Por Jan Cenek

“De tudo fica um pouco” – escreveu Drummond: “Do meu medo. Do teu asco. Dos gritos gagos. Da rosa ficou um pouco. Ficou um pouco de luz captada no chapéu.” Dos povos que habitavam o Brasil ficaram palavras que dão nome a cidades, ruas, biomas, rios, praças, parques, bairros, serras. Aiuruoca (casa do papagaio), Gurupá (porto de canoas), Caatinga (mata branca), Ypuera (água podre), Boturoca (refúgio da montanha), Ibirapuera (pau podre), Butantã (terra dura), Mantiqueira (serra que chora). Imagino um porto de canoas na água podre, um refúgio na serra que chora, uma casa de papagaio escondida na montanha, um pau podre na terra dura da mata branca. São palavras carregadas de poesia. Se eu tivesse a capacidade poética de um Drummond, escreveria poemas a partir de palavras dos povos indígenas, mais ou menos como o poeta itabirano escreveu a série Boitempo com recordações da infância. Na verdade, tentei fazer poesia com algumas palavras do tupi, mas avancei pouco, como se toda arte já estivesse no idioma.

Iquiririm é um dos muitos rios canalizados da cidade de São Paulo. Eu dizia Iquiririm e imaginava o som de pássaros e grilos, imaginava as águas lambendo as pedras, imaginava o lamento do rio. Iquiririm: palavra simpática, agradável, refrescante, primaveril. O Iquiririm nasce numa região de mata dentro da Universidade de São Paulo (USP). A nascente foi libertada pelo coletivo Rios e Ruas. As águas descem o morro, atravessam um buraco aberto no bizarro muro da universidade, percorrem uma praça antes de serem canalizadas, enterradas e desaparecem por baixo da cidade. Se digo “bizarro muro da universidade” é porque a USP deveria tratar melhor as nascentes e ser exemplo de urbanismo. Mas o máximo que faz é permitir a presença de um buraco no muro para que as águas passem. Isso até que algum burocrata mude de ideia e mande fechar o muro e enterrar novamente as águas.

Eu conhecia o Iquiririm porque acompanho o trabalho do coletivo Rios e Ruas. Mas não sabia exatamente onde ficava a nascente. Era janeiro. Fazia um calor amazônico e eu andava angustiado e sem rumo quando percebi que estava perto do Iquiririm. Havia passado na rua Iquiririm. Havia a mata, o barranco, a horta comunitária, os pássaros, o portão da USP, o chão úmido denunciando a presença de águas enterradas e canalizadas. Percorrendo a rua Corinto avistei uma das nascentes e me aproximei. A primeira sensação foi de alívio proporcionado pela sombra das árvores. Na sequência cumprimentei um homem, M., que estava perto das águas e olhava para mim. Não lembro exatamente como e por quê, mas começamos a conversar. Foi estranho. A conversa avançou rápido para questões pessoais e existenciais, como se nos conhecemos há décadas, como se tivéssemos marcado um encontro ali. Perdi a noção do tempo.

M. falou sobre o deus dele, que estaria em tudo, inclusive em mim. Logo em mim? – pensei. Tive vontade de contar que sou ateu, tivesse uns 20 anos a menos certamente teria comentado e talvez rompido o diálogo. Tive vontade de perguntar se o deus dele estava também nos rios canalizados e no bizarro muro da USP, que barra a visão das águas do Iquiririm, mas evitei a polêmica. É uma lição que aprendi com os anos: nem sempre é necessário polemizar, há coisas que não precisam ser ditas. Comentei sobre a poética das palavras indígenas: Itanhaém (pedra que canta e/ou chora), Jaraguá (senhor do vale), Anhangabaú (rio do espírito mau). Contei que tenho vontade de conhecer cidades distantes apenas pelos nomes que têm, como Inhangapi (caminho do diabo ou caminho do veado), no Pará. M. falou sobre a palavra Iquiririm, explicou que significa rio silencioso. Não resisti. Contrariei o princípio de que há coisas que não precisam ser ditas. Perguntei se deus estava também na poesia das palavras indígenas. Ele pareceu estranhar antes de concordar. Depois comentou a importância do silêncio, do verde e da sombra numa cidade caótica como São Paulo. Disse que estava com problemas familiares e profissionais, que buscava a nascente do Iquiririm para se acalmar e relaxar. Foi exatamente o que encontrei ali. Senti-me integrado na natureza e com M. Comentei que Iquiririm era o rio silencioso, que acalma, relaxa e aproxima.

