Por Passa Palavra

Muito tem-se falado sobre a mudança das relações de trabalho e da uberização da economia. Alguns aventuram-se a dizer que é o fim da forma trabalho, outros insistem que se trata de mais uma precarização da nova etapa do neoliberalismo. Ao tentar esses diagnósticos que apenas confirmam suas teses anteriores, terminam perdendo a análise concreta de como esses trabalhadores e trabalhadoras se organizam, seja para trabalhar, seja para lutar.

As mobilizações desses trabalhadores não são algo que surgiu em 2020: a primeira a ser noticiada neste site data de 2016, e há uma série de outras narradas e analisadas neste dossiê. Lá encontramos uma interessante reflexão que discutia as condições de mobilização e apontava para uma possível greve, que parece ter se confirmado em pelo menos um estado.

As coisas ganharam outra dimensão no dia 1º de julho de 2020, quando ocorreu o #BrequedosAPPs. Milhares de motoboys resolveram desligar os aplicativos em dezenas de cidades pelo Brasil. Para isso acontecer precisaram superar algumas barreiras, que valem ser analisadas, ainda mais em um momento no qual o trabalho remoto aparece como tendência.

Diferentemente dos locais de trabalho considerados clássicos, o trabalho dos entregadores se dá de forma espalhada pela cidade. Não há, assim, um espaço físico em que todos se encontrem, conversem e compartilhem experiências cotidianas. Mesmo os bolsões onde concentram-se um grande número de entregadores costumam ter uma rotatividade muito alta. Para ser possível construir um corpo coletivo foi necessário utilizar um espaço virtual, ou seja, foi necessária a apropriação, pelos trabalhadores, de uma técnica pertencente ao mesmo conjunto técnico utilizado para explorá-los, para a partir dela criarem novas relações. Os grupos já existentes para distribuir informações, memes, piadas, serviram para compartilhar a ideia de fazer uma paralisação contra os bloqueios indevidos e a queda das taxas. Assim como são utilizados para espalhar a mais ampla variedade de notícias (falsas e verdadeiras), os grupos serviram, a partir da ação de alguns entregadores articulados, para alastrar pelo Brasil a proposta de um breque unificado.

Somou-se a isso um forte sentimento de grupo presente nos motoboys, construído pela vivência violenta no trânsito das grandes cidades. São eles os que mais sofrem acidentes e é comum ver uma série de motocicletas pararem para ajudar o motoboy que caiu, seja para anotar a placa do carro, disciplinar um motorista mais agressivo, ou simplesmente ver se está tudo bem. Esse sentimento de coletividade talvez ajude a entender o porquê de a mobilização atual não se dar contra os novos entregadores que se cadastraram nos diferentes aplicativos por conta da pandemia, na qual as possibilidades de trabalhos foram reduzidas.

A palavra de ordem “A guerra apenas começou” indicava, durante o próprio dia 1º de julho, que haveria continuidade da mobilização, e após algum suspense foi anunciado um novo breque para o dia 25 deste mesmo mês. Para essa nova mobilização há algumas questões em aberto.

A primeira é o desafio de fazer duas paralisações em um mesmo mês. Com trabalhadores sem um contrato de trabalho, a renda depende diretamente do quanto conseguem com entregas no mês. Bloqueios em aplicativos como o Loggi e o Rappi deixam entregadores de algumas cidades receosos de paralisar e não conseguir voltar a trabalhar. A falta de ganho econômico imediato obtém ainda mais relevo em um momento que a escassez ronda diferentes casas. Deixar de fazer as entregas dois dias requer uma ampliação da conscientização política e uma maior organização entre trabalhadores. Esses trabalhadores ainda não acostumados a atuar politicamente de maneira coletiva vão lidar também com as pressões familiares, seja por conta dos ganhos diminuírem ou por conta do tempo dedicado a outras coisas. Ao mesmo tempo há espaço para se reforçar os laços e se lutar junto.

O segundo desafio é a relação com o sindicato de motoboys de São Paulo. Por um lado, ele tem conseguido coordenar atos que reúnem um número razoável de motoboys e tem se colocado como parte de uma luta conjunta, não tendo a resistência comum no meio sindical de se misturar com terceirizados, na qual as empresas de aplicativo seriam o inimigo. Por outro lado, ele aposta na via jurídica, com manifestações em frente ao Tribunal Regional do Trabalho, e parece se interessar em formalizar parte dos entregadores para aumentar sua base. Também possui uma forte rejeição de grande parte dos trabalhadores, por ser identificado como oportunista e por não ter construído a mobilização desde o início e ter tentado se colocar como liderança.

