Por Corentin
O dia de 28 de novembro amanheceu ensolarado nas ruas parisienses. O cair das folhas de outono apontava para uma temperatura que oscilaria entre os 12ºC e 1ºC. Apesar desta variação térmica, boa parte da população demonstrava entusiasmo com o início da flexibilização do último confinamento que estava prestes a durar um mês. A abertura do comércio e serviços, além da possibilidade de circulação em um raio de 20 km de sua residência (até então o limite era de 1 km), aqueceu o ânimo das festas de fim de ano diante de uma enfeitada Paris.
Se por um lado o glamour da nova iluminação natalina é ostentada na avenida dos Champs-Elysées, por outro, não menos minuciosamente planejado, ocorre o debate do projeto de lei sobre a “sécurité globale” na Assembleia Nacional. Dentre outras coisas, destaca-se o artigo 24, que propõe mudanças no tocante da lei de liberdade da imprensa criada em 1881. Segundo resolução de tal apontamento, o indivíduo responsável pela “difusão da imagem do rosto ou qualquer outro elemento de identificação de um funcionário da polícia nacional ou guarda militar” é passível de uma pena prevista de um ano de prisão e multa de 45.000 euros. Segundo a lei, o uso de tais gravações poderia “minar a integridade física ou mental” dos profissionais em operação.
Ainda como tentativa de amenizar os entraves com a liberdade de imprensa, o artigo estabelece que, referente às gravações, não “há obstáculo à comunicação às autoridades administrativas e judiciárias competentes”. Desta forma, limita-se sua disseminação por outros meios de divulgação capazes de mobilização popular.
Para além dos rastros de fumaça branca que saem dos aviões e cobrem o céu desta cidade, outro artigo que causou grande reação é o 22, ao tratar da utilização de dispositivos de “caméras aéroportées”. Desta maneira, drones e helicópteros estariam habilitados para capturar imagens visando “a prevenção de atos de terrorismo” ou de situações que “suscitem receio de graves perturbações da ordem pública”.
Pois é diante destes acontecimentos que o último sábado de novembro de 2020 se distende diante das árvores quase desnudas. Porém, não é só a desesperança que marca essa transição entre o verão e o inverno. Apesar da Primavera de Stravinsky soar longe dos dias de hoje, manifestações contrárias a este projeto de lei ocorreram em diversos locais da França. Segundo os organizadores, cerca de 500.000 pessoas participaram dos atos.
Recentemente ocorreram dois fatos que suscitaram ainda mais questionamentos sobre este assunto. Um é a agressão do produtor musical Michel Zecler por três policiais no interior de seu estúdio e o outro é a repressão policial no acampamento de aproximadamente 500 migrantes que ocupavam a Praça da République. Estes acontecimentos ocorreram respectivamente nos dias 21 e 23 deste mês e possuem em comum o uso das imagens como comprovação da violência policial.
Assim, por meio de canções como “Tout le monde déteste la police!” “Todos detestam a polícia”, o boulevard Beaumarchais aglutinava dezenas de milhares de pessoas. Entre as praças da République e a Bastille, os blocos de partidos políticos, sindicatos, associações, organizações estudantis secundaristas, anarquistas e feministas de várias tendências, gilets jaunes (coletes amarelos) e demais correntes políticas se misturavam com a população que seguia o caminho detalhadamente delineado pelo barão Haussmann.
Os vidros dos bistrôs, ainda fechados pelo confinamento, e das boutiques refletiam os muitos cartazes que evocavam os princípios da Revolução Francesa: “Liberté, Égalité, Laisse-nous filmer” (“Liberdade, Igualdade, Deixa-nos filmar”), “Liberté, Égalité, Impunité” (“Liberdade, Igualdade, Impunidade”). Outros cartazes, em referências à obra 1984, de George Orwell, proclamavam: “Big Macron is watching you” e “1984 = 2020”. Ou até mesmo com os dizeres “Eu não sou contra a polícia, tenho um pai policial”. Apesar da ausência de vento, bandeiras vermelhas e pretas, apenas vermelhas ou apenas pretas insistiam em tremular com outros tecidos de composição azul, branco e vermelho.
Resta então saber até quando as fantasmagorias teimarão em permanecer nas encruzilhadas de nosso cotidiano.
Essa lei francesa abre um precedente perigosíssimo. Deveria ser acompanhada por todo mundo. Merece muito maior divulgação e repúdio.
É só mais uma lei, pavimentando o Estado de exceção como regra da democracia totalitária.
Para contextualizar a questão, convém saber que a polícia francesa é tradicionalmente de uma extrema truculência. Quando eu cheguei a Paris em 1968, vindo de um país fascista, e tendo uma grande experiência de organização e condução de manifestações de rua, fiquei atónito com o procedimento da polícia, muito pior do que a portuguesa. Além disso, era habitual e sistemática a prática de pedir documentos de identificação na rua, coisa que não se fazia em Portugal durante o salazarismo. Sob alguns aspectos, eu tinha de tomar mais precauções em Paris do que havia tomado na clandestinidade em Portugal.
Note-se que depois, quando ascendeu o governo de esquerda, ou seja, com ministros socialistas e comunistas, pela primeira vez foram deportados de avião, para os países africanos de origem, imigrantes ilegais algemados e agrilhoados. Como disse, isto nunca havia sido feito antes de François Mitterrand. Entretanto, numa prefeitura da periferia de Paris, governada pelos comunistas, uns bulldozers, a mando do prefeito, arrasaram e destruíram um foyer, ou seja, uma residência de imigrantes. Foi também a primeira vez que isto sucedeu. Note-se que nessa ocasião muito poucos comunistas abandonaram o Partido, entre eles apenas um intelectual de renome, um althusseriano.
