Por Poeta em Buenos Aires
Certa vez escrevi um conto, muito breve, onde eu carregava em meus ombros minha amada por uma extensa praia vazia. O tempo estava fechado, e não era temporada. Nossa felicidade se despreocupava do futuro, e se na vida real tomei rumo para outro país, no meu conto um tropeço da vida a derrubava, quebrando sua coluna: fui responsável. Por sorte, nada disso é fatal.
Este amor me ensinou a olhar e reviveu em mim a poesia. A poesia das linhas, das cores, das tensões. Me fez conhecer o tempo como antes eu não conhecia. Observar um quadro por longos segundos, minutos, deixar que os olhos se atraiam, deslizem, descubram. Deixar que a mente indague mais profundo nas formas, nos porquês, na vontade de reproduzir, dominar, experimentar, ver no que vai dar.
E largar a mão. Mão tão precisa, a mesma mão tão tosca. Como fui tosco ao deixá-la cair, naquele conto meu.
Quando leio e quando escuto John Berger, existe algo deste meu antigo amor que me visita, e tenho vontade de estar em uma casa humilde nos Alpes escutando sua fala com seu sotaque inglês encantador, e tê-la ao meu lado, para fascinar-se comigo. Conversar sobre marxismo, sobre desenho, sobre literatura, sobre o tempo do mundo, as transformações, a paciência.
A primeira vez que o conheci foi pelo programa que gravou para a BBC em 1972, Modos de Ver, posteriormente adaptado para um livro. Com alguns companheiros da faculdade estávamos querendo organizar um ciclo de projeções, mas que não fosse de filmes, que duravam muito tempo e que raramente desembocavam em debates interessantes. A proposta foi realizar uma edição nossa de recortes de filmes, documentários, pequenos vídeos da internet, para pesquisar e apresentar os temas que nos pareciam interessantes para debater. O nome do ciclo foi “Millenials no Deserto”, e tratava sobre os eixos: Juventude, Trabalho e Arte.
Nos episódios deste programa da BBC, John Berger conjugava uma análise marxista da produção artística, uma crítica à mistificação na história da arte, uma introdução às ideias de Walter Benjamin sobre a reprodutibilidade das obras de arte, a representação das mulheres na pintura, e mais, com um tom sempre provocativo. Com um ritmo insinuante.
Um punhado de nós nos apaixonamos por esta figura sem conhecer muito mais do que esta aparição, apenas pela forma de expressar suas palavras e suas ideias, tudo aquilo que ele nos convidava a ver e a pensar. Me tomou mais tempo do que deveria para começar a buscar mais informação sobre ele, e para minha estúpida surpresa, não se tratava de um professor emérito em história da arte ou acadêmico esquerdista. John Berger foi mais conhecido por sua obra literária, por sua obra como um “escritor europeu”, em suas próprias palavras. Inglês, mudou-se para os Alpes e testemunhou o ocaso das sociedades rurais europeias. Manteve-se marxista. Mas não no sentido que se cristalizou em sua época, isto é, o apoio a tal ou qual regime. Estas coisas conheci por uma entrevista sua, disponível no YouTube. Ele toma tão a sério cada pergunta. Não é um desafio lindo, respondê-las, ou tentar, com todo o ímpeto de um pensamento, de uma aposta?
Busquei seus livros para comprar, e consegui uma versão no inglês original de G., novela pela qual ganhou o Premio Booker. O livro é dedicado a companheiras do movimento de liberação feminina (Women’s Liberation), e metade do prêmio em dinheiro ele o doou para o Partido das Panteras Negras britânico. Eram outros tempos, certamente. Em G. presenciamos a vertigem cosmopolita da Europa nas décadas anteriores à Primeira Guerra. Uma deliciosa novela histórica e geográfica com muito erotismo. É certo que às vezes o vanguardismo setentista sobra no livro, são breves momentos em que Berger rompe a quarta parede e até o registro escrito, e faz digressões, que não deixam de imprimir um charme, um risco tomado talvez não muito logrado. Mas são apenas algumas passagens curtas — e alguns desenhos estranhos — em meio à história do protagonista, G., um jovem e endinheirado apátrida, galanteador determinado e misterioso, de quem conhecemos a história mas não os pensamentos. São as mulheres e sua psicologia, seu momento de liberação sexual no encontro com G., quem oferece as tonalidades eróticas da história. As máquinas voadoras, as revoltas proletárias, os tambores de guerras e os seus nacionalismos renovados: os acontecimentos em plena aceleração, seduzem o jovem que parece viver como um inveterado flâneur de geografias, amores e histórias. O fim deste personagem é também o fim daquela Europa.
