a elevação dos níveis de representação racial e, na elevação dos níveis globais de desigualdade, desemprego estrutural, encarceramento e mortes violentas, uma crescente indiferença pela condição social dos negros em geral.

A reorganização de processos de produção e circulação de riqueza tem produzido globalmente, desde meados dos anos 1970, pessoas cada vez mais precárias ou simplesmente inúteis como força de trabalho. E o racismo contemporâneo produz principalmente indiferença, silenciamento, mas também formas de apagamento que chegam ao extermínio, uma vez que o racismo já é mais que uma forma de disciplinamento de certas modalidades de trabalho e de variedades de trabalhador. Ele renova-se, sobretudo, como um modo de lidar, por essa razão, com corpos tornados supérfluos, e assim, com pessoas virtualmente transformadas em párias e criminosas.

Se a indiferença é um elemento constituinte do horizonte social de boa parte das pessoas negras, são profundos, em decorrência, os efeitos desta na sua vida psíquica. A “dupla consciência” é um destes efeitos, afetando em especial aqueles que se credenciaram para serem incluídos pelo trabalho qualificado ou para vivenciarem formas mais profundas de inserção social sem as obterem plenamente. Trata-se de uma situação de liminaridade, “não-lugar” em que uma condição de “outro”, outsider, é construída incessantemente, mesmo que a impressão simbólica ou imaginária seja de participação ou integração. Não por acaso, muitas das propostas de representação das “minorias” expõem a problemática curiosa na qual os negros, se pobres e ainda mais se mulheres, partilham a condição de serem duas, três vezes representados e disputados na esfera política e duas, três vezes limitados na capacidade de serem e de agirem. Pois é do caráter das modalidades de representação em que funções de formação de elites e de lideranças é pronunciado e dominante que os sentidos da condição de cidadãos das pessoas representadas sejam definidos em disputas sobre o seu corpo, pensamento e lugar no mundo, dados para além delas.

Entre a exclusão e as possibilidades de um modelo de representação limitado a ser categoricamente metafórico há um ambiente político e psicossocial complexo e conturbado, em que os negros são pressionados por seus ressentimentos e raiva crescentes e pelos limites tácitos colocados pelo horizonte mesmo de uma política mais progressista, seja nos EUA ou no Brasil. Os negros vivenciam — de forma especialmente aguda nesse agrupamento fluido da muito mal compreendida “Classe C”, situada entre a pobreza e a base da classe média — uma condição na qual o aproveitamento de novas oportunidades de formação, socialização e de ascensão significaram, surpreendentemente, uma nova condição de marginalização. Eles não representam, nem são representados.

5. O politicamente correto: um acordo tácito de estabilização de conflitos

O “politicamente correto” emergiu de um acordo tácito sobre como dar fim aos distúrbios dos anos 1960. Definiu-se um mecanismo de acomodação e conciliação, estabelecendo o que não deveria ser objeto de debate aberto ou de exposição pública, originando nova etiqueta para exercitar um veto moral ao que fosse considerado impróprio, indigno ou ultrajante. O domínio dessa nova orientação era sobretudo o da linguagem e o da performance relacional, e funcionava como um procedimento técnico de administração de ressentimentos: estes eram deixados em latência ou represados, já que a celebração ou apologia à nova concertação, um pluralismo composto de elites representantes da diversidade, potencialmente canalizava e transformava sintomas de insatisfação.

As bases do “politicamente correto” têm assentamento na ética da tolerância, posicionando tanto quanto possível conflitos de natureza pública no interior da esfera social e da vida íntima e privada. Não sem certa tensão, permite-se contornar questões delicadas conforme normas de cortesia, privacidade, discrição e, em última instância, silenciamento. A pretendida estabilidade almejada na “política de diversidade” tinha sustentação nesse ideal de correção política e se complementava à disposição em evitar ou contornar questões que ameaçassem essas conquistas, nada desprezíveis, é verdade, mas realizadas ao custo de pequenos ganhos conjunturais.

