Por Isadora de Andrade Guerreiro

Passado o momento eleitoral, talvez seja mais possível agora fazer algumas colocações a respeito do significado da ascensão da candidatura de Guilherme Boulos em São Paulo. Foram muitos os elementos acionados pela chapa paulistana do PSOL, cujo sucesso eleitoral não pode ser ligado a apenas um deles, mas à força que adquiriram juntos fatores aparentemente dispersos que se alinharam, tais como: a urgência de frear a ascensão eleitoral da extrema-direita, o fundo de poço a que chegou o PT paulistano com a candidatura Gilmar Tatto, a ampliação da legitimidade social das lutas identitárias, o engajamento político de movimentos culturais de periferia na produção da campanha nas redes sociais, a vinculação com o significado histórico de Luiza Erundina na cidade, entre outros. No que me cabe, acredito que possa ajudar nesta reflexão compartilhando um pouco das relações entre técnica e política no campo da luta por moradia, origem do candidato cabeça de chapa.

Meu argumento aqui vai tentar identificar uma particularidade da atuação do grupo associado a Boulos dentro do MTST, que acabou construindo, já como hegemonia dentro do movimento no início da década de 2010, um caminho próprio na dinâmica da luta por moradia. Afasto-me tanto das análises que identificam o MTST de maneira positivada – como crítico à institucionalização dos movimentos de moradia ao retomar ações diretas –, quanto das análises posteriores, de caráter crítico, que o associam à ação destes mesmos movimentos por meio da adoção do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) Entidades. Interessa-me, em vez disso, a aparente contradição desta identidade truncada entre ser e não-ser – que se reflete de maneira significativa na chapa Boulos-Erundina entre ser e não-ser o PT, nas suas diversas faces. A estratégia parece ser manter a contradição, podendo acionar ambas as formas de maneira tática e controlada.

Minha hipótese é a de que este aspecto entre o ser e o não-ser tem a ver com a forma como o MTST lidou com a luta por moradia nos marcos da crise do trabalho. No seu site, na parte “quem somos” fica clara a necessidade de falar dos trabalhadores, organizados a partir do território periférico e não da fábrica. Coloca-se ali como um “movimento territorial”, cujo foco é a moradia – e não como “movimento de moradia”, se diferenciando dos outros movimentos correlatos. Há algo para além desta diferenciação nas entrelinhas não apenas do texto, mas também nas práticas do MTST ao longo dos anos 2000: sua busca por mobilizar a “periferia” na chave da precariedade das suas relações de trabalho e reprodução da vida, se afastando da chave de integração pelo direito social, prometido pela integração pelo trabalho, meio a partir do qual os tradicionais movimentos de moradia – e também o MST – pensavam e estruturavam a formação política de suas bases. Um “trabalho”, no entanto, entendido de forma ontológica, herança da tradição católica latino-americana, no qual o ser social é formado pelo trabalho coletivo de transformação da matéria física, espiritual e política.

O MTST, ao contrário disso, historicizava o trabalhador latino-americano metropolitano periférico. No final da década de 2000, pós crise mundial, a questão foi como lidar com isso numa conjuntura de crise do trabalho e ficcionalização da economia, que apareceram nas lutas urbanas naquele momento primeiramente pela reestruturação imobiliária, justamente na moradia. No texto da coluna anterior eu citei análises, do início dos anos 2010, que apontavam certa convergência para o fato de que algo se movia nas classes populares naquele momento, em particular na sua relação com o trabalho. A crise do trabalho chegava entre nós – país de estrutural desemprego, informalidade e precariedade laboral e territorial – não como desalento, mas como oportunidade de enfim integrar nossa histórica viração pela sobrevivência no mainstream da acumulação mundial. O meio para isso acontecer foi o empreendedorismo popular combinado às variadas formas de “subsunção real da viração” postas em andamento com grande sucesso por aqui, não sem motivo, dada nossa histórica relação com a informalidade e com a extração brutal de valor transferido para o centro do capitalismo.

A lógica do empreendedorismo é uma forma historicamente determinada de relação de trabalho, baseada na dispersão do corpo produtivo e concentração de rendimentos – o que radicaliza o enfrentamento capital-trabalho na medida em que aumenta a capacidade de controle do primeiro e desagrega (aparentemente) o caráter coletivo do segundo. Sua disputa por hegemonia alterou tanto, desde baixo, as formas cooperativas de trabalho, quanto, por cima, as relações assalariadas formais. No campo das lutas, alterou tanto a organização sindical, quanto as organizações comunitárias. De certa forma as aproximou e as modificou estruturalmente.

No campo da luta por moradia, é importante lembrar a sua particularidade latino-americana. Muito diferente da luta dos países centrais, direcionados para a constituição de direitos sociais por meio da institucionalidade, por aqui essa relação não pôde se estabelecer da mesma maneira. Ainda que esse elemento estivesse presente, nossa relação estrutural com a informalidade impedia que ele se completasse – não falo nem de conquistas, mas, antes, da forma mesma de disputa política. Na moradia, essa relação era com a autoconstrução – da casa e da cidade, o que envolvia também a ocupação de terra.

