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Importará neste artigo questionar se existe alguma relação entre a onda de ocupações de escolas em 2016 e o processo atual de criação de 217 escolas cívico-militares, em 117 municípios do estado do Paraná [1] [2].
Militares de várias corporações defendem em público suas ideias políticas, por dentro e por fora dos partidos, associações e Estado. Não resta dúvida que existe aí uma espécie de militância. A maior presença deles no debate público dos últimos 30 anos é, também, a realidade. Os militares sempre participaram da política, porque sempre foram parte do Estado. Entre os anos de 1990 e 2010, por exemplo, não estavam presentes em tantos espaços. Repressão e genocídio, sim. O momento atual é completamente favorável à aprovação de escolas cívico-militares.
Nas eleições a cada dois anos, no interior de partidos, associações, instituições escolares, religiosas e em tantas outras similares, o que temos visto é uma força que cresce. Qualquer guardinha de esquina não só se leva extremamente a sério, na vida e na política eleitoral, como tem legitimidade social para se lançar candidato e ganhar eleições em diversas instituições, inclusive nos legislativos e executivos.
No Brasil, é muito comum as pessoas confiarem nas forças armadas de todos os tipos, a começar pelo exército, e isso não é de hoje. Fotografia com policiais durante manifestação política ou levar o filho pequeno ao desfile de Sete de Setembro vestido com miniaturas de fardas militares, filmar e divulgar essas imagens nas mídias sociais, isto sim pode ser encarado como novidades nos últimos 10 anos. Milhares de pessoas acompanham com entusiasmo as publicações de militares em diversos espaços das mídias sociais, e uma parcela dos partidos que ainda se acham de esquerda defende, principalmente em época de eleições, a possibilidade de humanizar as forças armadas. Nesse mundo onde atalhar pela via autoritária já se faz desnecessário, uma consulta popular sobre a implantação das escolas cívico-militares era o caminho tranquilo que o governo do estado do Paraná escolheu percorrer.
Em 2016, havia um grande consenso dentro da onda de ocupações de escolas em relação à ideia de consulta popular, de mais verba para os gastos sociais e de uma reforma do ensino público. O governo de Michel Temer, a Medida Provisória 746/2016, a Proposta de Emenda à Constituição 55/2016 e o Projeto de Lei do Senado 193/2016 eram criticados por não ouvirem as pessoas sobre qual reforma implementar nas escolas, congelar ou não os gastos sociais do governo federal e se o Programa Escola sem Partido deveria ser aprovado e implementado. Ninguém dizia que as escolas não precisavam de reformas. A divergência era em relação ao tipo de reforma a ser implementada. “Consulta popular nas escolas!” era o que se ouvia nas ocupações. Nada estranho a uma realidade escolar que conhece o discurso, pelo menos desde o fim da última ditadura, que toda e qualquer mudança na escola, seja revolucionária ou reformista, deve passar pela apreciação de uma consulta popular antes de ser executada.
Não sabemos o quanto foi comum, talvez bem mais do que muita gente está disposta a reconhecer, porém diversas ocupações foram iniciadas do zero, e da noite para o dia, a partir da ação de pequenos grupos que não apenas criaram os espaços deliberativos, mas também as pautas e formatos das votações. Grupos hetero-organizaram os estudantes muito mais do que construíram auto-organizadamente. Estudantes consultaram os demais estudantes, garantiram ocupações e cobraram dos governos, entre tantas coisas, mais dinheiro para a educação, mais democracia e consulta popular antes que os rumos da educação fossem mudados ou uma reforma escolar, realmente necessária, fosse erguida.
De nada serve desvalorizar as técnicas de consulta popular, o que nos interessa é reconhecer as semelhanças nos processos a partir da identificação da hetero-organizacão nas lutas sociais e nos processos políticos; parece pouco, talvez não seja. Na atualidade, o discurso do executivo estadual vem cheio de promessas como a de mais verba para a educação dentro do novo modelo de escolas cívico-militares. A população que sempre escuta e pensa, embora não acredite muito nos políticos em geral — lembremos dos votos nulos e abstenções nas eleições [3] —, é aquela que em boa parte nutre enorme confiança e esperança na presença e nas ações dos militares, dentro e fora dos quartéis, das igrejas, da política e das escolas. Uma população que não teria grandes motivos para não participar de uma consulta pública para resolver a questão, ainda mais sendo do tipo que permitia a uma mãe, com três filhos na escola, ter direito a três votos no pleito.
Não temos razão alguma para acreditar que toda aquela presença simbólica da consulta popular durante a onda de ocupações de escolas em 2016, ou a presença dela no interior da escola pública e dos sindicatos de trabalhadores da educação deste estado ao longo de mais de 30 anos, em bocas e mentes de gente liberal ou de esquerda, simplesmente deixou de existir na cabeça dos estudantes, dos trabalhadores da educação e das demais pessoas envolvidas. Assim como não desapareceram outras partes de um mesmo grande discurso que víamos nas ocupações de 2016, que reivindicavam mais verba para a educação e reforma do ensino. O que na época não chegámos a conhecer era aquilo que estava nas cabeças das pessoas que não foram ouvidas, mesmo tendo alguma relação com as escolas ocupadas. Talvez porque elas não se fizeram presentes em peso nas ocupações, não foram parte ativa daquelas construções e não tiveram espaços nas mídias tradicionais da esquerda.
Opor mais uma vez auto-organização e hetero-organização e pensar que faltou muito da primeira em 2016 e sobrou muito da segunda agora em 2020. Talvez tudo isso nos ajude a perceber melhor não só possíveis relações entre os processos de 2016 e 2020, como também identificar as razões que garantiram tranquilidade para o processo de aprovação das escolas cívico-militares no Paraná. O mesmo estado em que há quatro anos cerca de 850 escolas estavam ocupadas.
Poucos anos se passaram e o executivo estadual, e demais apoiadores da escola cívico-militar, acabam de nos mostrar um pouco mais do que existe, e do que não existe, nas cabeças de parte da chamada comunidade escolar paranaense. Vem aí uma reforma do ensino na prática. Dá para negar que se trata, também, de uma realização possível para o Programa Escola sem Partido? Reconhecer a dimensão da nossa derrota, principalmente nós, trabalhadores da educação, e entender os seus reais motivos, continua sendo fundamental para compor qualquer proposta anticapitalista. Podemos ver as tendências vencedoras, e o que sobrou das derrotadas, na quadra da ilusão do presente, e isso já nos serve de alguma coisa.
Notas
[1] http://passapalavra.info/2016/10/109584/
[2]http://www.aen.pr.gov.br/modules/noticias/article.php?storyid=109480
[3] https://passapalavra.info/2009/03/1579/
As fotografias que ilustram este artigo são de @marjanblan