São Paulo SP 01 07 2020-Paralisação de trabalhadores de aplicativos em varios pontos da capital fizeram manifestações foto Felipe Campos Mello

Por Invisíveis Rio de Janeiro

“Ninguém educa os trabalhadores. É o contrário: os trabalhadores que educam os intelectuais. O que acontece realmente, no final das contas, é que, se a gente faz uma investigação correta, isso pode servir de instrumento a quem se educou na luta. Então, se os trabalhadores começarem a lutar, eles vão se educar porque estão lutando. E aí, se você fez uma pesquisa útil, eles vão se apropriar dela e você vai virar uma pessoa útil pela primeira vez na vida”.
(Entrevista com Vito Letizia realizada por Danilo Nakamura, recém-transcrita)

“A empresa de aplicativo não quer aumentar nossas taxas. Se aumentar, pode fechar? Então fecha. Antes da empresa a gente já fazia entrega há muito tempo.”
(Ralf MT, entregador e YouTuber)

Depois do segundo “breque nacional dos apps”, algumas coisas precisam ser ditas, mesmo que não sejam fáceis de ouvir. É sobre os desafios da mobilização que se pretendia nacional. Não só nós do coletivo percebemos esses desafios como também muitos dos entregadores envolvidos na mobilização. Tomamos como base em primeiro lugar o debate franco e direto com os entregadores. Essa é a premissa de uma atuação responsável. Tanto que foi preciso um processo de diálogo e método de aproximação, antes de fazer uma “crítica infalível” sobre os limites dessa mobilização. Qualquer percepção sem uma verificação e diálogo aberto, vira mais uma tendência intelectual solta, que não serve para as necessidades da luta de classes. Fora disso, mesmo sendo arriscado dizer, pode ser tudo ilusão.

A força das greves de aplicativos localizadas

Desde antes do breque nacional do dia 1º de Julho, já se discutia os entraves das mobilizações envolvendo entregadores de aplicativos. As dificuldades encontradas foram as mesmas que ocorrem agora no breque nacional: o racha entre grupos de entregadores, polêmicas sobre o que seria a solução para o caso deles. Regulamentação pela CLT ou trabalho autônomo? Normalmente quem pauta a CLT são os sindicatos interessados em ter filiados. Quem pauta “autonomia” foi tachado de ser defensor do “empreendedorismo”. Mas foi possível ver que essa discussão era suspensa ao realizar a tática de fazer paralisações fechando locais, bloqueando vias e passagens de estabelecimentos. Isso permitiu exigir o aumento de taxas para entregadores; uma taxa mínima e ser contra a arbitrária determinação do percentual retirado pela empresa de aplicativo. Além de enfrentar um problema maior que sempre se apresenta: a pressão dos fura-greves. Estes podiam ser contornados com piquetes e fechamentos. O constrangimento poderia fazer alguns aderirem à greve. Além de cumprir o objetivo de paralisar entregas.

A grande questão é que a tática dos aplicativos é chamar novos entregadores, depois de bloquear os que participam das greves. O sistema de bloqueio e a rapidez para chamar novos entregadores parecem ser aplicados para impedir mobilizações. Então a saída seria, ao invés de desligar o app, deixar ligado e não aceitar corridas? Se não são todos que aderem às paralisações, fechar vias e impedir a circulação pode ser uma solução. Mas isso seria suficiente?

Se existiu força nessas greves localizadas foi pelo “tiro rápido” que ligou a indignação de boa parte deles com a forma imprevisível em que as ações eram organizadas. Isso foi visto na greve da empresa Loggi, que começou no Rio de Janeiro, em junho desse ano. Mesmo que previamente organizada em grupos de WhatsApp, os diálogos simultâneos, enquanto piquetes ocorriam nos galpões, foram fundamentais. Envios de vídeos, áudios e combinação de locais para paralisar. A eficiência da organização se juntou com a participação direta dos envolvidos. Foi um processo de dois dias por grupos de WhatsApp, que elaboravam táticas de paralisação enquanto as implementavam.

