Por Miguel Serras Pereira
Freud, inesgotável. Até quando, por exemplo, diz, numa espécie de simplificação coloquial, que a cura, a análise, é como uma segunda educação, e nós, se soubermos acompanhar o que precede e decorre da conclusão, nos damos conta de que essa educação não consiste na transmissão de um saber, nem tão pouco na exposição e revisão mental da matéria dada, mas na aprendizagem de um diálogo interminável, e interior aos trabalhos e aos dias de cada um de nós, da alma consigo própria, e que ela mantém ao contacto e através da carne — desse “instante” da carne do mundo que somos no mais fundo ou mais sem fundo de nós próprios — cujo pulsar a alimenta. Independentemente do setting, mais ou menos clássico, em que se desenrola a aprendizagem, digamos que, portanto, esta não pode dar-se por suficientemente conseguida antes de se descobrir interminável. E descobrir também interminável o exercício dessa reflexão de cada um entre os seus iguais, interior à acção comum, cuja exigência a interrogação filosófica nos lembra e põe na ordem do dia, e que é também condição necessária da racionalidade distintiva de qualquer forma de cidadania democrática efectiva ou, por outras palavras, governante.
De facto, interrogar a “instituição de si”, a identidade instituída e herdada que resulta da socialização do indivíduo humano, é circularmente efeito e condição do projecto de uma sociedade autónoma que, reconhecendo-se como sendo ela a dar-se, por conta e risco próprios, as suas próprias instituições e leis, as dessacraliza e pode e deve transformar, ou manter em aberto — indefinidamente.
Mas, voltando atrás, no termo dos meus anos de “segunda educação”, tentei vê-la melhor, contá-la um pouco mais, retomá-la num outro registo no poema que se segue, reiterando assim uma parte do que pude aprender, acompanhado pelo meu analista, que é o “tu” desta saudação — ou “à saúde” — que lhe dediquei há mais de trinta anos. Ou se se preferir, por outras palavras, não só mas também, agora mesmo.
Entre dois dias
À tua volta agora é tudo azul
tudo é azul dentro de mim
e dentro de mim é tudo à tua volta
Aqui entras na sala e acendes o cachimbo
ou sobes as escadas para o sótão
onde ficas silencioso
a contemplar o céu e os muros
da janela entreaberta do telhado
Ali ao mesmo tempo estás comigo
na encosta da colina sobre o rio
e ambos olhamos os barcos e as aves
uma brisa talvez mais antiga do que a terra
nos rebentos dos salgueiros da outra margem
As águas passam por ti
e tu ficas junto às águas que perpassam
Vens sentar-te muito perto dos meus ombros
de regresso ao tempo dos gigantes
E então acendem-se à distância
invisíveis armários suspensos das paredes
onde cheiro o verão nos bosques e a erva
os cachos de uvas comidos à lareira
ou pendurados das traves do tecto a descoberto
para os primeiros dias de neve do inverno
Por um momento encontro ainda o teu olhar
e atravesso a sua claridade desdobrando-o
nos campos onde o feno
cresce à altura dos cavalos
por entre os quais avança já uma criança
para abrir de par em par as portas do castelo
Tu estás no limiar da torre
olhando as estradas
que pelo tempo fora nascem de partida
Depois afastas-te mostrando-me a passagem
e vamos cada um pelo seu lado até amanhã
por onde o caminho de novo não tem fim
ONFALOSCOPIA AUTOTÉLICA
beAMONGtween υγεία και χαρά & CASTORIADIS PSICANALISTA…