Por Jefferson Peixoto

O trabalho em home office que tem acontecido durante a pandemia de covid-19 é um fator agravante para a saúde? Se sim, como isso se daria? Já é possível observar alguma mudança em tal contexto?

De modo geral, a simples presença de uma mudança no contexto de trabalho, dependendo de como ela é introduzida, constitui-se em uma fonte de riscos em potencial. No mínimo, pode se tornar um agente estressor. Não à toa, alguns dos principais modelos de investigação de acidentes do trabalho têm por princípio questionar se houve mudanças no processo de trabalho antes da ocorrência de algum acidente que se destinam a investigar [1]. A análise de mudanças constituiu um dos principais elementos a ser considerados em tal investigação porque ela procura por um fator novo que, ao ser introduzido, pode provocar a desestabilização de um sistema ou de um processo de trabalho, ferindo o equilíbrio e predispondo a eventos indesejáveis como acidentes e/ou adoecimentos do trabalhor (e aqui é importante ressaltar que as doenças ocupacionais são tomadas como parte do conceito de acidentes de trabalho). É claro que isso não significa dizer que os acidentes de trabalho decorrem sempre e somente de mudanças, mas que as mudanças são, sim, elementos importantes a se considerar nesse contexto.

Do modo abrupto como a pandemia de covid-19 chegou e se impôs, diversas atividades de trabalho tiveram de ser transferidas para casa de uma hora para outra, sem o devido preparo. Só isso já trouxe, sem dúvida, muito estresse e ansiedade. De modo geral, há muitos profissionais que até viam a possibilidade de trabalhar em casa como algo positivo, mas isso vai depender sempre do modo como acontecer, das condições que forem oferecidas e dos ajustes que forem realizados. Convenhamos, então, que essa transição abrupta devido à pandemia não se deu nas melhores condições, até mesmo porque além da falta de tempo e de condições para o devido preparo, junto com a mudança veio toda a tensão causada pelo próprio medo do contágio.

Com o tempo, essa situação, que já se iniciou de modo estressante, foi ficando ainda mais dramática porque se deu dentro de um contexto em que as fontes de tensão foram se intensificando e as fontes de compensação foram se fechando. Após uma semana conturbada de trabalho, por exemplo, muitos podiam encontrar um jeito de extravasar e aliviar a tensão saindo para uma caminhada, para um passeio com a família ou amigos e mesmo para uma viagem curta. Agora, com a pandemia, muitos se tornaram, de certa forma, prisioneiros dentro de suas próprias casas e isso é bastante difícil de lidar, pois, desse modo, a casa deixou de ser o lugar de descanso para ser também e ao mesmo tempo, o lugar de trabalho.

Às tarefas domésticas e ao cuidado com os filhos, que já eram rotineiros, se somou também o trabalho em casa, e isso colocou a noção/sensação de deveres a cumprir no mais alto ponto da vida cotidiana, principalmente para as mulheres. Mas não parou por aí, pois a pandemia trouxe outros eventos como as aulas das crianças também em casa (geralmente no mesmo horário de trabalho dos pais, requerendo mais de um computador e boa conexão com a internet, nem sempre acessível), a exigência de um maior cuidado com a higiene (as idas aos supermercados, por exemplo, se tornaram verdadeiras operações de guerra com necessidade de higienização das compras e utensílios utilizados, tais quais carrinhos de compras e sacolas), enfim, é como se nos tornássemos prisioneiros dos deveres e do trabalho dentro das nossas casas, sem a possibilidade de sair para aliviar a tensão sem que isso trouxesse ainda mais tensão.

Assim, a vida em tempos de pandemia passou a ser um contínuo de medo, tensão e deveres a cumprir, não só para quem está nas atividades essenciais, saindo às ruas e se submetendo a um maior risco de contágio, como também para quem está em casa. Guardadas as devidas proporções, embora o risco de contágio seja diferente, o medo do contágio pode ser elevado para ambos, pois além do dado objetivo, há sempre o elemento subjetivo chamado percepção. O cenário está longe de ser equilibrado e, como tal, certamente se constitui em algo nocivo para a saúde, principalmente a mental. Com isso, a preocupação central passa a ser justamente com a saúde mental. Já há diversos relatos na mídia sobre mudanças de comportamento e reflexos negativos do isolamento sobre as pessoas, tais quais o aumento do consumo de álcool e de psicofármacos, o aumento da violência doméstica e também as altas em casos de suicídio, chamando a atenção para os efeitos trágicos que tudo isso pode causar.