Foi interessante ver que os galpões da Loggi que não foram fechados no primeiro dia, como os dos bairros de Guaratiba e Barra da Tijuca, foram fechados no segundo. Os motoboys foram em “buzinaço” passando pela zona sul até a zona oeste. No terceiro dia, a greve já havia chegado ao estado de São Paulo. Mas no Rio de Janeiro, por ser um feriado e dia dos namorados, no dia 12, muitos entregadores acreditaram que ela teria um impacto maior ou igual ao dos dias anteriores. A aposta era de que teria maior quantidade de pedidos. Portanto, o prejuízo da falta do serviço seria maior. Mas a empresa faz entregas de uma variedade de produtos para além de lanches e também lançou mão dos bloqueios massivos, chamando novos entregadores para compor como fura-greves. Assim, o prejuízo foi contornado. Além do desgaste desses entregadores, tudo isso serviu para enfraquecer a greve.

Além da estratégia de criar uma massa de novos trabalhadores, ainda ofereceu promoções de aumento do valor da taxa por tempo determinado. O resultado era de se esperar: os próprios fura-greves foram pegando rotas nos galpões onde havia menos grevistas ou onde eles de fato não estavam. Outros furaram enfrentando os piquetes. Alguns se infiltraram nos grupos de WhatsApp para entregar nomes de grevistas aos chefes, para serem bloqueados no aplicativo. Isso minou não somente a principal forma de organização, mas também a confiança de entregadores em se mobilizar.

É seguro dizer que a greve da Loggi foi derrotada, pois não chegou aos termos de negociação. Mas mostrou para alguns entregadores a possibilidade de fazer pressão real sobre o aplicativo por meio da organização rápida e improvisada para executar ações. Antes de os grevistas serem bloqueados, eles sentiram o poder da paralisação de vias e galpões. O problema foi que muitos participantes ficaram com trauma dos bloqueios, pois permaneceriam assim quase dois meses depois. Se havia clareza sobre o método de realização de greves, reinava por outro lado o espanto sobre a massa crescente de fura-greves e os bloqueios. Se “um fantasma ronda as cidades brasileiras, e esse fantasma anda sobre duas rodas”, era porque esperava-se que o aumento da exploração dos entregadores, com o aumento da demanda na pandemia e com os apps aproveitando a oferta de entregadores para reduzir taxas, levaria à precipitação de greves, fazendo pensar inclusive que isso viraria uma greve nacional. Mas há também o espectro da “revolta conservadora”, com crescente número de desempregados buscando vagas nos aplicativos e tornando-se fura-greves. Esse sentimento “antigreve” pode tomar posições mais agressivas, como tratar os grevistas como pessoas que impedem o dia de trabalho, podendo virar clamor pelo confronto contra eles, como já está sinalizado em publicações virtuais, desde postagens individuais ou na página NãoBrecameuTrampo. Casos como esses têm aumentado a partir das duas últimas mobilizações pelos “breques” nacionais, nos dias 1º e 25 de julho.

A greve nacional veio pelo alto e bateu no teto?

No mesmo dia do fim da greve da Loggi, veio ao conhecimento de alguns de seus entregadores que havia circulado uma enquete feita por militantes da página Treta e outros entregadores para decidir o dia de uma greve nacional. Com menos de 400 respostas decidiu-se pelo 1° de julho. Assim, enquanto em grupos de WhatsApp de São Paulo e de outros aplicativos a proposta era recebida como uma “boa ideia”, nos grupos da Loggi no Rio de Janeiro foi recebida com surpresa e descrença pela maioria dos membros. Tal reação foi tão notável que alguns membros do Invisíveis Rio de Janeiro, que acompanhavam o grupo, pensaram que era melhor não “forçar a barra” sobre a recente convocação. A perspectiva era de manter o diálogo e auxiliar no apoio à última e conflituosa greve que os entregadores da Loggi haviam feito. Principalmente, apoiar e dialogar com os bloqueados.

Não dava para ignorar a pertinência de uma greve nacional quando alguns entregadores que participaram das mobilizações locais rapidamente aderiram ao chamado. Então, a greve “viralizou”. Logo o chamado virou notícia e o apoio de entregadores conhecidos como “líderes” de diversas cidades passaram a estimular as mobilizações locais. Muitos desses eram conhecidos na região por serem bons camaradas, ou até youtubers e donos de pequenos empreendimentos. Assim os chamados locais foram sendo feitos a partir desses “líderes”, que são informais numa estrutura organizada que não passa por formalidades de assembleias ou eleições. A adesão à greve não existiria se não fossem esses entregadores, que já possuíam suas estruturas.