Então, a nova lei limita-se a manter a situação tradicional de prepotência policial. Uma democracia pode, sem contradição, ser um Estado policial.
O comentário de um camarada, traduzido meio às pressas:
O governo francês emitiu uma nova lei repressiva importante, seguindo a lógica que já está presente há décadas. Ela contém: autorização de drones, aumento do poder da polícia municipal e uso de polícia provada, proibição de filmar policiais ou de publicar nomes de policiais na internet, nenhuma redução da pena para os condenados por agressão a um policial…
Mas uma semana atrás saiu um vídeo de 10 minutos, editado por uma mídia online, mostrando vários policiais batendo em um homem negro, supostamente porque ele não estava usando máscara. Só que isso aconteceu em um bairro burguês de Paris e o cara em questão é um produtor musical… o vídeo foi visto 12 milhões de vezes em 24 horas…
Manifestações foram rapidamente organizadas em várias cidades nos dias seguintes e no sábado 50 manifestações foram convocadas por toda a França por grupos e coletivos de esquerda.
O relato é de que 500.000 pessoas participaram das manifestações. Isto é “pouco” tendo em vista o ataque, mas é muito levando em consideração o contexto. Na verdade, o período do Covid definitivamente acabou com o que havia restado da dinâmica do movimento dos coletes amarelos e desde março nada tem acontecido nas ruas aqui.
Em várias cidades os organizadores ficaram sobrecarregados e ocorreram confrontos com a policia e destruição
É impossível dizer se esse é o começo de um movimento. No momento, ele une a esquerda, os coletes amarelos e os “jovens”. A questão da “violência policial” tem estado muito presente na França nos últimos anos (Adama, Theo, Steve e muitos outros… a repressão aos coletes amarelos) e a palavra de ordem “todo mundo odeia a polícia” se tornou central. Os distúrbios nos Estados Unidos tinham muita adesão e protestos em apoio foram realizados neste verão.
No entanto, alguns limites já são bem visíveis:
– Jornalistas estão na vanguarda do protesto. Eles estão simplesmente lutando contra um artigo da lei em nome da liberdade de expressão. As autoridades acabaram de prometer rescrever essa parte da lei…
– As manifestações são em geral a favor da democracia. A ideia de que Macron iria estabelecer uma ditadura já existia. O antifascismo está nos preparando para uma lógica de frentes, menos de um ano e meio antes das eleições. Este tema, assim como em parte nos coletes amarelos, nos impede de aproximar de uma crítica do capitalismo. Muitas lutas como cidadãos e não como explorados. Na verdade, a luta se volta ao Estado para pedir reformas
– Não é um movimento no sentido de que, pelo menos por enquanto, não tem uma temporalidade cotidiana. Durante a semana você vai pro trabalho e no sábado você vai para as manifestações. Este já era um limite do movimento dos coletes amarelos. A centralidade das manifestações foca nos confrontos com a polícia (Bem, é melhor do que nada).
– Nós estamos testemunhando o retorno das teorias da conspiração de que aqueles que tapam o rosto e quebram bancos são policiais. Representantes do movimento racialista também estão fazendo hoje com a esquerda contra nós (como o Black Lives Matter).
– Os vídeos se tornaram uma arma de luta democrática. No sábado, em um momento centenas de pessoas estavam levantando seus smartphones no ar como um símbolo… Por anos nós temos lutado aqui contra aqueles que filmas tudo durante as manifestações e que depois os vídeos são usados para mandar manifestantes pra prisão.
Claro que a situação pode mudar rapidamente. Como em todos os lugares, é uma crise. Aqui em Toulouse, milhares de trabalhadores no setor aeronáutico estão sendo demitidos, muitos trabalhadores temporários já estão sem trabalho e a taxa de desemprego está aumentando rapidamente. O fato de retomar as ruas já é importante.
No momento nós estamos tentando propor estruturas para organizar a luta que são autônomas da esquerda e para preservar os ganhos do movimento dos coletes amarelos (manifestações não declaradas, legítima defesa, etc.) e para difundir um discurso revolucionário.
Por todos os lado vemos as táticas de persuasão dando lugar ao porrete, pra mim, um sinal da crise perpétua do capital, mas um capítulo particular, que indica um bom caminho para as lutas sociais. O fortalecimento do Estado policial, de fato, não indica uma crise da democracia como forma de governo, ao contrário, mostra sua força, a violência policial como reflexo da vontade popular “deixa a polícia trabalhar”, como ter segurança sem “gente de armas”? Vesse que a democracia se sai bem competente em manter-se em pleno funcionamento descendo a porrada no trabalhador, no estudante, no migrante, enfim, todos os tipos de trabalhadores. “Uma democracia pode, sem contradição, ser um Estado policial”; certamente, e com muita eficiência, o que nos joga ao desafio de nomear e compreender o fenômeno também do ponto de vista de quem o contradiz. tudo importa, cada vírgula do conflito capital/trabalho vem pra arena. Se tão apelando pra porrada é porque tão com um “cagaçozinho”! bom pra nós, mostra que somos potentes!
Solidariedade aos franceses que estão nesse embate!!!