Formas renovadas de racismo logo surgiram dentro do domínio fundamental do “politicamente correto” que é a performance, articulando-se como linguagens superficialmente compatíveis com normas de expressão antirracista. Estes discursos racistas partiram da direita mais autônoma, dominaram seu campo institucional e organizam-se na tentativa de demonstrar a “hipocrisia” radical que as atuais normas de moralidade pública têm produzido ao desvirtuarem certas formas enraizadas de percepção da “realidade”. Eles pretendem, nesse trabalho justiceiro de “desmascaramento”, metas reacionárias e recuperar o que consideram estar sendo reprimido e obliterado nas suas formas de ser e estar. Eles têm sido bem-sucedidos nesse esforço.

Essa crítica de direita tem desfigurado pequenas conquistas civilizatórias alcançadas na expressão do comportamento público e estabeleceram um entendimento popular de que o “politicamente correto” deu-se de certa maneira como “recalcamento”. Além disso, o que a acusação de “hipocrisia” também contém é a senha dada pela direita para desembarcar do acordo setentista, no qual conflitos dos anos 1960 tiveram seu encerramento em um quase top-down. Frente a esse desembarque, as posições de centro e de esquerda mantém-se problemáticas. As esquerdas, sintomaticamente as principais derrotadas pelos projetos de estabilização dos anos 1970, pois importantes arautos desse espírito de reconciliação que selou a emergência do “politicamente correto”, hoje participam, graças à essa adesão, tanto de modo conservador na defesa de ganhos passados quanto como barreira contra conflitos atuais. Enquanto agrupamentos de “nova direita” sustentam no agressivo vandalismo às normas morais progressistas o convencimento de que a “mudança” implica uma quebra do pacto de estabilização engendrado, por exemplo, no “politicamente correto”, as esquerdas, comparativamente, são fundamentalmente uma força de pacificação.

Serão engolidas pelo novo agendamento de direita, em um confronto entre propostas de governo, aquelas que não se elaborarem, inclusive esteticamente, como gestos de mudança, dificuldade radical diante da nostalgia e melancolia coligadas no modo presente de se acessar as tradições de esquerda. Expressão de um profundo corte geracional na sociedade brasileira, frações de classe e renda como a da “Classe C” hoje colocam-se na condição de serem o domínio onde os atrativos das propostas de mudança são mais mobilizadores e onde se desenvolve a mais intensa disputa, menos para torná-la protagonista e mais para relacioná-la a alguma nova grande narrativa política que melhor a silencie. Daí o busílis: há indiferença ou disciplinamento das vozes desse laboratório de debate e impulso de inovação política e social povoado principalmente por jovens negras e negros, em posturas de centro e de esquerda, e há propaganda de soluções militaristas, moralistas e ultraliberais tornando-se atrativas como inovadoras. Há Marielle Franco. E há Fernando Holiday.

6. Antirracismo, instrumento de transformações universalizantes

Os segmentos liberais globalmente dominantes do antirracismo têm se institucionalizado desde a década de 1970 em torno de grupos altamente especializados de profissionais de disciplinas acadêmicas e de direito. Eles exercem atividades de lobby, litígio jurídico e pesquisa quantitativa e qualitativa de alto nível centrando seus interesses e formando seu público fundamental particularmente em altas esferas governamentais, políticas e empresariais. A atuação desses segmentos ampara a sustentação de propostas de “reforma racial” em que os direitos humanos, a tolerância e a diversidade, como princípios de uma boa governança, se estabelecem e se justificam legítimos quando são capazes de corresponder a resultados de tipo “perde-e-ganha” e “soma zero”. A defesa dessas propostas demonstra que a execução das políticas deve consistir, para eles, em um ato simbólico de transferência, no qual benefícios usufruídos por brancos são transferidos aos negros como medida de “reparação”, não necessariamente (e alternativamente) de “redistribuição”. Na alavancagem dessa opção pela “reparação” tem-se, particularmente, uma eficiente exploração de sentimentos de “culpa branca”. Extraídos do imperativo ético-moral da “empatia” e do apelo a gestos de grandeza e renúncia, este recurso, até o momento tendencialmente circunstancial, está particularizado na “crítica dos privilégios”.