Algo começou a minar o chamado. Enquanto bravos entregadores aderiam à convocação, enfrentando o medo dos bloqueios, da perda de corridas e do rendimento para suas famílias, alguns fenômenos estranhos passaram a gerar desconfiança. Foi a padronização de chamadas para a greve e o personalismo. Esse último foi mais latente no entregador Galo, dos Entregadores Antifascistas, que gerou desconfianças de um setor, não somente por suas simpatias de esquerda, mas também por se colocar como líder do movimento e não somente do seu grupo. Outro lado foi contra o sindicato dos motoboys de SP, que por sua vez se colocava contra a presença de grupos políticos. Essas divergências e disputas internas no movimento ficaram latentes e se arrastaram também para o segundo breque, na ocasião noticiadas neste artigo, por exemplo.

Houve um esforço visível da página Treta em não se mostrar vinculada a nenhum partido, sindicato e nem a nenhuma pauta por “regulamentação trabalhista”, tentando se distanciar da polarização entre esquerda e direita, mas isso não foi o suficiente para garantir uma real participação direta de entregadores no processo de organização. A página padronizou os chamados, perdendo a prioridade em publicar relatos, questões e debates diretos com esses trabalhadores. Pois já havia um problema de forma, que ignorou as angústias de ex-grevistas com medo de bloqueios e de novos fura-greves. A página passou a difundir a ideia de que as dificuldades locais das greves seriam resolvidas com o peso midiático e publicitário de uma chamada nacional.

A ideia de projetar uma greve nacional sem superar as contradições locais se apoiava na tática da “revolta popular”. Nela, as condições da tensão social no serviço de entregas fariam estourar uma explosão de adesão repentina à greve. Mesmo que sendo chamada por um setor restrito e com dificuldades de mobilização, isso seria superado pelo chamado “descontrole”, que é o conflito social não ser resolvido pelos patrões ou pelo poder público. E isso viraria uma ampliação da adesão de pessoas, entendendo que precisam agir sem esperar líderes, sindicatos ou partidos.

Mas, lembrando da “revolta popular” contra o aumento das passagens no transporte coletivo, em junho de 2013, ela chegou no limite quando os governos perceberam que podiam impedir maiores questionamentos atendendo minimamente à reivindicação pela redução das tarifas. Sabiam que um setor restrito da sociedade convocara os protestos: militantes estudantis. Então, abortar a revolta foi fácil ao impedir a massificação pela adesão dos trabalhadores. Pelo Brasil, isso ocorreu pela cooptação ou pela repressão. Isso na maior onda de protestos da história brasileira. Então, com certeza as empresas de aplicativo saberiam como reprimir uma greve nacional restrita a um setor, garantindo o isolamento dos líderes e canais do movimento, com a massificação dos fura-greves. Mesmo assim, setores de esquerda insistiram em apontar a tática da revolta para o breque dos entregadores, ignorando os limites que uma “revolta popular” baseada numa greve já tem quando não resolve os conflitos no processo de trabalho, entre eles os bloqueios e monitoramento dos grevistas pelos aplicativos.

Enquanto setores criavam uma forma de divulgação focando na greve em si, sem conversar sobre as dúvidas e pequenos problemas dos entregadores, foi criado o “personagem entregador”. Organizações colocaram para mobilizar militantes que fizeram “suicídio de classe” e viraram entregadores. A problemática é que isso pode ter gerado um estranhamento que pode ser pano de fundo para a aversão contra essas estruturas — organizações de esquerda — pois, militantes universitários com padrão de “classe média” se esforçaram para aparentar igualdade cultural com um entregador com baixa escolaridade e que depende das entregas por anos para sustentar filhos. O que poderia ser tratado como solidariedade entre estratos diferentes da mesma classe virou desconfiança aos olhos de muitos. Simplesmente os entregadores mais empobrecidos e alheios ao “vocabulário militante” ficaram ofendidos ao serem tratados como idiotas. E isso cresceu, pois a publicidade tomou conta, promovendo essa personagem. O breque virou um espetáculo sob tais condições e muitos entregadores perceberam isso.