A terceira questão é a construção de apoio social. Do ponto de vista das empresas de aplicativo o maior dano econômico não é a paralisação das entregas por um ou dois dias, e sim a alteração da avaliação da marca perante a opinião pública. O apoio dos demais trabalhadores que utilizam a plataforma para fazer pedidos parece continuar em alta. A cobertura da mídia continua destacando os pontos válidos da mobilização. Ao mesmo tempo, as empresas investiram pesado em propaganda e têm veiculado-as em diferentes serviços de mídia. Os agentes políticos do campo da direita liberal também entraram em campo, criando páginas e patrocinando os posts delas em redes sociais, falando da livre iniciativa dos entregadores. Por se tratar de uma mobilização em que o campo das redes sociais parece ser decisivo para determinar quem será vitorioso, convém não ignorar quem são os agentes presentes nelas. O levantamento feito por Fábio Malini indica que esse apoio foi generalizado, com exceção de poucos liberais e de perfis bolsonaristas que parecem associar a mobilização à esquerda. O levantamento indica também um perfil específico que merece atenção, o do Galo. O líder dos autointitulados “entregadores antifascistas” tem uma presença nas redes sociais completamente desproporcional a seu respaldo na categoria, gerando a rejeição entre os motoboys que associam sua figura ao oportunismo político. Por um lado, não convém alimentar uma figura tão rejeitada na categoria; por outro, não parece prudente abrir mão de um apoio relevante na articulação de apoios externos.

A quarta problemática se refere às medidas de relaxamento do distanciamento social que têm tido espaço no Brasil. Não por acaso, essa maior visibilidade e força da mobilização se deu no contexto de pandemia. Esses trabalhadores foram alçados a essenciais e ganharam muita visibilidade; ao mesmo tempo, tiveram seus riscos ampliados e seus ganhos reduzidos. O apoio maciço à mobilização deve ser compreendido como parte da valorização do distanciamento social enquanto medida fundamental na preservação da vida dos trabalhadores. Com o relaxamento das medidas de distanciamento, aqueles que se cadastraram como entregadores não irão voltar para seus trabalhos anteriores (porque eles provavelmente não existem mais). Ao mesmo tempo, alguns motoboys têm reclamado da queda de número de pedidos, o que tem pressionado os ganhos ainda mais para baixo. Já outros motoboys atentam que a pandemia fez com que mais estabelecimentos se cadastrassem e fez com que as pessoas começassem a pedir mais coisas por aplicativos, como compras de mercado. As atenções voltadas para os efeitos dessa abertura e a incerteza acerca dos ganhos no fim do mês exigirão um grande esforço dos motoboys e uma ação unificada para conseguir pautar claramente suas reivindicações.

O quinto aspecto a se atentar são as tentativas de cooptação da luta. Já foi analisada neste site uma possível resposta sendo gestada no interior das empresas, embora ela não pareça ter avançado muito após a mobilização. Contudo, a recuperação parece estar caminhando a passos largos pela atuação parlamentar, seja ela da esquerda, do centro ou da direita. O presidente da Câmara, habilmente, marcou uma reunião com entregadores logo após as manifestações, ouvindo as reivindicações e se comprometendo a pautar projetos de lei para regulamentar o trabalho. Cria-se, assim, a expectativa de resolução dos problemas pela via institucional, ao se dialogar com demandas práticas da categoria. Ao mesmo tempo, gera-se uma resposta de recusa a participar de mobilizações, pois agora começou a “politicagem”. Como já se escreveu aqui, a participação nesse tipo de reunião tem de ser pensada taticamente como forma de colocar reinvindicações concretas, sabendo que se está jogando no campo do inimigo. Em meio a essas repostas é importante destacar o projeto da deputada Tabata Amaral. A sua implementação garantiria importantes conquistas para os entregadores, como a descrição exata dos rendimentos, a implementação de uma remuneração mínima por hora, o pagamento da depreciação dos materiais, o salário maternidade e a possibilidade de recusar corridas sem penalização; ainda assim, o projeto manterá o status das empresas e continuará a deixar o trabalhador disponível por horas sem receber por isso. Nesse caso concreto, a simples recusa do grupo mais mobilizado de ir à reunião daria espaço para que outros fossem e ampliaria a capacidade dos gestores de contornarem as pautas concretas do movimento.

A mobilização em torno do dia 25 de julho parece estar consolidando um grupo de militantes ativos dentro da categoria, que conta com uma rede de apoios internos. Para a luta dos entregadores avançar parece necessário ultrapassar as desconfianças políticas internas, superar ilusões parlamentares e apresentar uma mobilização que compense os riscos econômicos individuais. Uma boa aposta para atingir isso é um forte foco na reivindicação de aumento das taxas e fim dos bloqueios. Ao mesmo tempo será preciso construir fortes laços com o conjunto dos trabalhadores para que as empresas de aplicativos se sintam pressionadas a ceder, independentemente de qualquer regulamentação legal. Talvez a defesa explícita das medidas de distanciamento social ajude a construir essa união.

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