Por Cristiano Fretta
De um tempo para cá, a expressão “cidadão de bem” vem ganhando vulto em discussões políticas. Quase sempre designa um tipo de brasileiro intelectual e economicamente mediano, cuja principal característica é odiar sem limites, especialmente na internet. Mas o que está por trás do tal “cidadão de bem”? Hipocrisia parece ser a palavra-chave que mais o caracteriza de maneira sintética e objetiva. Ela está na superfície de seus comportamentos e pode ser encontrada em praticamente qualquer momento em que se compare o seu discurso à sua prática. No entanto, há elementos profundos e complexos que fazem com que ele seja hoje parte constitutiva da identidade nacional brasileira.
A nomenclatura, por si só, já pressupõe exclusão: se existe o cidadão de bem, logo existe o cidadão de mal. Essa oposição é análoga à política do “nós e eles” e serve como combustível para o autoritarismo, uma vez que não há terreno ético intermediário a essa dualidade, o que inviabiliza a ocorrência e a legitimidade de qualquer atitude dialógica elaborada. Além disso, o cidadão de mal carrega um adjetivo que negativa a sua própria cidadania, na medida em que esta só atinge sua plenitude quando harmoniza direitos e deveres no seio de uma sociedade. Como não cidadão, o cidadão de mal está exposto a uma subcategoria social, um lugar rebaixado em que seus direitos mais básicos não são lícitos de serem respeitados. O cidadão de bem não consegue enxergar no outro a cidadania e não se reconhece como parte do mal. Em sua lógica, os atos de desrespeito ao outro são comportamentos aceitáveis e normais. Dessa forma, deseja-se que o diferente — seja na esfera política, de gênero, de conduta, enfim, seja na esfera social e/ou individual que for — seja exterminado da mesma forma com que se exterminam os insetos de uma casa.
O Brasil apresenta em sua estrutura social uma desigualdade entre a elite e os mais pobres tão aviltante que chega a transformá-los em polos opostos nas dinâmicas de nossa sociedade. No meio desse antagonismo, ou melhor, suavizando as relações entre a base e ponta da sociedade, encontra-se a classe média, habitat natural do cidadão de bem. Ela se comporta como um suavizador das relações entre os mais ricos e os mais pobres no Brasil. De uma forma mais direta, a classe média é o capataz da elite brasileira. E isso não é de hoje: ela foi massa de manobra para a derrubada de Vargas e Jango, por exemplo. E também o foi, claro, no impeachment de Dilma e na prisão de Lula. A elite, no entanto, é um capataz que não usa chicote. Como forma de opressão, utiliza-se dos poderes simbólicos, transformando o cidadão de bem em uma espécie de escravo doméstico que frequenta a casa-grande. Dessa forma, a classe média se olha no espelho e enxerga muito mais do que ela realmente é e sente-se rica quando, por exemplo, um banco privado aprova o financiamento de seu carro zero.
O cidadão de bem brasileiro faz muito bem o papel de capacho da elite ao reverberar a ideia de que o Estado é a fonte de todo mal social. O típico representante da classe média traz em seu DNA a crença no personalismo e no patrimonialismo. Isso, é claro, sem nunca ter lido Sérgio Buarque de Holanda. Essa visão transparece por meio de um ódio e descrédito ao funcionalismo público, mas também está calcada em uma crença cega na meritocracia. O cidadão de bem acredita que a iniciativa privada é feita somente por homens honestos, ordeiros e trabalhadores, e que o Estado emperra e corrompe o seu desenvolvimento. Ao esvaziar tudo o que é público do caráter meritocrático, ele acaba por acreditar que o objetivo da classe pública e política é simplesmente “mamar nas tetas do Estado”, e dessa forma as demoniza. O sonho do cidadão brasileiro de classe média é colocar um “arbeit macht frei“ na testa de todo funcionalismo público. Defender a privatização de todo e qualquer serviço é uma ingênua crença de que uma suposta meritocracia da incitativa privada dê conta de todas as demandas sociais, preocupando-se com o bem-estar social antes do lucro.