Tudo isso foi incentivado pela crença de que a unidade na “viralização” e na “revolta popular” por setores de esquerda seria a melhor forma de incentivar a greve. Enquanto isso, foi jogada para depois a prática de debates abertos, a criatividade e o improviso das greves locais anteriores. Todos foram chamados para atender ao padrão da convocação nacional, não para unificar setores que estavam em luta. Um exemplo foi a página Treta ignorar o ato convocado pelo SindimotoSP, dia 14 de julho, no segundo breque, mas convocado somente em SP, enquanto isso poderia ampliar o diálogo com entregadores que acreditam em cada um dos diversos processos, mesmo mantendo críticas ao sindicalismo. A solução é o debate franco com a experiência dos trabalhadores. Em contrapartida, o sindicato negou apoio ao breque nacional do dia 25, considerado como o “segundo breque nacional” pela página Treta, alegando ser contra o envolvimento de organizações de esquerda. A maior armadilha disso é acreditar que é um problema de não resolução de divergências, mas é resultado do problema de comunicação dos grevistas com a massa de entregadores. Isso gera um isolamento do movimento, que cria motivos para disputas entre esses setores.

A pior forma de apostar numa “revolta popular” dos entregadores é quando a experiência de trabalho é ignorada. Parece que a busca dessa “esquerda” é impor um caráter “oficial” não convencional para as lutas. Mas o problema que gera as derrotas e promove a cooptação é essa forma “oficial” que faz estabelecer critérios para considerar determinadas experiências válidas e outras não. Trata a sobrevivência de trabalhadores como “reformismo”, enquanto busca somente o que promove “revoltas”. Isso deixa invisível o processo de autoformação dos trabalhadores. Acertam ao negar se tornarem gestores sindicais, mas abrem caminho para novas burocracias. O processo de trabalho e as soluções coletivas criadas por trabalhadores são mais amplos do que a perspectiva da “revolta popular”. As formas de solidariedade e resistência para proteger acidentados, bloqueados e demais abatidos são exemplos de soluções. Ou até a articulação de protestos pontuais com campanhas de doação, como ocorreu no caso de racismo sofrido pelo entregador Matheus na Ilha do Governador, no Rio de Janeiro. Ou em São Paulo, em Valinhos, contra o racismo sofrido por outro entregador, também chamado Matheus.

As novas burocracias se beneficiam ao negar os elementos cotidianos e a auto-organização dos trabalhadores. Buscam utilizar as novas técnicas da “viralização”, mas sem fomentar o debate direto e franco. Assim, ao contrário do que se acreditou num artigo, não é a unidade de chamada virtual que faz a força dos entregadores, é a diversidade e a possibilidade de unir eficiência e participação direta nas lutas. Isso ocorreu em algumas cidades durante o breque nacional em 1° de Julho, como em São Paulo, Niterói e São Gonçalo (RJ), por exemplo. A redução de entregas foi sentida em restaurantes na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Mas nada comparado à potência das paralisações locais anteriores, como no Supermarket de São Gonçalo e no McDonald’s de Itaboraí, ocorridas em junho. Ou seja, a força ainda é a paralisação local e o fechamento de vias de comércio. Mas isso não foi levado para a frente na mobilização para a greve nacional dos dias 1º e 25 de julho como um todo. Isso provavelmente minou a adesão. E também os mecanismos de segurança contra os bloqueios não tiveram solução, além da expulsão de provocadores fura-greve nos grupos de WhatsApp. Enquanto isso, a “viralização” do breque nacional acaba promovendo burocracias e organizações sem resolver os dilemas de luta e organização dos entregadores.