Falando dos EUA, particularmente, e como exemplo precursor, a crescente e generalizada ofensiva contra as políticas sociais lá, acabou por expor certas limitações dos objetivos originais, propostos para este gênero de políticas raciais. Brancos pobres e da baixa classe média — materialmente descredenciados para filantropicamente saldarem sua “dívida histórica” através de gestos de reparação autoindulgentes, como são característicos na política de recursos humanos e de publicidade das grandes corporações e governos — têm protagonizado um esforço de denúncia das políticas setoriais de cotas raciais e “ações afirmativas”. Eles se ressentem como vítimas de discriminação, ressentimento que é proporcional ao decrescimento do orçamento público para a área social e à expansão dos cortes para um número crescente de categorias da população. A eleição de Donald Trump demonstrou a ineficácia do senso comum esclarecido ou antirracista no apelo a que abnegação e empatia, e não competitividade, fossem os valores morais que estes brancos deveriam introduzir nas “relações raciais” em uma era de recursos de sobrevivência crescentemente escassos.

Desta forma, o consenso que dera um “armistício” aos confrontos raciais dos anos 1960 foi sendo corroído, assim como a estabilidade selada no “politicamente correto”. As elites norte-americanas, previsivelmente, participaram dos pretensos gestos de boa-vontade, abdicação de poder e transferência de recursos, propostos como “política de diversidade”, apenas distribuindo suas próprias responsabilidades entre a massa dos brancos especialmente pobres, gerando um conhecido efeito de ressentimento: o percebido rebaixamento da reputação moral e das imaginadas condições materiais de existência, acrescida de culpa e obrigações suplementares, impulsiona o white trash; enquanto isso, os negros encontram nos liberais seus grandes aliados, e nos brancos pobres, seus inimigos públicos e não potenciais parceiros contra a destruição das garantias sociais e dos princípios de sua cidadania.

Este arranjo consignado por segmentos do establishment norte-americano emergiu em contraposição e para disputar os distintos regimes de alianças, interclasses e interraciais, em cujos objetivos comparativamente mais globais e radicais se apoiavam, cada qual ao seu modo, o Movimento dos Direitos Civis e o Poder Negro. Esta proposta avalizada pelo “centro liberal”, agora, encontra-se exaurida após quatro décadas, em efeitos e em potencial de convencimento e de mobilização. Eis limitações estruturais que se tornaram erros estratégicos:

a) o destaque à instrumentalização de sentimentos de culpa: é despolitizante — define soluções e tomada de decisões que tendem a ser exclusivamente morais e individuais, seguindo no sentido contrário ao da identificação e responsabilização, efetiva e consequente, daqueles e daquilo que engendra o racismo, a desumanização e a desigualdade;

b) a empatia como princípio de adesão política: importante no combate ao forte elemento de indiferença do racismo atual, a empatia é insuficiente e tende a reforçar certa unidade de opinião e de mobilização que se restringe ao elo entre “sofredores” e seus “compassivos” mais íntimos, gerando apenas isolamento para eles, além de pouco potencial dissuasório, apoio ou filiação efetivamente públicos e políticos;

c) agendas de estabilidade e de conciliação: já não gozam do benefício que já tiveram de serem apoiadas por grandes segmentos, dentro e fora da sociedade norte-americana, perdendo desta forma e paulatinamente seu lastro social e gerando uma perigosa imobilização diante das inovações racistas, inclusive nas formas afirmativamente mais agressivas.