O moralismo é outro elemento fundamental para a constituição da identidade do cidadão de bem, que, por meio dele, passa a se considerar representante do que há de melhor e se compreende como um bastião de defesa daquilo que é correto e indiscutível em termos de práticas sociais individuais e coletivas. É nesse sentido que enxerga na ditadura militar um passado místico e perdido, que precisa ser restaurado a qualquer custo. A tensão sexual é outro meio pelo qual o moralismo se manifesta: o prazer do corpo dialoga diretamente com a liberdade individual e se desenvolve em torno de orientações de gênero muito mais complexas do que o binarismo que o cidadão de bem consegue entender. Usa-se um argumento biológico para se disfarçar o cunho cristão conservador que está por trás da defesa da heterossexualidade como o único comportamento sexual supostamente correto.
O cidadão de bem brasileiro é um colonizado ambulante. Compreende-se como uma ilha de moralidade e trabalho perdido em um país em que nada funciona. Dessa forma, olha para o norte e encontra nos Estados Unidos o avesso da sociedade brasileira: lá existe total liberdade econômica em um país pautado pela meritocracia. Dessa forma, o cidadão de bem reproduz o colonialismo mental, que não utiliza espadas nem armas de destruição, mas que subjulga os colonizados por meio da admiração e do ideário de nação — e por isso é muito eficiente.
No entanto, o cidadão de bem não é um tipo que surgiu nos últimos anos. O que ocorreu foi que a enunciação da violência explícita tomou corpo em nosso cotidiano, justamente por meio de sua figura hipócrita. Os ratos saíram do esgoto, dizem. Na verdade, no Brasil, os ratos nunca estiveram dentro de um esgoto. Eles sempre andaram para lá e para cá, seja por práticas do próprio Estado, seja por meio das piadas no churrasco em família. O que aconteceu foi que os ratos ganharam uma ressonância enunciativa que nunca haviam tido. E isso é uma decorrência direta das redes sociais.
A internet representa uma revolução nas formas de comunicação, na medida em que deu amplo poder de disseminação de discurso a pessoas que antes só conseguiam ser ouvidas no alcance de deu cotidiano. Por meio dela, a interlocução ficou indireta e consequentemente seus interlocutores sofreram um processo de achatamento hierárquico: o respeito ao outro e ao conhecimento do outro foi pasteurizado de forma que qualquer cidadão pode se sentir empoderado a, por exemplo, discordar de um PhD em biologia molecular. Essa desierarquização produz um intenso desrespeito ao conhecimento específico, na medida em que saberes complexos podem ser questionados por qualquer pessoa que possui acesso à internet. Nunca nos comunicamos tanto para dizermos tão pouco. A prepotência encontra lugar privilegiado para se proliferar livremente. O cidadão de bem brasileiro pode, agora, esbravejar para quem quiser suas verdades patriarcais. Impossível pensarmos num terreno mais propício ao surgimento do autoritarismo do que esse. Trata-se de um novo mundo de produção simbólica, em que o discurso reina soberano. As fakenews são a realização máxima desse funcionamento.
Além disso, é impossível pensarmos nas redes sociais sem compreendermos a importância que a inteligência artificial, mais popularmente chamada de “algoritmo”, exerce na organização das interações na rede, especialmente no Facebook. De uma maneira muito geral, ele consegue mapear todos os dados de seus usuários de forma a ordenar e organizar os posts no feed de notícias por meio dos interesses dos perfis. Aparentemente esse funcionamento pode parecer ingênuo e até mesmo agradável, na medida em que é confortável que não fiquemos expostos a assuntos que nos desagradam. Na prática, no entanto, esse mecanismo tem consequências mais sérias. Ao mapear as nossas áreas de interesse, a rede consegue visualizar também qual o nosso perfil consumidor. A nossa privacidade é colocada em xeque a cada vez que curtimos uma página ou compartilhamos um determinado conteúdo, na medida em que isso ajuda a rede a compreender cada vez melhor os nossos gostos e interesses, o que favorece que sejamos manipulados de forma cada vez mais assertiva. Por meio da comparação de milhões de perfis, o Facebook consegue compreender como determinadas populações agem em assuntos sensíveis a qualquer sociedade, como escolhas político-ideológicas, por exemplo. Dessa forma, é possível mapear qual idade tem mais propensão a defender pautas como o desarmamento da população civil, qual é o perfil dos interessados na descriminalização da maconha, qual a porcentagem de mulheres acima de 20 anos que defendem a legalização do aborto, entre um número infinito de outras possibilidades. Isso, claro, é uma pequena amostra da quantidade absurda de dados que podem ser gerados. Por isso que eles são uma das coisas mais valiosas atualmente: quem os tem, pode exercer controle sobre populações inteiras.