Enquanto buscam resolver divergências e convergências na “vanguarda” do movimento do breque nacional dos apps, permaneceu o descompasso de narrativas e diálogos entre os entregadores. A divergência não se deu simplesmente por muitos não concordarem com o sindicato ou com grupos de esquerda, mas também pela dificuldade de estabelecer métodos de debate partindo diretamente da realidade cotidiana nas relações de trabalho. Um entregador grevista disse que um grande problema do Galo, dos Entregadores Antifascistas, era que ele fazia o “vitimismo”. Quando falava a frase “estamos tendo problema na coluna por carregar a bag”, “trabalhava por 14 horas sem comer” ou que “carregava comida e passava fome”, isso foi recebido por alguns como uma história que não é a realidade de muitos entregadores. Entendem que cria uma visão de não resolução, como se o problema em si fosse trabalhar com entregas, como se a luta contra a desvalorização e exploração dos entregadores não pudesse ser arrancada dos empresários de aplicativos. Outra fala importante desse mesmo grevista foi que seu filho de 18 anos também é entregador e fica, às vezes, 10 horas correndo sem conseguir entregas, então ele entenderia caso não aderisse à greve. Isso mostra os desafios cotidianos entre esses trabalhadores, que devem ser resolvidos com debate aberto e franco — algo que tendeu a ficar invisível na chamada nacional.

Se não superar a dificuldade de comunicação e a falta de proteção contra os bloqueios, a chamada da greve nacional pode desgastar a organização de novas greves. Muitos que participaram da greve da Loggi em junho estão até hoje bloqueados e vivendo de trabalhos tão precários quanto, ou até mais. Enquanto isso, a “viralização” da página Treta é desafiada pela NãoBrecaMeutrampo desde a convocação da greve nacional de 25 de julho. Mesmo que seja uma página provavelmente financiada por aplicativos, ela surge aproveitando a crescente massa de entregadores novos e desempregados entrando no ramo para “viralizar” contra as greves — principalmente pelo vácuo deixado pela mobilização do breque nacional, que ignora as condições locais para compor uma greve nacional e trata quem tem dúvidas e questiona a greve como “mané” e quem simplesmente adere ao chamado como “malandro” (por exemplo, aqui). Nessa representação, malandragem, na boca de muitos trabalhadores, é se “dar bem” às custas de quem trabalha. As visões que se pode tirar daí são várias; por isso é necessário um debate mais sério e direto, partindo das angústias locais e reais.

Entregadores x empresas de aplicativo: quem ganha?

Investir nas relações de solidariedade entre entregadores é a solução mais “pé no chão”. Da mesma forma que as paralisações locais são fundamentais e trazem seus limites pelo medo dos bloqueios, é localmente que aparecem as soluções. Têm crescido as campanhas de doação para quem é acidentado, pois praticamente todos ficam sem apoio do aplicativo. Disso, juntando com o problema dos bloqueados, os entregadores percebem que podem ampliar formas de salvaguarda para se proteger material e politicamente. Campanhas de solidariedade podem virar formas de produção por cooperativas ou apoio mútuo, pegando inspiração em modelos produzidos na Europa nas lutas dos entregadores de lá. Para se proteger contra os bloqueios depois de lutas que viram acontecer lá, buscam reproduzi-los aqui também.

As cooperativas e campanhas de apoio podem criar tanto uma rede de proteção para as lutas dos entregadores, que ficam fragilizados com as ameaças de bloqueios, como pode aumentar os meios de sobrevivência. São instrumentos que podem fortalecer a organização e trazer a perspectiva de autovalorização, se estiverem ligadas ao diálogo com entregadores que não estão na mobilização. Perceber que as estruturas criadas podem servir para ser alternativa e aumentar a pressão em caso de novas paralisações é a forma de os entregadores criarem mecanismos para retomar a riqueza que foi produzida e é apropriada pelas empresas. Sem a ilusão de que o cooperativismo resolve todos os problemas e atentos para não criar novos patrões, podem servir para intensificar as experiências coletivas. Para diminuir a dependência dos aplicativos maiores, criar estruturas coletivas de sobrevivência pode ser um melhor instrumento para a greve e a recuperação dos valores perdidos por esses trabalhadores. Daí, é uma autovalorização quando é associada a uma estratégia de combate aos patrões e paralisações do trabalho, pois a cooperativa mantém a submissão à exploração de estabelecimentos e a quem mais usar o serviço no mercado, alegando a demanda para reduzir os valores pagos. Então a organização para paralisações e pressão contra esses mecanismos é fundamental, pois novos aplicativos cooperativados, além de não baterem de frente com a estrutura dos grandes, mantêm a submissão ao trabalho por demanda, não pagando os custos pela manutenção e deslocamento para a coleta da entrega. Ou seja: a luta continua.