Desde daquele dia passei a visitar a nascente do Iquiririm sempre que posso. Parar. Relaxar. Abaixar. Apanhar um punhado de água fresca e molhar o rosto revigora. O contato com a natureza revigora. O silêncio revigora. O som dos bichos revigora. Nunca mais encontrei M. Mas não importa. Compartilhamos uma tarde, ou uma parte de uma tarde, e muito mais. “De tudo fica um pouco. Não muito: de uma torneira pinga esta gota absurda” – cravou o poeta de Itabira. Aliás, Itabira: pedra que brilha. Pico do Cauê. Puro minério de ferro, 1.600 metros de altitude. Ou melhor, pedra conjugada no pretérito imperfeito – pedra que brilhava –, porque o pico do Cauê foi destruído pela Companhia Vale do Rio Doce. No meio do caminho tinha uma pedra, tinha uma pedra que brilhava no meio do caminho, até que – como denunciou o poeta – foi “britada em bilhões de lascas deslizando em correia transportadora entupindo 150 vagões no trem-monstro de 5 locomotivas”. Do antigo pico do Cauê ficou uma imensa cratera: o buraco do Cauê, para os itabiranos; a montanha pulverizada, segundo Drummond. Do Iquiririm ficou a nascente atravessando o bizarro muro da USP: gotas absurdas pigando do muro absurdo. Do meu encontro com M. ficaram dois homens conversando sobre deus, poesia e a vida perto do rio silencioso, encostados no muro da universidade, numa tarde quente: um enxergando deus em absolutamente tudo, outro não enxergando deus em absolutamente nada.

P.S.: O texto já estava concluído quando soube que o coletivo Rios e Ruas está lutando para “desenterrar” e “descanalizar” o rio Iquiririm. Que assim seja. Que o rio silencioso seja o primeiro de muitos outros em São Paulo e no Brasil. Que os verbos “desenterrar” e “descanalizar” sejam dicionarizados e usados ampla e irrestritamente, sem aspas. Na simpática Vila Indiana, ao lado da USP, a rua Iquiririm (rio silencioso) cruza a rua Boturoca (refúgio da montanha). Um rio silencioso no refúgio da montanha! Uma das nascentes do Iquiririm fica justamente na rua Boturoca. Fico pensando que o “desenterro” e a “descanalização” do Iquiririm podiam começar pela “destijolização” do bizarro muro da USP e depois avançar pela simpática Vila Indiana. Fico pensando que nunca mais encontrei M., quem sabe o encontre algum dia nas margens libertadas do rio Iquiririm. De tudo fica um pouco, escreveu o poeta, mas dos rios canalizados fica quase tudo: as nascentes, as lembranças, as possibilidades, o caminho das águas – que sejam “desenterrados” e “descanalizados”, basta “desenterrá-los” e “descanalizá-los”!

4 COMENTÁRIOS

  1. A poética do seu texto flui como o Iquiririm descanalizado. Se eu fosse poeta quereria dar a meus versos a violência da natureza para experimentar por eles a liberdade na ventania que a tudo arrasta. A natureza selvagem, sem a bela prisão dos jardins. Mas dia desses descobri uma bela praça próxima da USP, no Jardim Bonfiglioli, à beira da rodovia. Era tão bonita que eu esqueceria lá meu esqueleto para que se juntasse à paisagem. É uma praça sedutora onde o sol brilha como não brilha noutras praças.

    O amor à natureza morta, no entanto, é o preço último de toda civilização e não tarda o avanço do agronegócio e da especulação imobiliária, que estão por trás da atual tragédia no Sul, sobre as praças das cidades. Mas a despeito de tudo Rios e Ruas devem existir e resistir.

  2. Legal! Por coincidência, morei na Vila Indiana, 1987/1991. Todos os dias atravessava a Iquiririm e subia a Corinto, minha rua era à esquerda. Do meu Ap, observava e fotografa a destruícão da nesga da Mata Atlântica que restava (além da área do Instituto Butantã que ainda está lá). Era para levantar a meia dúzia de torres residenciais que existem, no limite privilegiado da USP. Montaram até serraria ensurdesedora e desciam caminhões enormes, com toras gigantes, enquanto me doía e me desesperava. Ainda não fervia a discussão ambiental como hoje. Apurei que havia Ermírio de Moraes e uma negociata com INSS. Eles foram muito rápidos. Destruiram tudo, a montante da nascente do Iquiririm.

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