Por Jefferson Peixoto

Já antes da pandemia, professores costumavam realizar parte de seu trabalho em casa. Levar trabalho para casa pode ser um fator de adoecimento? Como isso se daria em outras profissões?

Levar trabalho para casa é algo com o qual os professores lidam de modo basicamente estrutural, ou seja, acaba sendo interpretado e aceito como parte da profissão mesmo antes de ingressarem nela, uma vez que cada aula pressupõe sempre um momento pré (o da preparação) e outro pós (o das correções, avaliações e reavaliações). A depender de como cada professor lida com esses dois momentos que antecedem e sucedem as aulas, o que geralmente tem muito mais a ver com os componentes do seu trabalho (isto é, nível de ensino em que atuam, quantidade de alunos e turmas, modalidade e sistema de ensino, duração da jornada, distância casa-trabalho etc.) do que com eventuais habilidades ou características pessoais, o trabalho do professor pode, neste aspecto, ocupar mais ou menos tempo da sua vida pessoal e familiar e, assim, gerar mais ou menos conflitos. Há, por exemplo, o conflito trabalho/família, de modo específico, e o conflito trabalho/vida privada, de modo mais geral. Isso porque geralmente é em casa, durante aquilo que deveria ser seu tempo livre (incluindo o fim de semana), que os professores preparam suas aulas e corrigem as atividades e provas, das quais precisam dar devolutiva aos alunos e escolas.

Nesse aspecto, o trabalho realizado em casa pode se transformar em um fator de adoecimento importante caso o tempo de dedicação a essa parte do seu trabalho (geralmente não remunerada e pouco reconhecida) seja muito elevado a ponto de gerar conflitos familiares e pessoais persistentes, como, por exemplo, minar as experiências de lazer, de tempo com a família e recuperação para o trabalho (enfim, o tempo para si). Isso não é incomum, pois devido a baixos salários e poucos investimentos na carreira docente, muitos professores têm de acumular cargos e, assim, assumem longas jornadas. Em alguns casos, somam também uma infinidade de alunos. Para professores de algumas disciplinas que possuem poucas aulas por semana na matriz curricular, como é o caso de disciplinas das ciências humanas como história e geografia, por exemplo, é comum que esses professores cheguem a ter algo em torno de 20 a 23 turmas com cerca de 40 alunos cada, o que dá algo em torno de 1.000 alunos. Isso pensando em uma jornada que pode chegar a cerca de 60 horas por semana.

Só a correção de tantas atividades e provas já se torna algo assustador, mas fica ainda pior se considerarmos que essas jornadas geralmente precisam abarcar turmas de diversas séries distintas, pois como essas disciplinas compõem apenas duas ou no máximo três aulas por semana em cada turma, dificilmente o professor conseguirá compor sua jornada de 40 a 60 horas semanais com turmas da mesma série. É preciso então diversificar e ir assumindo várias turmas de séries diferentes para conseguir compor a jornada. Com isso, é preciso preparar atividades muito diferentes também. Há professores de educação básica II e Ensino Médio, por exemplo, que chegam a ter alunos de todas as séries num mesmo ano letivo, do 6º ano do ensino fundamental, por exemplo, até o 3º ano do ensino médio. Assim, são basicamente 7 tipos de atividades diferentes a elaborar para cada aula num universo de quase 1.000 alunos. É natural que isso gere muito trabalho em casa e ocupe boa parte do tempo que deveria ser livre para recuperação e lazer do professor. Mas há um fator atenuante nessa questão: o retorno! Em situações em que há esse acúmulo, mas o professor sente haver reconhecimento e retorno do seu trabalho, tais condições adversas não chegariam a ser marcadamente nocivas.

Contudo, o que tem acontecido com os professores há algum tempo vai além disso. Tem a ver com outro tipo de carga de trabalho que eles têm enfrentado. Na situação anteriormente descrita o que causaria sofrimento, podendo levar ao adoecimento, seria, em linhas gerais, a falta de tempo para recuperação e a frustração de não tê-lo, enquanto o professor sabe que esse trabalho praticamente invisível que ele realiza em casa penaliza seu tempo livre. Isso pode gerar ansiedade, estresse e desgaste. O problema, contudo se intensificou, pois de certo tempo para cá, outros problemas ainda mais graves têm surgido e, dentre eles, o principal é a dificuldade que os professores têm enfrentado para conseguirem lecionar. Este pelo menos foi um dado central em nossa pesquisa [1].