O fortalecimento dessa organização é um dos saldos positivos dos breques nacionais. A abertura dos entregadores às pessoas que não são da categoria mostra que a crítica aos partidos e sindicatos vai muito além de ser “contra políticos” ou “contra a esquerda”. A percepção é sobre quem “cola para somar” e não para tomar a organização dos próprios entregadores. Mas a perspectiva mais avançada é pela disposição pelo diálogo e a construção de salvaguardas e proteções contra acidentes, bloqueios etc.; assim, é uma oportunidade de potencializar as paralisações e lutas com a mesma possibilidade de eficiência e participação direta das greves locais. Isso pode construir uma solidariedade profunda, que pode servir como exemplo para outras categorias. Daí que os apoios tenham um potencial maior ainda. Podem fazer as greves de entregadores serem feitas em conjunto com outras, como quase ocorreu com os metroviários na mobilização para o breque nacional de 1º de julho. Indo além da busca por apoio e boicote dos clientes dos aplicativos, é importante garantir que a greve seja feita principalmente por trabalhadores em suas relações de trabalho, e que a solidariedade aconteça nesse campo. Confundir isso pode resultar em que o “palco” do breque traga para as manifestações mais apoiadores do que entregadores, como aconteceu no Rio de Janeiro nos breques nacionais de 1º e 25 de julho. Seria bom se esse problema fosse só nas manifestações, mas com ausência ou baixa realização de paralisações em vias e estabelecimentos foi demonstrado que a greve enfraqueceu localmente.

A busca por conquistas é uma premissa da responsabilidade. Esta ocorre somente pela relação direta e prática. As projeções de “revolta” e pautas programáticas elaboradas por estruturas externas passam longe dessa preocupação. A “viralização” não é a forma da luta, ela é somente um instrumento como são os aplicativos, celulares e a internet para as entregas. Essa lição, já entendida por esses trabalhadores, precisa ser levada para a frente. A aceleração e o dinamismo dos instrumentos virtuais servem para garantir a solidariedade e a luta cotidiana dos entregadores, não para criar representações que tendem a burocratizar as relações. Para comprovar isso, basta ver o recente esvaziamento do breque nacional no dia 25 de julho. Muitos entregadores já elaboram novas táticas, entre elas está o aprimoramento dessa aproximação direta e das redes de solidariedade. Sem esse cuidado, as convocações ficarão restritas à “viralização” e ao apoio dos consumidores.

O principal de um processo de luta não é a conclusão ou o objetivo supostamente revolucionário, mas as conquistas. Mais importante é garantir que a responsabilidade dos entregadores sobre os seus próprios passos na luta e sobre as formas de comunicá-la tenha a ver com uma responsabilidade sobre as suas experiências. Nesse sentido, em vez de uma colocação ou opinião sobre a formação de cooperativas ou a articulação com organizações, é antes o processo de organização para garantir vitórias que mais confirma o saldo positivo. Por isso, não cabe às páginas representarem os entregadores e depois forçarem uma igualdade de relações, se o processo de bases para promover pressões contra os aplicativos não cumpre o papel de confiança. Assim, páginas ditas “anticapitalistas” retirarem ou darem apoio a iniciativas dos entregadores mostra a natureza dessa relação, que não respeita e nem trata com responsabilidade essas experiências. Mesmo que discordem, o que mais importa é construir um debate aberto e direto, não ficar em disputas de representação, como ocorreu com a página Treta, o SindimotoSP, os Entregadores Antifascistas ou qualquer setor dos entregadores. O que importa é resolver o problema de comunicação com a boa parte dos entregadores que não aderem à greve, por diversos motivos que devem ser reconhecidos e respeitados. Então, independente dos rumos que sigam as lutas, seja mantendo paralisações, idas a Brasília para pressionar o governo federal, convocação com o sindicato ou pressão judicial — uma proposta que tem circulado entre eles —, é importante manter esse diálogo permanente e discutir com os entregadores envolvidos e não envolvidos na mobilização para que sejam tratados com a responsabilidade que estes já possuem sobre suas vidas. É preciso caminhar junto com suas experiências.

