Por ACTA

Emmanuel Macron expressou em alto e bom som durante seu segundo discurso presidencial na segunda feira, 16 de março: “Nós estamos em guerra!”. Uma exclamação repetida seis vezes em vinte minutos. Uma guerra sanitária contra um inimigo invisível e evasivo, que avança a cada dia conquistando novos territórios e se infiltrando cada vez mais em novos espaços sociais e geográficos. Uma guerra difícil e insidiosa, que requer, portanto, a mobilização por completo do aparato estatal, ao qual — em vista do tamanho da tarefa — devem ser dadas as melhores condições para agir, inclusive contornando os procedimentos legislativos normais. Uma guerra que, para ser vencida com sucesso, deve ter o apoio incondicional de todos os enfants de la patrie [os filhos da pátria, celebrados no hino nacional francês]. Somente a unidade nacional vai garantir a vitória. Sem essa unidade, todo o esforço de guerra pode ser em vão. “O Estado vai pagar!”, nos disse o presidente da República. Cabe a nós assegurar que essa vaga promessa se torne uma palavra de ordem política. No entanto, se a pandemia certamente representa a maior ruptura na atual conjuntura, a sequência de eventos inaugurada pela mobilização contra a Lei Trabalhista em 2016, depois expandida pelos Coletes Amarelos em 2018-19 e novamente pela greve contra a Reforma da Previdência em 2019-20 ainda representa um dos maiores campos de batalha políticos de nosso tempo.

Denunciando a repressão

Desde a Guerra da Argélia — o momento constituinte da Quinta República — a maioria das crises que sacudiram a França foram enfrentadas pela mobilização de um estado de emergência. Com a notável exceção do Maio de 68, sempre que a correlação de forças foi posta em perigo por levantes populares, os governantes de então pediram a suspensão temporária do ordenamento jurídico. A genealogia colonial deste aparato legal é bem conhecida [1] e é confirmada por seu uso repetido na história recente: três vezes nos Territórios Ultramarinos [os remanescentes do império francês na África, no Pacífico e no Caribe] durante a década de 1980, por várias semanas durante os tumultos franceses de 2005 nos banlieues e ininterruptamente entre 2015-17 em seguida a ataques terroristas. Desde 2017, as principais prerrogativas garantidas pelo estado de emergência foram incorporadas na lei comum, fortalecendo o poder de tomada de decisão do executivo e aumentando o espaço de manobra dos corpos jurídicos e policiais do aparato de segurança estatal. A virada autoritária em curso em muitas democracias ocidentais encontra assim na França um lócus visível de cristalização. A crise do coronavírus com certeza acentuou estas tendências já existentes, e a Lei de Emergência Sanitária é explicitamente inspirada em leis de exceção anteriores.

No entanto, como sempre é o caso, a aplicação concreta dos dispositivos legais não é abstratamente uniforme, ela é mediada em formas diferenciadas dependendo do espaço sócio-geográfico e suas estratificações especificas de classe e raça. Neste sentido, territórios colonizados, bairros operários, prisões, centros de detenção administrativa (CRAs), residências de imigrantes e estabelecimentos sociais e de saúde-assistenciais oferecem um ponto de entrada privilegiado para escrutinar e denunciar abusos, violências e injustiças cometidos por autoridades militares, policiais, carcerárias e judiciais. Como destacamos no relatório do “Observatório do estado de emergência sanitária” que lançamos em conjunto com outros coletivos franceses, a crise atual forneceu uma oportunidade para se intensificar ainda mais a lógica de segurança do Estado e seu controle e práticas disciplinares. Enquanto as áreas ricas e o centro das cidades são submetidos, em sua maioria, a “governança pastoral” tanto pela polícia quanto pela mídia, nos territórios colonizados, bairros operários e centros de detenção, o arsenal repressivo da “mão direita” do Estado foi totalmente implantado.

Além do deslocamento de cem mil membros das “forces de l’ordre” (gendarmes, polícias e militares), houve a extensão das prerrogativas de certos corpos e instituições como a polícia municipal, os guardas rurais, os agentes da prefeitura de Paris ou do comando de polícia, a proliferação de drones e câmeras de vigilância. O estado autoritário também precisa manter um espaço-tempo ultra-confinado e sobre-fechado, onde a privação de liberdade cresce à medida em que se torna normalizada em outros espaço-tempos [2]. Estas práticas discriminatórias no espaço público refletem as condições materiais de vida e de trabalho desiguais que estruturam nossas sociedades. As classes baixas foram de fato massivamente forçadas a irem trabalhar, ao custo de protegerem — muitas vezes — sua saúde. E é sempre aqueles que estão nos estratos mais baixos da pirâmide social que não só se encontram mais expostos a ameaça mortal do vírus, mas também sofrem mais severamente os efeitos danosos causados pelas crises interligadas desencadeadas pela COVID-19 [3].