Entrevistámos professores que relataram muitos casos de violência, indisciplina e rejeição às suas aulas. Isto foi mencionado por eles como aquilo que mais estava afetando sua vida pessoal cotidiana e sua saúde, porque, ao não conseguirem dar aula e sofrerem diversos tipos de violência vindos dos próprios alunos (razão de ser do seu trabalho), o sentido do trabalho vai se esvaindo e é isso que mais os estava impactado. Eles mencionaram, por exemplo, uma grande dificuldade em conseguir se desligar das frustrações que sofriam no trabalho. Constatámos então que não era o fato de levar o trabalho material para casa (trabalho material como preparação de aulas, correção de provas etc.) que mais estava afetando os professores, mas sim o de levar “o trabalho”, isto é, as frustrações e o abalo emocional de enfrentar dias de trabalho não realizados porque os alunos rejeitavam suas aulas. Assim, passámos a considerar dois tipos de repercussão do trabalho sobre a vida pessoal dos professores: a repercussão de tipo material e a de tipo não material (emocional).

Ficou claro que esse impacto emocional fazia com que o professor levasse o trabalho para casa em termos emocionais e tivesse dificuldade de se desligar disso. Ao falarmos das repercussões de levar o trabalho para casa entre os professores, é sempre importante então considerarmos estes dois aspectos, ou melhor, as duas dimensões do trabalho que são levadas: a material e a emocional. Outro elemento central a destacar é o reconhecimento. Ficou claro que o principal problema enfrentado não era nem o caso de levarem trabalho para casa, mas sim o de fazerem tudo o que fazem, de tentarem tudo o que tentam e, ainda assim, sentirem que seu trabalho era rejeitado. A falta de reconhecimento e retorno no trabalho é um fator de sofrimento psíquico já conhecido. No caso dos professores, parece que o sofrimento tende a ser muito profundo, tanto por se tratar de uma profissão enxergada geralmente como uma missão, como também porque há todo esse esforço de um trabalho quase invisível realizado antes e depois da jornada formal que, como tal, acaba por também não ser reconhecido. Entrevistámos professores que disseram algo do tipo: “se a gente tivesse todo esse trabalho, mas chegasse na aula e os alunos estivessem lá querendo nos ouvir e aprender, então tudo faria sentido. Mas não é isso o que acontece”.

Ao tentarmos então entender como o trabalho realizado em casa por professores pode gerar adoecimento e como isso pode ser comparado com o trabalho (em casa) de outros profissionais, os elementos estruturantes básicos a ser destacados talvez sejam os mesmos, isto é: 1) quanto conflito trabalho/vida pessoal esse trabalho realizado em casa está gerando? 2) como se dá esse conflito e como tem sido sua administração? 3) quanto de dificuldade a pessoa está sentindo para conseguir se desligar do trabalho e estabelecer as alternâncias entre trabalho e não-trabalho? 4) qual é o retorno/reconhecimento que se está conseguindo obter desse trabalho? e 5) qual é o nível de controle que se tem sobre o próprio trabalho e as demandas recebidas?

A resposta a essas questões, consideradas de acordo com cada contexto e natureza de cada atividade, é que pode, em linhas gerais, nos mostrar se o trabalho realizado em casa está tendendo a gerar sofrimento e adoecimento ou não, assim como revelar também se há semelhanças ou não com aquilo que ocorre na profissão docente. Assim, se o trabalho está: a) gerando conflitos persistentes com a vida pessoal e familiar; b) produzindo dificuldades de conseguir se desligar e alternar entre tempo de trabalho e tempo de não trabalho; c) trazendo sensação de não reconhecimento e/o ou não retorno e, sobretudo, gerando uma demanda muito incompatível com o controle que se tem sobre o processo de trabalho, o alerta de que a situação pode estar no seu limite deve ser acionado. Neste sentido, a experiência dos professores nos mostra que a invasão da vida pelo trabalho pode levar a estes desequilíbrios e que isso pode ser nocivo à saúde, principalmente a mental.

A publicação foi ilustrada com obras de Nikolay Bogdanov-Belsky (1868-1945)

 

Notas

[1] SILVA, J. P. da; FISCHER, F. M. Invasão multiforme da vida pelo trabalho entre professores de educação básica e repercussões sobre a saúde. Revista de Saúde Pública, vol. 54, nº 3, 202

Este artigo foi dividido em quatro partes:

A primeira parte pode ser lida aqui.

A terceira parte pode ser lida aqui.

A quarta parte pode ser lida aqui.

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