Ilustram esse artigo fotos de Felipe Campos Mello (1 e 2) e de Roberto Parizotti (3 e 4), disponíveis em https://fotospublicas.com

5 COMENTÁRIOS

  1. “O principal de um processo de luta não é a conclusão ou o objetivo supostamente revolucionário, mas as conquistas.”

    Já dizia Rosa Luxemburgo no século retrasado:

    “Toda a sua teoria [de Bernstein] visa uma única coisa: conduzir-nos ao abandono do objectivo último da social-democracia, a revolução social e, inversamente, fazer da reforma social, simples meio da luta de classes, o seu fim último. O próprio Bernsteln exprimiu essas opIniões da maneira mais transparente e mais característica ao escrever: ‘O objectivo final, qualquer que seja, não é nada; o movImento é tudo’.

    “Ora, o objectivo final do socialismo é o único elemento decisivo na distinção do movimento socialista da democracia burguesa e do radicalIsmo burguês, o único elemento que, mais do que dar ao movimento operário a tarefa inútil de substituir o regime capitalista para o salvar, trava uma luta de classe contra esse regime, para o destruir; […]

    “Na controvérsia entre Bernstein e os seus partidários, o que está em jogo – e no partido cada um deve ter consciência disso – não é este ou aquele método de luta, nem o emprego desta ou aquela táctica mas a própria exIstência do movimento socialIsta.”

  2. Não acho que o Galo tenha se colocado como liderança do movimento. Ele teve uma superexposição e por isso foi compreendido por grande parte do público que assistia e lia as mídias como líder do movimento. Muitas vezes ele era apresentado assim pela mídia, principalmente de esquerda. mas não partia dele.

    Sobre a página NãoBrecaMeuTrampo, se eu tivesse que apostar, apostaria que ela não foi criada pelas empresas de app. Li em algum lugar que foi criada por marketeiros políticos em Brasília. Apostaria que saiu de gabinetes do bolsonarismo. Cm o tamanho do dia 1 de julho, receavam que o movimento pudesse se tornar um movimento popular que iria erodir as base popular do governo como junho de 2013 fez com a Dilma. Aliás, a Folha de São Paulo tentou claramente usar o movimento para isso, com manchetes dizendo que os entregadores haviam abraço o antifascismo (e sabemos que antifascismo é sinônimo de antibolsonarismo).

  3. Ao Marcos K

    O uso de uma referência do século retrasado pra tentar dar carteirada sobre um processo de luta cheio de percalços, como é os desafios do pós toyotismo numa greve de trabalhadores do setor de serviços em regime de “freelancer”(nada previsto pela Rosa Luxemburgo em 1918). Só mostra o grave problema de comunicação da esquerda diante dos desafios dos trabalhadores nas lutas atuais. Se não é algo sério, que realmente não é levado a sério pela esquerda (que se leva a sério demais), só pode virar uma piada.

  4. Talvez se o Marcos K reler o próprio comentário e refletir melhor sobre o artigo inteiro perceberá que o coletivo não descarta a formação política no decorrer das lutas em busca das reformas, se trata de dizer, antes de tudo, que não é a fórmula supostamente revolucionária o conteúdo do socialismo, mas o próprio movimento dos trabalhadores, e isso não se faz tirando os protagonistas da busca pelas reformas, mas aprimorando suas formas organizativas e suas táticas de sabotagem no decorrer do processo.

  5. Leo Vinicius. O caso sobre o motoboy galo partiu de colocações vindas dos próprios entregadores, que relataram a prática dele de não se dizer liderança. Mas em diversos momentos disseram que ele se colocou como lider e depois propagandeava o coletivo “entregadores antufascistas”. Isso gerou um incômodo sobre a projeção dele nesses motoboys que relataram.

    No caso a pagina não breca meu trampo, não é possível saber a origem real dela além de especulações nossas. Mas assim como a reação ao caso do “entregadores antufascistas”, o que importa é a base social que existe para implementar tanto a desconfiança diante da “identidade” que foi colocada em disputa na greve, quanto a posição ativa contra qualquer greve. Isso que deve ser mais preocupante.

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here