Investigando a exploração

A crise atual, que articula múltiplas dimensões (sanitária, econômica, social e ecológica) de uma maneira sem precedentes, emergiu na França depois de um período de fortes conflitos contra as políticas de governo neoliberais. Além disso, a pandemia, ao destacar a interdependência entre as esferas da produção e da reprodução — ou, mais precisamente, as contradições entre o modo capitalista de produção (de valor) e a reprodução social (do trabalho) —, também destaca a questão da reprodução social como um importante campo de batalha entre capital e trabalho, questão que o movimento dos Coletes Amarelos e, depois deste, o movimento contra a Reforma da Previdência, já haviam levantado.

Na área parisiense, a pandemia fez com que as desigualdades sociais e suas estratificações territoriais no interior da metrópole ficassem ainda mais gritantes. Enquanto é estimado que 17% dos parisienses fugiram do confinamento indo para uma segunda residência bem no início da crise, o departamento de Seine-Saint-Denis (n. 93), o mais pobre da França, é o que registra a mais alta taxa de mortalidade (um aumento de 63% comparado com apenas 32% na Paris “intra muros” no início de abril). Como esta discrepância pode ser explicada? É verdade que as condições de habitação e a falta de recursos em hospitais têm um papel central, mas não deve ser esquecido que estes também são os territórios que fornecem o grosso da força de trabalho empregada nos setores “essenciais”, que não pararam suas atividades durante o período de confinamento: lixeiros, trabalhadores na logística, faxineiros e trabalhadores do cuidado… Aqueles que estão na “linha de frente” nas ruas contra as políticas de Macron durante os últimos movimentos sociais são agora, em grande medida, os mesmos que mantêm a economia de pé — e garantem a reprodução social — no momento da pandemia.

A crise, portanto, não apenas fez com que os efeitos das políticas neoliberais fossem mais visíveis, mas também produziu uma experiência unificadora de massas: ela intensifica a polarização social, torna os interesses de classe mais explícitos, reforça o imaginário que opõe “nós” e “eles” — já enfatizado pelo movimento dos Coletes Amarelos. Ela lança as fundações para novas iniciativas políticas enraizadas nas experiências concretas de solidariedade de classe (realizadas dentro dos locais de trabalho ou em bairros populares) que criam um campo estratégico de atividade e pesquisa militante [4].

Mas a pandemia também é uma oportunidade para Macron fazer avançar, por novos meios, políticas que estavam enfrentando uma oposição social duradoura e tenaz. A atual crise corre o risco de se tornar um laboratório para novas medidas justificadas pelo arcabouço da emergência sanitária (a extensão legal das horas de trabalho em primeiro lugar, mas também a sistematização do uso de tecnologias de big data para controlar a mobilidade do trabalho em larga escala). Ela abre oportunidade para reestruturar as relações de trabalho, o que vai ser legitimado por apelos a “unidade nacional” frente à “reconstrução”, porque, como nós sabemos, o objetivo vai ser fazer com que os trabalhadores e a classe média paguem os custos da crise no médio e longo prazo, como aconteceu na crise financeira de 2008. Os rumos que essa reestruturação vai tomar no longo prazo constituem um outro campo estratégico de investigação. Atrás do consenso oficial desta “union sacrée” [A união sagrada se refere ao acordo de unidade nacional durante a I Guerra Mundial no qual a esquerda concordou em se abster de desafiar o governo política ou industrialmente], o descontentamento social e as formas de insubordinação estão começando a ser expressos em vários setores (por exemplo, transporte público, hospitais e asilos de idosos, logística, educação, supermercados,…) através das vozes dos trabalhadores que estão preocupados com a falta de segurança e de medidas sanitárias. Essa contradição entre a produção e reprodução, entre lucros e vida, vai se revelar drasticamente no momento de saída do confinamento. Para podermos antecipar o cenário para os futuros conflitos, nós precisamos, portanto, focar nossa atenção nos espaços onde a resistência já se levantou contra os chamados do governo para uma “mobilização geral” — inclinada para o “sacrifício” — dos trabalhadores em nome de uma “guerra contra o vírus” nacional.

Partisans na metrópole

Uma das características mais marcantes da situação na França é o foco no “dia seguinte”. Das franjas mais radicais do movimento autônomo France Insoumise [França Insubmissa — um partido social-democrata de esquerda], da extrema esquerda trotskista aos verdes convertidos ao senso comum neoliberal, parece que um consenso foi alcançado: “vamos ouvir o Estado, vamos criticá-lo da melhor maneira que pudermos, e então vamos ver”. Enquanto há algo de gritante em se ver os teóricos da “crise do modo de governo” adiarem sua intervenção política para o “dia seguinte”, isto, no entanto, reflete a incapacidade do movimento, e dos conflitos quase ininterruptos desde 2016, de se adaptarem a mudanças súbitas na situação e ajustarem suas práticas de acordo. Sem mencionar as tentativas humilhantes de manifestações online, nós só podemos nos lembrar que o futuro, assim como o coronavírus, começou há muito tempo atrás, e que o desenvolvimento de um mundo menos assassino não pode ser adiado até dias melhores.

