Por Alfredo e Maria

A cada dia que passa, parece que a pandemia não é mais um problema. Notícias de pessoas contaminadas, mortes e hospitais lotados já não causam mais tanto impacto como no primeiro semestre de 2020. Se houve a avaliação por parte de governadores e prefeitos de que era possível flexibilizar as medidas de isolamento social conforme a curva de contágio apresentava estabilidade e não mais aceleração, as escolas por sua vez ainda se mantinham fechadas. E não é de se espantar admitir isso. São locais de encontro de pessoas, de contato, de aglomeração. O funcionamento de uma escola representa um risco real de aumento exponencial de casos de Covid-19.

Ainda assim, a pressão para o retorno deste setor sempre foi grande. Primeiro, porque ao longo do tempo a escola vem assumindo cada vez mais o papel de “depósito de gente”. Os pais saem para trabalhar e precisam das escolas para deixar seus filhos em segurança, e nesse sentido, com a diminuição do isolamento social e a retomada das atividades presenciais em diversos ramos, as escolas continuarem fechadas é sinônimo de um problema. Segundo, pelo fato de muitos dos estabelecimentos de ensino serem privados e, sendo assim, lutarem por manter sua clientela fiel, mesmo neste contexto excepcional.

O debate sobre o ensino remoto adotado sem estrutura ou planejamento é longo e não é sobre ele o foco deste texto. A questão que nos toca no momento é a retomada paulatina das aulas presenciais, por justificativas diversas, argumentos de excepcionalidade, mas, como diz o ditado popular: onde passa um boi, passa uma boiada.

Vejamos o caso da cidade do Rio de Janeiro em particular, que foi um dos primeiros locais do Brasil a sofrer com a pandemia e que se localiza em uma das 4 unidades federativas com maior índice de mortes por milhão de habitantes. Desde agosto se ensaia a retomada das aulas presenciais. Entre uma disputa de liminares e processos judiciais que ora proibiam e ora autorizavam este retorno, no final de setembro o retorno às aulas foi autorizado para outubro, mas inicialmente apenas nas escolas privadas. Dentre os participantes desta arenga estão de um lado os profissionais da educação, em contato direto com esta multidão que frequenta a escola e que temem pela sua saúde e a de seus familiares, e de outro os empresários do ramo, que pressionam o poder público para conseguir reabrir suas portas. Para se ter uma ideia da contenda, após a decisão final que autorizou o retorno das aulas, a prefeitura municipal do Rio de Janeiro argumentou, em favor dos empresários da educação, que as escolas privadas teriam recursos e condições sanitárias suficientes para retomar as atividades presenciais. Sendo assim, ninguém precisaria se preocupar com uma nova onda de aumento de casos de Covid-19, pois tudo estava sob controle.

Será que na prática este argumento tem algum fundamento? Como será que de fato aconteceu este retorno às aulas presenciais?

Basta quinze minutos de conversa com alguns professores que trabalham nestas escolas privadas para entendermos o panorama geral dos acontecimentos. Vale destacar que estes profissionais a que nos referimos trabalham em escolas de elite, que seguem um currículo internacional, que contam com toda tecnologia e equipamentos e tudo mais que você pode imaginar. Trata-se, então, do melhor cenário que poderia existir para que as aulas presenciais fossem retomadas de forma segura e ordenada (assim como argumentou a prefeitura).

“Então, estou com covid. Foram cerca de apenas duas semanas de trabalho presencial. Acho que isso responde sua pergunta…”, relata uma professora.

Mesmo que este retorno tenha acontecido em alguns casos de forma gradativa, iniciando com alunos do terceiro ano do ensino médio, o contato direto entre as pessoas na escola é temeroso. Para as pessoas que trabalham nas escolas, tanto faz se apenas duas ou três turmas estão em aulas. O fato é que, além da locomoção para o trabalho, que envolve muitas das vezes pegar transporte público lotado, no trabalho muitos dos protocolos que estas escolas adotam fazem menção somente aos alunos e são deficientes em relação aos professores e demais profissionais da escola. Os relatos são repetitivos em diversos momentos, mas principalmente quando abordam a questão da sobrecarga de trabalho. Os professores se dizem imersos em uma rotina de exaustão, substituindo os colegas que conseguiram se afastar por serem do grupo de risco ou estarem doentes, monitorando o lanche e o almoço dos alunos, monitorando o comportamento dos alunos nos intervalos e nas trocas de aulas, verificando se os alunos estão respeitando o distanciamento e os protocolos estabelecidos, etc.

Aliás, quando falamos em afastamento destes profissionais por motivos de saúde é necessário cautela. Os relatos dizem que “ser afastado” é considerado quase que uma conquista, pois não existem protocolos claros que tratam deste assunto. Como os primeiros sintomas de Covid-19 são parecidos com os de uma gripe comum, a escola tende a minimizar e pressionar o profissional a não abandonar seu posto de trabalho. Existem casos nestas escolas de professores que só conseguiram ir ao médico dias depois da doença começar a se manifestar. Mesmo com casos registrados de Covid-19 entre seus funcionários, as condutas que as escolas adotam se mostram diferentes. Um professor relata que trabalhou duas semanas, mas logo fecharam novamente as portas por constatarem que várias pessoas foram contaminadas; já outro afirma que no seu local de trabalho os gestores praticamente fingem que não existe nenhum caso de Covid-19 entre os professores.