O racismo tem proliferado suas formas de sensibilidade, desejo e julgamento na invenção de imaginários sociopolíticos, cosmovisões, atualmente imunes às suas duas formas de oposição prevalecentes: a pedagógica, cuja orientação é ensinar e esclarecer “ingênuos” e desinformados; e a legal, orientada a punir criminalmente os racistas “conscientes”. Demandas urgentes (talvez) sugeridas por este momento, que, possivelmente ambivalentes entre si, deveriam mesmo assim ser articuladas: a) a construção de um antirracismo constituído por laços mais políticos e menos demandantes afetivamente, por pactuações mais profundas e também mais impessoais com relação a objetivos comuns e às suas formas de efetivação; b) a reinvenção política, intelectual e estética do imaginário racista, para a sua transformação e destruição na esfera do próprio desejo e das suas formas de subjetivação.

7. Soltando as mãos. Nem Freyre nem Florestan Fernandes (hora de se seguir adiante)

No Brasil, a direita nacionalista ilustrada é freyreana. Por sua vez, as esquerdas, sobretudo a mais institucionalizada e hegemônica, também é freyreana. Com a diferença de que estes agrupamentos à esquerda construíram ao longo dos últimos 80 anos uma série de mediações para se apropriar desse autor de maneiras até bastante especializadas. Tenhamos em mente, como mediações deste tipo, na literatura, a obra de um autor como Jorge Amado e, no pensamento político e social, o trabalho de autores como Darcy Ribeiro e até mesmo Paulo Freire. Geralmente implícita, a oposição entre apropriações de esquerda e de direita é a seguinte: enquanto as esquerdas buscam o Gilberto Freyre modernista dos anos 1930, adepto das vanguardas artísticas e literárias e que advogava para o Brasil um registro de inserção histórica e cultural oriental e não tanto ocidental, a direita de um Golbery, ideólogo fundamental da nossa última ditadura, advogaria o Gilberto Freyre do pós-guerra, o convertido a porta-voz do salazarismo em África e da constituição lusa, cristã e ocidental do Brasil.

A constituição do antirracismo se daria, no pós-guerra, crescentemente em sentidos contrários às premissas freyreanas. Logo, contra a perspectiva e as expectativas de boa parte do espectro político brasileiro. Um dos principais protagonistas dessa transformação, em nível global, foi o chamado “centro liberal”. Suas preocupações com a estabilidade, a segurança e o combate aos extremismos, os “totalitarismos” de esquerda e de direita, os mantiveram bastante atentos à questão racial. Eles consideravam a raça uma problemática explosiva e decisiva se associada aos conflitos da Guerra Fria, ou seja, um assunto importante demais para não merecer uma intervenção aguda, cujo desenho, aplicação e impacto fossem efetivos ao mesmo tempo globalmente e localmente.

Essa intervenção só pode ser entendida se se reconhecer o papel da aliança entre órgãos de Estado do governo norte-americano e grandes organizações privadas na sua realização. Foram fundamentais, para as estratégias traçadas, o Departamento de Estado, a CIA e, entre outros, a Fundação Ford, aliança com a qual se interveio fortemente em uma política de formação de recursos humanos, de criação e arregimentação de elites e de recrutamento de lideranças, mantendo-se um interesse permanente na chamada questão negra e constituindo, para ela, a sua principal agenda estabelecida desde o pós-guerra, a da “igualdade de oportunidades”, agenda visando estabelecer as condições da livre e igual competição de mercado e a plena inserção do negro na sociedade de classes.

Malgrado suas inclinações socialistas, Florestan Fernandes, em qualquer uma de suas fases, a do construtor da Escola Sociológica Paulista, a do intelectual de intervenção pública que gestou a opus Revolução Burguesa, a do deputado constituinte, foi o principal representante no Brasil dessa tendência. Sua influência é perene e, nos últimos anos, crescente, graças a um sério esforço de recuperação do autor como intérprete da questão racial e também intérprete do Brasil. Seria este o momento de encerrar a era das “reformas raciais”, baseadas estritamente ou complementarmente na “representatividade”, antes que ela seja encerrada à nossa revelia, como tudo o demonstra, em nome de coisas piores?

Sim.

8. Este texto é também uma longa resenha não intencional de Get Out!, de Jordan Peele.

Este artigo está ilustrado com obras de Jean-Michel Basquiat (1960 – 1988)

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