Contra a lógica do “dia seguinte”, o chamado para a organização de “brigadas populares de autodefesa da saúde” pelos camaradas em Milão nos parece uma hipótese preferível. Por ter feito um balanço da situação e identificado uma crise de comando que está afetando a governança neoliberal da Europa ocidental, este chamado foi capaz de se espalhar de Paris a Bruxelas, de Lyon a Nantes e em muitas outras cidades na França e Itália [5]. A Lombardia da Lega, a França de Macron e o Reino Unido de Johnson são todas regiões que estão visivelmente desarmadas frente à pandemia. Na França, depois de mais de um mês de fechamento, a 6ª maior economia do mundo se vangloria de ter produzido 10.000 aparelhos de reanimação, sem garantir se haverá máscaras ou álcool em gel suficiente dentro de um mês para permitir uma real saída do fechamento. O que o sucesso das inciativas de solidariedade e auto-organização nos mostra, acima de tudo, é a falência do Estado neoliberal. Em Paris, nós vimos um dos hospitais principais da cidade recebendo mascaras FFP2 de uma cozinha comunitária, asilos sendo reabastecidos por camaradas, enquanto trabalhadores dos correios responsáveis pela distribuição do auxílio social tinham que depender da solidariedade militante, uma vez que seus gestores haviam decidido doar todas as suas máscaras (24 milhões) para a polícia francesa.

O número de iniciativas populares se multiplicou e não pode ser contado sob o nome das Brigadas apenas. Elos de solidariedade estão sendo desenvolvidos e fortalecidos, no nível de bairros, ruas e prédios. Tarefas que antes eram de responsabilidade de uma gestão estatal confinada ou privatizadas dentro do espaço nuclear familiar, e cuja atribuição a determinados grupos sociais era normalizada, agora são objeto de uma organização explicitamente coletiva. Vice-versa, locais que por muito tempo foram considerados puros locais de passagem, onde as interações sociais eram estruturadas apenas pela economia e consumo, se tornaram espaços onde a vida é colocada de novo no centro, relembrando que a dominação provoca resistência e que “a vida como um objeto político foi tomada pelo seu real valor e se voltou contra o sistema que estava tentando controlá-la” [6].

O objetivo destas iniciativas não é substituir as organizações humanitárias que por muito tempo têm trabalhado lado a lado com o Estado, mas traçar uma nova trajetória política. Elas não apenas presumem uma ruptura com a ordem vigente, mas também esboçam o mundo por vir, carregando práticas de auto-organização que podem potencialmente romper com as lógicas centradas no Estado.

Outro importante aspecto das Brigadas é que elas têm sido capazes de construir um quadro para organização transnacional dentro de uma sequência política que quer nos condenar a “ficar em casa”. Além da alegre ironia de invocar o imaginário da resistência para se opor a um governo que multiplica as metáforas de guerra, há a necessidade básica de se estabelecer uma coordenação internacional no contexto de uma pandemia. Também é importante não adiar práticas potencialmente de massas e as questões que elas levantam. Existem práticas no nível da população que contribuem para a saúde das massas, sem expandir a vigilância e o monitoramento? O medo que afeta a todos pode ser substituído pelo orgulho que emana da solidariedade de uma ação de grupo? Os movimentos sociais conseguem transformar bens privados em bens públicos contra o pânico da sobrevivência?

Raramente a disjunção entre o nosso campo e as políticas de massa contínuas, persistentes, reproduzíveis e inventivas foi tão flagrante. A tarefa é ainda maior, e a urgência ainda mais exigente. É urgente derrubar o mundo abjeto que produziu o coronavírus sem esperar por um possível amanhã melhor, se embrenhando na longa e paciente jornada da prática. Como disse um jovem no início do século passado: “O comunismo surge de todos os pontos da vida social, ele floresce em todos os lugares […]. Se um caminho está cuidadosamente bloqueado, ele vai encontrar outro, às vezes o mais imprevisível.” Por isso, em nosso primeiro jornal coletivo, nós fundimos duas palavras de ordem bem conhecidas que caracterizam a tradição socialista e a renovação dos movimentos ecologistas: comunismo ou extinção! [7]

Mais informações:
• ACTA: https://acta.zone/

Traduzido para o Passa Palavra por Marco Túlio Vieira.

Notas

[1] Cf. nosso vídeo « État d’urgence, une histoire coloniale » https://www. youtube.com/watch?v=UPJqc-bGo4A&feature=youtu.be.
[2] Cf. https://acta.zone/premier-rapport-de-lobservatoire-de-letatdurgence- sanitaire/. Mais geral, cf. https://acta.zone/repression/.
[3] No momento de escrita deste artigo, várias noites de tumultos haviam acontecido em um número de subúrbios franceses como resultado da violência policial.
[4] Cf., por exemplo, nossas entrevistas com diferentes trabalhadores sobre suas condições de trabalho durante a crise: https://acta.zone/exploitation/.
[5] Cf. por exemplo https://acta.zone/seul-le-peuple-sauve-le-peuple/, mas também https://acta.zone/une-journee-avec-les-brigades-de-solidaritepopulaire/.
[6] Michel Foucault, Histoire de la sexualité, I : La volonté de savoir, Gallimard, 2018, p. 191.
[7] Cf. https://acta.zone/communisme-ou-extinction/.

As fotografias que ilustram este artigo são de Pierre Herman.

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