Entre os professores, do mesmo modo que aconteceu com outros profissionais, a transição para o trabalho contínuo realizado em casa não foi devidamente planejada e a separação entre a vida pessoal e o trabalho ganhou contornos dramáticos, uma vez que esses limites praticamente desapareceram e só o dever restou.

Embora isso também seja verdade para outras profissões e atividades e, de certa forma, muitos professores já estivessem habituados a realizar parte do seu trabalho em casa, o fato é que aquele trabalho que já tendia a invadir a vida [2] foi multiplicado muitas vezes mais, se intensificando de modo assustador. Os tempos de sala de aula e de trabalho em casa foram repentinamente conjugados e o ônus de sua operacionalização atribuídos ao professor. Tendo ou não os recursos necessários, o comando estava claro: dê aula à distância. O computador? O seu pessoal. A internet? A mesma coisa. O contato com os alunos? Organizem! O conhecimento para preparar as aulas à distância: cada um procure um curso ou faça com o que já sabe! Somada a isso, uma série de outros novos problemas e desafios surgiu, tais quais os de criar salas virtuais para a participação de alunos que sabidamente nem sempre teriam os recursos necessários para acessar, o recebimento de centenas de mensagens simultâneas de alunos e pais de alunos em grupos de whatsapp, a atenção dividida entre os diversos comandos que foram surgindo e as distintas modalidades pouco sincronizadas dos canais oficiais (redes de ensino), e tudo isso considerando o fato de que ainda havia um grande contingente de alunos excluídos, carecendo de outro tipo de preparação de aulas e acompanhamento de atividades. Despontaram os casos de professores entregando atividades para alunos nas portas de suas casas para pais retirarem e depois devolverem.

Acontece que quanto menor a idade/série dos alunos, maior o desafio de preparar e operacionalizar a ação educativa. Neste processo, muitos pais passaram a se queixar de ter de aplicar as atividades para seus filhos e, com isso, se sentirem no papel do professor, o que gerou desconfiança, revolta e estresse para ambos. Além de tudo isso, ainda há os conflitos de horários em que professores precisam estar ao mesmo tempo atendendo alunos e participando de salas virtuais de discussão e reunião com seus coordenadores e gestores, além das aparições repentinas de pessoas alheias às aulas nas telas e microfones dos computadores de alunos, gerando bons memes, por um lado, mas aborrecimento e estresse por outro. O trabalho do professor, que já era intenso, difícil e estressante, de repente “se multiplicou por cinco” como disse uma amiga professora com quem conversei recentemente. A mesma ainda me confessou que “se me dissessem que o meu trabalho seria assim para sempre, eu não aguentaria”.

O que se pode fazer para evitar esses efeitos?

Em se tratando de segurança e saúde ocupacional, o melhor é sempre atuar sobre as causas dos problemas, não sobre as consequências, pois isso não é suficiente. É atuando sobre as raízes que se pode evitar a recorrência e o agravamento dos problemas.

Neste tempo de pandemia e principalmente considerando o contexto do home office, é crucial procurar perceber em que medida os limites entre as atividades da vida pessoal e da vida profissional estão delineados, e quanto menos visíveis eles forem, maior deve ser o esforço para restaurá-los. Neste processo, é importante admitir as próprias limitações e evitar cair na cilada da onipotência. Nem tudo está sob nosso controle e ter consciência disso é fundamental. Não somos onipotentes, temos limites. É preciso saber se dedicar ao máximo e dar o melhor de si, mas é também preciso saber a hora de diminuir, de redimensionar ou mesmo de parar, até porque para continuar fazendo o que se faz, é preciso estar bem. Um trabalhador doente não poderá realizar o trabalho e uma pessoa que não consegue alternar entre trabalho e não-trabalho vai acabar adoecendo, não aguentará por muito tempo. Não há processo de trabalho saudável sem pausas e tempos de recuperação para o trabalho.

