Por Boris Cofré Schmeisser

Em 18 de outubro de 2019, o Chile entrou na mais profunda crise social e política dos últimos 50 anos, da qual ainda não saiu. A eclosão social ou revolta popular expressa profundo descontentamento social com o exercício autoritário e abusivo do poder político e econômico, ou seja, os sintomas mais agudos do modelo neoliberal e de sua democracia sem cidadania. Nas jornadas de protesto de 2019, foram registradas concentrações históricas, por exemplo, a chamada “Maior marcha da história” (25 de outubro), da qual participaram mais de um milhão de pessoas em Santiago, cidade onde vivem cerca de 6 milhões.

Segundo dados do Instituto Nacional de Direitos Humanos, a resposta violenta do governo a essas manifestações deixou mais de dois mil cidadãos presos (até hoje), dezenas de mortos, mais de três mil feridos, a maioria deles por disparos de chumbo (1.681), gás lacrimogêneo (271), balins de pressão (190) e balas (51). Entre eles, 445 foram lesões oculares, 34 com perda parcial ou total da visão. Por mais expressivos que tenham sido o descontentamento e o protesto social, a autoridade optou por responder com repressão e aprofundamento do modelo, que só abriu, contra sua vontade, no quadro de uma greve geral — 12 a 14 de novembro —, a um processo de mudança constitucional (acordo de 15 de novembro de 2019). Concordou-se em realizar um plebiscito para apurar se o público aprovava ou rejeitava a substituição da atual Constituição Política, elaborada em 1980, durante a ditadura de Pinochet (1973-1988), pilar do “modelo chileno”. A data original era 26 de abril, mas, devido à pandemia de COVID-19, foi adiada para 25 de outubro de 2020.

Em março de 2020, no momento em que as manifestações recuperavam maciçamente com o 8M (8 de março, Dia da Mulher) após as férias de fevereiro, o governo se preparava para um novo ciclo repressivo, e as forças políticas se preparavam para o plebiscito de 26 de abril. Desencadeou-se uma nova crise: o  coronavírus havia chegado ao Chile. A crise da saúde custou a vida de mais de 15 mil pessoas; adoeceram mais de 500 mil em um país de 17 milhões; e ameaçou em seu ponto mais alto, em junho deste ano, o colapso do sistema de saúde (várias áreas do país ficaram com cerca de 90% de sua capacidade utilizada). Embora esta nova crise tenha modificado o cenário político, ao permitir ao governo retomar a iniciativa política ao impossibilitar a manifestação pública e imobilizar a oposição, revelou a profunda desigualdade nas condições de trabalho e no acesso à saúde, que aprofundou o processo destituinte e desencadeou uma profunda crise econômica.

De acordo com o FMI, a economia chilena entrará em recessão em 2020. O PIB cairá cerca de 4,5% neste ano, elevando a pobreza para 14% e o desemprego para 18% (cerca de 2 milhões de pessoas). Atualmente, já são cerca de 2 milhões de pessoas sem trabalho e prontas para ficar sem renda. Mas essas médias escondem o impacto que as crises têm no segmento de baixa renda da classe trabalhadora; por exemplo, enquanto o desemprego é de 10% em geral, neste grupo social ultrapassa os 30%. O mesmo ocorre com os indicadores de saúde, previdência e habitação.

Essas três crises são as mais marcantes, mas não são as únicas. Existem crises silenciosas que afetam a sociedade da mesma forma. A crise da água (10 anos de seca e privatização), a crise da habitação (o déficit atinge cerca de 2 milhões de pessoas) e a crise das pensões (as pensões em média não ultrapassam a linha da pobreza ou um salário mínimo), para nomear algumas.

Graças à redução do número de casos de COVID-19, em outubro deste ano teve início a flexibilização das normas de confinamento da população, o que permitiu que os protestos recomeçassem todas as sextas-feiras no centro da capital, e com eles a repressão. Por exemplo, na sexta-feira, 2 de outubro, um policial jogou um manifestante de 16 anos da Ponte Pio Nono no leito do rio Mapocho, causando-lhe ferimentos graves. A ponte tem cerca de dez metros de altura. Após o ataque criminoso, o piquete da polícia retirou-se do local sem prestar assistência. Embora o uso de espingardas tenha sido limitado, e com isso também tenha sido reduzido o número de feridos, os fatos pouco claros em que manifestantes são atacados ou mortos no centro da cidade ou em bairros populares continuam. Práticas como o uso de produtos químicos na água jogada pela polícia nos manifestantes se naturalizaram, causando queimaduras leves na pele.

Apesar do permanente estado de repressão, no dia 18 de outubro, no quadro da comemoração de um ano da revolta social, as manifestações recuperaram a sua massividade. Dias depois, em 25 de outubro, mais de 7,5 milhões de cidadãos votaram 78% pela aprovação da mudança constitucional e pela escolha do órgão constituinte mais democrático (Convenção Constitucional).

Estamos agora com cinco meses (abril de 2021) para a eleição de Governadores Regionais, Prefeitos, Vereadores e membros da Convenção Constitucional, e um ano (novembro de 2021) para a eleição de Presidente, Senadores, Deputados e Conselheiros Regionais. Desta forma, 2021 será marcado por esses processos eleitorais que estabelecerão um novo governo e uma nova Constituição que entrará em vigor a partir de 2022 e definirá o quadro sobre o qual as lutas se desenvolverão nos próximos anos e décadas.

Boris Cofré Schmeisser, chileno, é Doutor em história e Membro do Movimento Ukamau.

A tradução deve-se a Marcia Cury.

As fotografias são de Ivan Alvarado.

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