Por Manolo

Ao olhar para a história urbana, para a história das cidades, vem à mente de imediato uma situação cuja explicação pede um paralelo, uma digressão.

Reduzidíssimo é o número de marxistas conhecedores da polêmica obra Zur nationalen Frage. Friedrich Engels und das Problem der ‘geschichtslosen’ Völker, de Roman Rosdolsky (Berlim: Olle & Wolter, 1979). Neste pequeno livro Rosdolsky demonstra com abundância de documentos como, no trato de assuntos da política internacional e da revolução em diversos países, não poucas vezes os fundadores do “socialismo científico” trocaram a perspectiva de classe pela dos interesses nacionais. Impossibilitados de negar a letra fria de seus mestres, todas as tentativas dos marxistas de refutar as conclusões de Rosdolsky resultaram na sua reafirmação: acusam o autor de não ter “entendido a dialética” e de não analisar concretamente os interesses da classe trabalhadora — com o que os acusadores reintroduzem, sob novas bases, a mesma problemática denunciada… Marx e Engels seguiram a este respeito os passos de seu próprio mestre Hegel, apresentados em seus Grundlinien der Philosophie des Rechts (§§ 341-360): frente aos povos dominantes em cada momento histórico, “nenhum direito têm os outros povos que, tais como aqueles que já representaram uma época passada, nada são na história universal” (§ 347). É a apologética dos “vencedores” — ainda que o “jogo” ainda esteja em curso.

Tão pervasiva é a influência de Hegel, Marx e Engels sobre o pensamento ocidental que mesmo seus equívocos mais grotescos — como também o recapitulacionismo pseudocientífico, igualmente defendido ainda hoje pelos epígonos de Marx e Engels, de que “as formações mais avançadas explicam as menos avançadas” — encontram solo fértil e produzem até hoje estragos consideráveis. Veja-se o caso das cidades. Qualquer assentamento humano — e também, por óbvio, as cidades — é palco e produto de conflitos sociais. Qualquer fenômeno urbano pode — e deve — ser entendido à luz de sua inserção na malha global de relações sociais conflituosas que constrói o capitalismo. O que se vê na reflexão e na prática destas disciplinas, entretanto, são variações em torno do tema dos “sem história”.

Veja-se a este respeito o caso das cidades ditas históricas — cujo próprio status expressa a fetichização do passado, para a alegria da indústria do turismo. A prédios representativos do estilo arquitetônico de certa época, assim como ao desenho urbano formado pela sua distribuição no espaço, é atribuída agora a aura de arte e historicidade que talvez jamais tenham algum dia possuído à parte de seu aspecto utilitário. A matéria histórica que se presencia ao visitá-los está lá, cristalizada, e ao mesmo tempo problematicamente reinserida no presente — porque mediada por todo um aparato de policiais, guias turísticos e especialistas a separar os visitantes da vida social “sem história” que se desenvolve nas proximidades. Nestas cidades, frações reduzidíssimas do espaço urbano atual são sobrecarregadas de significado para formar a imagem da cidade — relegando os demais territórios que a constituem a um status “sem história”, porque desconectados destes significados históricos à força de muita repetição, propaganda e ideologia.

Veja-se agora o caso dos bairros onde moramos nós, trabalhadores — desde sempre enquadrados no imaginário citadino como lugares de crime, miséria e insalubridade. Raros são aqueles que dedicaram-se, de algum modo, a retratá-los: Lima Barreto (Clara dos Anjos, mas não só), António de Alcântara Machado (Novelas Paulistanas), Jorge Amado (a zona portuária e os arrabaldes soteropolitanos são quase onipresentes na obra amadiana: Capitães da Areia, Jubiabá, Tenda dos Milagres)… Em especial quando surgidos das ditas “invasões”, nossos bairros são categorizados pela má consciência dos acadêmicos e filantropos como objeto de estudos ou ações caritativas. Pouco importa que sejamos nós, deslocando-nos em movimentos pendulares, os produtores das riquezas das cidades; somos tratados como objetos, sujeitos objetificados, “sem história”, chamados a falar apenas quando pretende-se explicar, por contraste, o desenvolvimento das áreas empregues para formar a imagem da cidade. É como se, negados os nossos direitos, os sujeitos históricos construtores destes territórios populares — sejam os de agora, sejam nossos antepassados — tivéssemos negado também nosso direito à representação histórica, negado também nosso status de agentes construtores da História tão legítimos quanto qualquer outro.

Numa sociedade humana, tudo, literalmente tudo, tem história. Virando de cabeça para baixo a perspectiva para privilegiar a voz dos “sem história”, percebe-se como a formação dos territórios urbanos é rica, plural, diversa, impossível de subsumir às narrativas oficiais. Entender e participar da vida nos bairros ditos “sem história”, partilhar das lutas e experiências neles desenvolvidas, é ponto de partida fundamental para a explicitação dos conflitos sociais em que estamos inseridos, para assim melhor lutarmos contra a tragédia de nossa exploração.

Ilustram este artigo fotografias de Vinicius Ribeiro/Fotoguerrilha

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