Existe ainda um protocolo informal adotado em algumas escolas, segundo alguns relatos, que é o de não suspender as aulas ou mesmo deixar de afastar um profissional porque não foi comprovado que contraiu o vírus na escola. Esta ação não faz sentido nenhum, porque pouco importa de onde a pessoa contraiu o vírus, a atenção deveria estar voltada para os locais onde a pessoa frequentou uma vez contaminada, já que agora é uma disseminadora da doença. São esses os cuidados que (não) estão sendo tomados para que o ensino presencial volte, por bem ou por mal.

Mas mesmo quando afastados, estes profissionais são pressionados a continuar suas atividades, respondendo e-mails, organizando materiais, postando atividades para os alunos na plataforma. Nesses casos os gestores costumam argumentar que o trabalho será maior quando retornarem, pois ficou acumulado, ou mesmo que, se o trabalho não for feito pela pessoa que se afastou, ela estará sobrecarregando os colegas com o trabalho que seria de sua responsabilidade.

“É questão de tempo até que todo mundo que se cuidou tanto nestes meses, que ficou em distanciamento, pegue a Covid”.

Segundo os professores, na prática não é possível dar aulas e seguir os protocolos sanitários. Começamos pelo básico. Um professor trabalha em média de 5h a 6h por turno, e seu principal instrumento de trabalho é a fala. Se cada vez que for parar para tomar água for seguir o procedimento de higienização das mãos, troca de máscara, etc., este professor não conseguirá trabalhar. Sendo assim, não tomar água, mesmo que falando por horas seguidas, torna-se ironicamente positivo, pois você precisa ir menos ao banheiro, que é compartilhado por todos (o que seria mais um problema do ponto de vista dos procedimentos de cuidado com a contaminação).

Por mais que estejamos falando de escolas privadas e de elite, a falta de estrutura para o retorno presencial das atividades é latente. A escola precisou adotar durante meses o ensino remoto, mas, como a maioria não foi pensada para funcionar com aulas 100% online, a vida útil dos equipamentos que possui não é suficiente para tal demanda. Com o retorno das aulas presenciais esta realidade se agrava, pois as aulas online não foram abandonadas, e o que se apresenta agora é um formato híbrido (os alunos têm a opção de continuar com as aulas online se assim preferirem). Problemas como queda constante de internet, fios e equipamentos que não funcionam e outros problemas técnicos que começam a aparecer levam a furos de protocolo:

“Você entrou para ministrar sua aula, toda planejada e o projetor ou computador não funciona. Você precisa resolver o problema e correr atrás de novos materiais. Acaba que não vai higienizar da forma que deveria. As várias aulas seguidas umas das outras e a troca de sala de forma rápida entre as aulas não possibilita que você higienize sua bancada, seus materiais de trabalho (como livros, cadernos, canetas, apagador, caneta de quadro branco, etc.)”.

Em boa parte destas escolas os relatos são de que a direção e coordenação não conseguem atender as demandas dos professores e funcionários. Antes da pandemia o número limitado de equipamentos e materiais já impunha o compartilhamento. Agora, com a escola novamente funcionando, mas mantendo também aulas e atividades online, o uso constante e mais frequente destes materiais pela quase totalidade dos professores faz com que os protocolos que deveriam ser seguidos para o uso de “forma segura” acabem sendo ignorados. A realidade é a de que o professor individualmente assume os riscos de não seguir tais procedimentos, já que, na comunicação oficial destas escolas, eles existem, são eficientes e “tudo está devidamente preparado para receber os alunos”. Irônico é que quem desde o início se opôs a esse retorno prematuro, e certamente não foi ouvido para tal, é quem mais sofre os efeitos dessa política irresponsável.

A escola não tem a estrutura necessária para retomar as aulas presenciais, assim como na prática não tinha para iniciar o ensino remoto (os relatos de que os professores arcaram com os custos de materiais e infraestrutura são abundantes na internet e redes sociais). Para boa parte destes professores a escola não entende (ou finge não entender) que, se não cuidar da saúde dos seus funcionários, não é possível ela funcionar.

“Eles estão nos submetendo a uma situação de trabalho insana e assim iremos adoecer. Nem que não seja por Covid. Se não tem estrutura para trabalharmos, se não tem tempo ou onde nos alimentarmos direito, se os protocolos não são claros ou não têm condições de serem seguidos, ficaremos exaustos, nossa imunidade vai baixar, vamos ficar doentes, estafados”.

O retorno às aulas é irrealizável, ainda mais pensando em larga escala, com todas as séries e turmas novamente juntas na escola, no mesmo horário. As pessoas estarão sempre em exposição, pois a vida escolar reúne centenas de pessoas. Pessoas que pegam ônibus, pessoas que já estão saindo para os locais que já foram reabertos durante a flexibilização, pessoas que muitas vezes estudam e trabalham (como é o caso de alunos do Ensino Médio). Estamos também nos referindo a um lugar que tem por pressuposto a convivência.

“Na correria do dia a dia é inviável ao professor manter todos os protocolos. E se por acaso ele conseguir, ele vai enlouquecer, ainda mais com o ensino híbrido, em que você trabalha presencialmente e continua com os trabalhos online na sua casa”.

Vale ressaltar que nesta conversa sequer foram cogitadas as dificuldades corriqueiras de quem trabalha com crianças e adolescentes, que naturalmente gostam do contato, da convivência, da proximidade, da bagunça. E se tudo isso pode ser percebido com menos de um mês de retomada de atividades presenciais, com poucas escolas abertas e em escolas de alto padrão, como será que estaremos daqui a alguns meses?

Este artigo foi ilustrado com obras de Pawel Kuczynski (1976-).

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