Por Raquel Azevedo
Em 19 de agosto de 2019, os moradores de São Paulo viram o céu escurecer no meio da tarde. Foi o dia em que os rios voadores que carregam umidade da Amazônia para as regiões sudeste, centro-oeste e sul trouxeram com eles a fumaça das queimadas. Algo se manifestou sem rodeios naquela tarde em São Paulo. Mas não retomo a lembrança daquele dia para fazer um elogio da manifestação imediata da ligação entre as coisas. Nosso problema é justamente o oposto: como elaborar um pensamento que volte a incorporar as mediações e que não se mova por atalhos ou curtos-circuitos, que parecem servir mais ao negacionismo ou a saídas fascistas. A dificuldade não está em apontar um dia para o céu e dizer: as queimadas e a grilagem a que se destinam são inseparáveis do modo de vida que levamos numa cidade como São Paulo. A dificuldade está em entender como nos demais dias do ano essa interdependência não só se afrouxa como toda a mediação aparece como opressora.
Os problemas de escala de que tratamos nas duas últimas colunas são uma ferramenta interessantíssima para essa tarefa. Para estabelecer uma relação entre dois níveis de organização com complexidades distintas, é preciso, antes de mais nada, assumir o nível de abstração do mapa em lugar daquele do território, o que significa que o nível de complexidade de uma organização é dado por uma relação específica entre alguns elementos de um conjunto e a totalidade que eles constituem. Um mapa contém maior complexidade informacional do que o território porque seleciona e exclui, mas não há nada acabado e imutável a respeito daquilo que entra e daquilo que fica de fora da análise (diferentes arranjos são possíveis). Em segundo lugar, um dos argumentos centrais do artigo de Matilde Marcolli a respeito do problema de escala de organizações comunistas e anarquistas é que o cálculo do aumento da complexidade deve ser produto de relações estruturadas e não de aleatoriedade. À primeira vista, pode parecer um aspecto matemático menor na discussão, mas ele significa que a comparação entre diferentes níveis de organização se dá a partir de uma intensificação da mediação. Marcolli utiliza a entropia de Shannon para pensar a tradução de um nível de complexidade organizacional em outro. É inescapável que um pensamento que recupere as mediações esteja mergulhado na matemática. O que eu gostaria de propor aqui é que mesmo essas estruturas matemáticas podem ser pensadas em escalas distintas.
O processo de tradução entre duas formas de organização distintas é também o traço central do dualismo em perpétuo desiquilíbrio com que Lévi-Strauss caracteriza o pensamento ameríndio. Como lembra Eduardo Viveiros de Castro, a verdadeira oposição que a análise lévi-straussiana identifica nos mitos e demais formas de organização ameríndias se dá entre um dualismo simétrico e um triadismo assimétrico. A relação entre os dois polos é mediada pelo dualismo concêntrico, que aparece, por exemplo, em aldeias que são organizadas a partir da divisão do espaço entre um centro sagrado e público e uma periferia profana e doméstica. Essa forma concêntrica de organização do espaço seria uma forma híbrida ou transicional: há algo nela de dual, mas há também o traço assimétrico da tríade. No texto Radical dualism: a meta-fantasy on the square root of dual organizations, or a savage homage to Lévi-Strauss, Viveiros de Castro imagina outro modo de pensar essa mediação ao redesenhar o dualismo concêntrico como sendo os catetos de um triângulo retângulo. Se a cada um dos lados for atribuído o valor 1, como apresentado na figura, a hipotenusa que os une assumiria um valor incomensurável. Ou seja, toda troca, todo casamento, toda reciprocidade ritual seriam marcados por um desequilíbrio entres as partes. A diferença entre mim e o outro não pode ser expressa como uma diferença entre partes simétricas. No pensamento ameríndio é essa mediação, ou seja, esse desiquilíbrio entre as partes, que se repete nas variadas escalas de organização da sociedade.
Voltemos para o lugar de onde partimos: a chuva de fuligem no sudeste. Como eu dizia, a revitalização da mediação a que me refiro não se reduz a estabelecer uma relação entre as queimadas (que cresceram em quatro estados da Amazônia legal – Pará, Amazonas, Maranhão e Mato Grosso – nos primeiros sete meses de 2020) e o modo de vida que levamos em São Paulo. Que nosso modo de produção esteja fundado numa mediação central que é o mercado não deveria ser novidade para ninguém. A questão aqui é tentar enfrentar mediação com mediação. Como vimos na primeira coluna dessa série, a principal conclusão de Marcolli é que o mercado é uma forma de ordenação entre outras, ou seja, é possível construir outras formas de mediação. O acréscimo que faço é que as estruturas de mediação também se diferenciam por escala conforme o campo a que pertencem. Marcolli com a entropia de Shannon; o pensamento ameríndio com a relação entre o dois e o três. Quanto mais um pensamento se ocupa com a tradução de uma forma de organização em outra, tanto mais é um pensamento da mediação. A oposição ao autoritarismo passa, em grande medida, pela disseminação dos mapas aí produzidos.
Raquel, excelente série de artigos. Após lê-los, tive acesso a um novo universo de dúvidas e reflexões. Que venham outros!