Por Miguel Serras Pereira

Não é aqui o lugar para introduzir, ainda que a título apenas preliminar, a obra de Augusto Abelaira (1926-2003) [*], e de que modo a sua arte narrativa nos convida a retomar, e a levar a novas consequências maiores, a ideia de romance de herói problemático proposta por Lukács, na medida em que nos confronta com o problema da História, sempre em aberto, na história de cada problema mais irredutivelmente singular dos seus personagens.

Assim limitar-me-ei a fazer notar que Augusto Abelaira renovou radicalmente aquilo a que poderíamos chamar a dúvida metódica que sempre acompanhou e animou enquanto princípio e critério constantes as suas tomadas de posição críticas e políticas, sendo ao mesmo tempo como que uma premissa maior da sua criação romanesca. Renovou radicalmente a dúvida metódica tornando-a permanente em vez de simples ponto de partida pedagógico destinado a assegurar a propriedade de uma verdade definitiva e definitivamente ao abrigo de qualquer dúvida. Fazendo-o, não ficou atrás dos relativistas ou adeptos da desconstrução mais extrema, mas com uma diferença essencial, que o levou bem mais longe do que o simples relativismo e/ou a simples desconstrução podem ir. É que, do facto de não haver fórmulas de antemão garantidas ou definitivamente apropriáveis da verdade, do sentido ou fins da história, da justiça — ou ainda, noutro plano, do amor e da amizade — Abelaira concluía que teríamos de lhes abrir o caminho caminhando por nossa conta e risco, e não que todos os caminhos fossem igualmente ilusórios, que valesse tudo, ou que tudo fosse, no plano do pensamento ou da acção, indiferentemente equivalente.

Não posso alargar-me aqui na tentativa de documentar, visitando diversos momentos e lugares da vida e da obra de Augusto Abelaira, como e de que modo, para ele, a “longa conversa” do amor — a longa conversa com memória mas sem modelo anterior ou destino antecipadamente escrito, que é uma relação amorosa enquanto permanece e permanece em construção — é objecto de uma tematização como que solidária ou electivamente afim da exigência política da criação colectiva das condições, contra a dominação hierárquica de qualquer oligarquia, de uma arena democrática e dialógica, animada por um questionamento incessante e por uma interrogação tão ilimitada como interminável, arena que é ao mesmo tempo a via e a verdade da construção de uma sociedade justa — ou, se se quiser, da construção ou conquista da liberdade e da justiça como regime de governo que torna possível qualquer coisa como a “vida boa” na cidade. Mas, para abreviar, direi pelo menos que, se não me engano muito na formulação do meu juízo, este, ainda que tão sumariamente esboçado, fornece uma chave que nos permitirá compreender melhor a singularidade da figura cívica e pública de Abelaira.

À luz do que sugeri, compreenderemos melhor, com efeito, toda a história da sua passagem pelo semanário Vida Mundial, do qual foi director desde o imediato pós-25 de Abril de 1974 [o golpe militar que pôs fim ao fascismo. PP] até poucos dias depois do 25 de Novembro de 1975 [golpe militar de direita e extrema-direita que cancelou o período revolucionário. PP]. Dois episódios dessa época, durante a qual tive a sorte de trabalhar com ele na referida revista, serão suficientes, embora muitos outros, não menos elucidativos, tenham de ficar, entretanto, por contar. No auge do PREC [Processo Revolucionário em Curso, sigla usada pelos militares para referirem o período revolucionário de 1974-1975. PP], o diário O Século, controlado pelo PCP e pertencente à mesma empresa a que pertencia a Vida Mundial, publicou na primeira página uma nota em que Augusto Abelaira era denunciado como (sic) “O Advogado da Burguesia”. Eis o primeiro episódio. O segundo consistiu, imediatamente após o 25 de Novembro de 1975, no saneamento de Augusto Abelaira do cargo de director de uma revista cuja orientação era considerada subversiva pelos novos detentores do poder. Gostaria de terminar demonstrando brevemente que, a seu modo, tanto os detractores estalinistas de Abelaira como os saneadores subsequentes não se enganaram no alvo.

Augusto Abelaira não foi decerto “advogado da burguesia”, mas combateu sem concessões, e dirigiu uma revista em cujas páginas outros combatiam também, a teoria e a prática dos partidos que, em nome dos trabalhadores, se propunham dirigir e comandar o conjunto dos cidadãos comuns, negando-lhes o direito de decidirem dos seus próprios destinos, participando como iguais no governo da cidade. E isso, na época, fazia de Abelaira aos olhos do PCP um inimigo a abater.

Mas, também para os saneadores que o afastaram após o 25 de Novembro, a concepção que Abelaira tinha da democracia e do socialismo — coisas que, para ele, só podiam significar um regime instaurado, não pela designação, ainda que na base de eleições periódicas, de representantes hierarquicamente superiores aos representados, mas através da acção e da vontade da grande maioria dos homens e das mulheres comuns, ou seja: um regime que assentasse na igualdade do conjunto dos cidadãos em termos de participação no governo da cidade — essa concepção, dizia eu, não era menos subversiva, embora por outras razões, para os saneadores que o afastaram após o 25 de Novembro, do que aos olhos daqueles que anteriormente o acusavam de “advogado da burguesia”. Daí que, para começar, os saneadores em causa o tenham demitido da direcção da Vida Mundial, nomeando para o substituir Natália Correia, apesar de a maioria da redacção da revista se ter solidarizado com Abelaira, recusando-se a trabalhar sob a nova direcção.

Muito mais, como já disse, haveria para contar e dar-nos que pensar, ainda que só sobre a aventura da Vida Mundial. Mas, se para bons entendedores meia palavra basta, as duas palavras só meias que escrevi já contêm motivos de reflexão de sobra para os que hoje embarcarem na aventura de (re)ler Augusto Abelaira.

[*] Cf. a entrada referente a Augusto Abelaira no site da Direcção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB):

http://livro.dglab.gov.pt/sites/DGLB/Portugues/autores/Paginas/PesquisaAutores1.aspx?AutorId=9537

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