No entanto, a consequência mais grave é a polarização naturalmente produzida pela ferramenta. Cria-se uma realidade virtual em que o algoritmo produz imensas bolhas de interesse em que é muito difícil perceber a alteridade enunciativa do outro. Dessa forma, quem pensa diferente não é um cidadão que possui outra opinião, mas sim o habitante de uma realidade paralela, incompreensível, como se fosse um ser de outro planeta. E não é exatamente assim que o cidadão de bem pensa? O Brasil conta com aparentemente 130 milhões de perfis no Facebook. É admissível, portanto, que a realidade virtual polarizada forjada pelas redes sociais encontre repercussão no mundo fora das telas. Há milhões de cidadãos de bem, portanto, expostos ao funcionamento de polarização das redes. Aos seus perfis, eles trazem a incapacidade de enxergar no outro a cidadania, blindados pela distância enunciativa e pela desierarquização. As redes sociais são o habitat mais adequado para a proliferação discursiva dos cidadãos de bem brasileiros.
Nesta simbiose entre redes sociais e cidadão de bem, o fascismo encontrou um terreno muito fértil para florescer: ele é, por natureza, a ideologia da negação da alteridade, aspecto esse que muito bem dialoga com o cidadão de bem nas redes sociais. Assim como no fascismo, no virtual as normas de tolerância desaparecem, o que faz com que o ambiente democrático seja anulado em prol do autoritarismo, pois a democracia não consegue florescer em contextos puramente binários. Neste ambiente, sabe-se pouco o que se quer e muito do que não se quer, e a tolerância torna-se impossível já que a hierarquia fascista precisa da polarização para sobreviver. Também a irrealidade, tão essencial ao fascismo, encontra terreno amplo para propagação no virtual, na medida em que as redes sociais nunca apresentaram uma política rígida de combate a informações falsas e acabam por servir de veículo não só para a disseminação de qualquer fakenews, mas também para a construção de um ambiente irreal em que praticamente tudo é defensável.
A visão de mundo naturalmente binária do cidadão de bem encontrou, portanto, um excelente terreno enunciativo nas redes sociais. E elas, por meio de seus algoritmos, têm enorme influência na polarização da política não só brasileira, mas também mundial. O ponto positivo foi que o Brasil se olhou no espelho despido das mitologias identitárias que habitavam o nosso senso comum. Não somos um país pacífico que convive com suas diferenças em um imenso carnaval de tolerância. Muito pelo contrário. Tirada a máscara, a polarização virtual do cidadão de bem se mostra terrivelmente sádica. O desafio que se põe à nossa frente é como colar o discurso à realidade em um contexto em que as redes sociais já estão completamente arraigadas à nossa realidade. Estamos vivenciando um momento em que a democracia brasileira está em risco. E uma das principais causas disso é a polarização causada pelas redes sociais. Resta-nos agora saber se o algoritmo subverterá as instituições democráticas ou se elas serão capazes de desempenhar o seu papel de guardiãs da democracia e, de alguma forma ainda não muito clara, frear as nefastas consequências que elas podem trazer à nossa sociedade. O tempo nos dirá — com ou sem fake news.
As ilustrações do artigo são obras de Hélio Oiticica (1937-80)
A leitura deste artigo inevitavelmente me fez lembrar a bela composição de Max Gonzaga que pode ser ouvida, e vista, aqui.
Max Gonzaga no YouTube é um caso agudo de adeuspertence.
Se as redes sociais foram e são o ambiente perfeito para o nascimento e crescimento do fascismo, a questão não seria se “o algoritmo subverterá as instituições democráticas”, mas quando isso acontecerá, não?