O que o trabalhador irá colocar à sua disposição para se recuperar e usufruir do seu tempo livre é algo que deve passar em primeiro plano pelo campo dos interesses e fontes de bem estar do próprio indivíduo, mas é imperativo que ele tenha esse tempo livre. Ao usufrui-lo, é importante considerar também as especificidades do momento atual. Como o isolamento tem sido uma constante e pode gerar problemas à saúde mental, é sempre importante pensar em formas de prevenir tal tipo de adoecimento. Neste sentido, atividades como conversar com amigos, dançar, cantar e se exercitar (mesmo em casa) são indispensáveis. Se alimentar bem e ingerir alimentos ricos em nutrientes que atuam sobre o humor também ganha destaque, assim como seguir dicas da própria sabedoria popular como tomar sol, dormir bem e cultivar as boas relações pessoais. Mesmo isolados devido à pandemia, há muitos grupos promovendo encontros virtuais de amigos, por exemplo.

O importante aqui é que essas atividades sejam feitas com a consciência de que estão sendo empregadas para a saúde e o bem estar enquanto direito e necessidade que o trabalhador tem de usufruir seu tempo livre. Meditação e ginástica, por exemplo, também são boas opções. Além de poderem trazer novas experiências, podem favorecer o bem estar e atenuar tanto a tensão que o isolamento tende a gerar, como a sensação de medo que o vírus trouxe. Mas essas atividades devem ser sempre encaradas como complementares, pois o principal é se lembrar da regra de ouro: atuar sobre os determinantes.

Infelizmente, nem sempre (ou melhor, na maioria das vezes) estes determinantes estão ao alcance dos próprios trabalhadores, por isso é preciso que os órgãos responsáveis pela organização do trabalho tenham esse compromisso de olhar para as condições, para o ritmo, para o conteúdo e para a carga de trabalho que estão lançando sobre os trabalhadores quarentenados, comprometendo-se com ajustes que promovam a saúde e o bem estar dos trabalhadores, de acordo com suas necessidades e especificidades. Isto porque de nada adiantará mediar ou fazer ginástica se o indivíduo é obrigado a lidar com pressão psicológica constante, assédio moral, carga de trabalho e jornadas extenuantes, por exemplo. Em outras palavras, 15 minutos de ginástica por dia pode ajudar muito, mas pouco efeito prático terá se não estiver em sintonia com outras medidas mais estruturais advindas da própria forma de organização do trabalho. Pouco adiantará, por exemplo, passar 15 ou 30 minutos fazendo ginástica se depois o indivíduo vai ter de passar 12 ou 14 horas contínuas sentado numa cadeira com os olhos grudados em uma ou mais telas para dar conta de prazos e demandas acima das suas reais possibilidade e/ou submetido à pressão psicológica de uma gestão adoecedora. Além das muitas horas citadas, as restantes certamente serão revivendo as marcas do abalo emocional sofrido, algo do qual nunca é fácil conseguir se desligar.

Para evitar efeitos indesejados o caminho é claro: o trabalho deve se adaptar ao homem, como reforça a ergonomia. Um dos caminhos mais efetivos para uma vida saudável é ter um trabalho que não seja adoecedor. Em tempos de pandemia, não é só o volume, a intensidade e o avanço do trabalho sobre a vida pessoal que tendem a aumentar, o sentido desta afirmação também. Não ter um emprego ou perdê-lo por conta da pandemia não é bom. Mas ter um que adoeça não se justifica, pois levar ao adoecimento não é nem de longe o objetivo de nenhum trabalho ou emprego. Por isso, é importante todos ficarem atentos aos pré-requisitos para o trabalho saudável: tanto trabalhadores, como também empregadores, sejam eles pessoas físicas ou jurídicas de natureza pública ou privada.

A publicação foi ilustrada com fotografias do Atlas Farnésio, escultura romana do século II.

 

Notas

[1] ALMEIDA, I. M.; VILELA, R. A. Modelo de Análise e Prevenção de Acidentes de Trabalho — MAPA. Piracicaba: CEREST Piracicaba, 2010, p. 52.

[2] SILVA, J. P. da; FISCHER, F. M. Invasão multiforme da vida pelo trabalho entre professores de educação básica e repercussões sobre a saúde. Revista de Saúde Pública, vol. 54, nº 3, 2020.

Este artigo foi dividido em quatro partes:

A primeira parte pode ser lida aqui.

A segunda parte pode ser lida aqui.

A quarta parte pode ser lida aqui.

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