O livro vermelho, já antigo, foi danificando-se em minhas viagens na linha Urquiza do trem, onde ainda hoje operam vagões com assentos de couro e janelas que os passageiros podem abrir. Os bairros humildes de casas térreas do conurbano de um lado e o Campo de Mayo do outro deixam o interior do trem repleto de luz, e o contrafluxo que me levava à obra e de volta à casa era agraciado pelos alaranjados amanheceres e entardeceres. Me deixou uma lembrança saborosa destas páginas escurecidas e um sol quase horizontal, entrando nos vagões vazios, onde alguns poucos trabalhadores cansados cochilavam, olhavam seus celulares, ou pensavam. Haveria um melhor lugar para ler este livro, que sentindo o vento na cara numa grande máquina em movimento? Em um estranhamento que insiste em fazer-se casa?
Algum tempo depois descobrimos que uma amiga havia ganhado de presente de seu irmão dois livros de Berger, mas não havia terminado nenhum. Agora já entendo o porquê. O primeiro que pedi emprestado foi Fotocópias. Não se trata de uma novela, nem de uma coletânea de contos. John Berger escreveu uma grande variedade de gêneros, entre ensaios, teatros, novelas, livros sobre arte, roteiros, etc. Fotocópias, assim como o último que estou lendo, O Caderno de Bento, exprime uma forma de escritura extremamente sintetizada, onde uma pequena cena guarda dentro de si tonalidades e intensidades que podem passar desapercebidas para olhos apressados ou desinteressados. São breves cenas vividas, seja de encontros em presença, como um grupo de leitura com detentos em uma prisão, seja em ausência, como a visita a um quarto onde viveu Simone Weil em Paris. Mas é sem dúvidas uma obra para quem já conhece o autor, do contrário será uma experiência estranha, em doses muito curtas e sem aparente desenvolvimento. Esta escritura mais curta de Berger é como desenhos. Em uma das passagens de O Caderno de Bento, um livro que Berger escreve como se fosse um caderno de desenhos perdido de Baruch de Espinoza, encontramos uma analogia entre o desenhar e o pilotar uma moto. Se trata, em ambos casos, de dar via às tensões. Assim como as rodas que mordem o asfalto, ou a curva em que se sente as pressões centrípetas, no desenho é necessário expressar os corpos, os volumes, não como um ser estático e artificial, senão como esta substância desbordante que está insistentemente contida em formas irregulares, em pressões cambiantes. A cena expressa a tensão, pois a trama da experiência social e histórica é um caldeirão em constante movimento. Não há uma imagem humana que não nos coloque em contato com as tragédias, os acontecimentos, a miséria humana e as belezas únicas dos pequenos detalhes de nossa existência. Este é o humanismo de John Berger.
Em uma destas cenas, Berger descreve o pequeno e puído quarto de hotel em que estava hospedado um amigo seu. De sua geração de amigos pintores, era um dos que nunca se tornara famoso e endinheirado, como o próprio Berger nunca se tornou um famoso crítico dos círculos das belas artes. Ambos se empenhavam na atividade de observar as telas que seu amigo havia trazido para uma mostra onde estariam à venda. Cada tela era observada com cuidado e com o seu devido tempo. Não estavam em busca da grande verdade artística, da aura ou do engenho técnico. Seu próprio autor e Berger se entregavam apenas à contemplação da arte, da criação humana e seus caminhos. As coisas que ousamos criar, e que ousamos julgar com nossos próprios critérios.
As ilustrações reproduzem obras de Edward Hopper (1882-1967).
Faltou o link para os vídeos disponíveis na internet: Modos de Ver; entrevista sobre sua obra e trajetória.