A tal luta por direitos estava envolvida diretamente com formas autônomas de produção – a social-democracia querendo ou não. Necessariamente passavam por elas na medida em que nossa forma predominante de relação de trabalho é a informalidade. Portanto, era necessário retirar destas relações, concretas e não abstratas, as possibilidades de organização política popular – por mais que, do ponto de vista estrito da constituição do sujeito histórico trabalhador, isso pudesse ser lido apenas como rebaixamento salarial.

Foi a partir daí que se desenvolveram os movimentos de moradia paulistas a partir da década de 1980, adequando o modelo das cooperativas uruguaias de construção à nossa prática da autoconstrução. Quero dizer com isso que aqueles movimentos de moradia – criticados pelo MTST por sua efetiva institucionalização – carregavam esta contradição entre a experimentação de práticas cooperativas de organização do trabalho e da vida, com a formalização das políticas públicas de habitação. Essa contradição se dava nos marcos do projeto de integração social cidadã por meio do trabalho cooperativado, que produziria uma “democracia participativa”. Essa espécie de cogestão – e não autogestão, na realidade – passou por fases distintas de subsunção até o PMCMV, quando a coisa virou na medida em que o programa amoldava esse projeto de “democracia popular” aos marcos do mundo pós-crise.

Não será possível entrar em muitos detalhes aqui, mas, grosso modo, antes de ser uma política pública habitacional, o PMCMV instrumentalizou o direito à moradia como mecanismo de reestruturação produtiva no setor imobiliário, que precisava de um tipo específico e coordenado de expansão após a abertura de capital de muitas empresas do setor – que se deu a partir de 2005. Para dar resposta às exigências de outro tipo de acumulação, em conjunto com a crise mundial, tal setor precisou adequar seu processo produtivo, o que envolveu a articulação de uma nova mercadoria (a habitação popular em massa realizada como mercadoria pelo mercado imobiliário); a disputa de terras periféricas antes abandonadas pelo mercado (mas centrais para a reprodução das classes populares); e a transformação de uma massa de população sem poder aquisitivo em mercado consumidor (o modelo de “subsídio à demanda”, diferente do modelo de “subsídio à produção”).

Embora o discurso político sempre fosse o de que a modalidade Entidades do programa seria diferente daquela de mercado, isso precisa ser matizado. Na faixa de renda mais baixa, onde ela atuava, as diferenças da modalidade Entidade para a de mercado eram basicamente duas: 1. a responsabilidade pelo projeto e pela obra; e 2. a indicação da “demanda”. No caso da modalidade de mercado, a “demanda” seria indicada pelo poder público municipal e as construtoras precisavam passar por um processo de certificação de processos produtivos e gerenciais pela Caixa Econômica Federal (de padronização internacional), o que limita o mercado desta modalidade. No caso das Entidades, a “demanda” é indicada pelo movimento social associado à Entidade Organizadora. Do ponto de vista de projeto e obra, independente de quem está gerindo o processo, é importante frisar que as condicionantes de produção do PMCMV são as mesmas, e respondem às necessidades de um mercado imobiliário em processo de abertura de capital. Independente também de a construtora particular de um empreendimento específico não ter capital aberto, pois sabemos que processos produtivos são definidos por uma média do setor, que define a mercadoria final.

Além disso, retomando o fio da meada, no campo da produção da unidade habitacional, havia uma divisão fundamental internamente à modalidade Entidades. Ao fazer a contratação do PMCMV, as Entidades podiam escolher entre a organização denominada de “Autogestão” ou a de “Empreitada Global”. Se a Entidade escolhia fazer o empreendimento por “Autogestão” (uma cogestão, na realidade), ela seria responsável por fazer um projeto próprio e gerir a obra diretamente, comprando materiais e contratando diretamente mão de obra (ou eventualmente fazendo partes em mutirão), com participação direta dos futuros moradores em todos os processos de gestão e canteiro. Se escolhesse a “Empreitada Global”, ela contrataria uma empreiteira, que faria todo o processo, eventualmente seguindo um projeto da Entidade (solução sempre parcial, pois nenhuma construtora aceita fazer algo que não domina e que não vai lhe dar lucro). Os futuros moradores, neste caso, teriam participação bastante lateral – sem participar nem de projeto, nem de gestão, nem de obra –, com uma centralização grande nas lideranças da Entidade em contato com a construtora. Tornavam-se consumidores, endividados – ainda que menos em comparação às faixas imediatamente superiores de renda, com menor subsídio.

Com o PMCMV, portanto, as contradições da luta por moradia mudaram de patamar, porém de dois modos diferentes. Um deles – vinculado ao Entidades Autogestão, contratado apenas por movimentos que já sabiam operar estas relações de produção – aprofundou a subsunção da cogestão estatal-popular às necessidades de produtividade do capital financeiro, que transformava toda a cadeia da construção civil do país por meio do programa. Muitos ficaram no meio do caminho, sem conseguir de adequar. Outro modo – vinculado ao Entidades Empreitada Global, contratado na maioria dos empreendimentos, inclusos os do MTST –, no entanto, produzia uma nova coalizão diretamente privada-popular, na qual a mobilização política de base do movimento não passava mais pelo trabalho cooperado ou cogerido – sendo acionada apenas pela relação de consumo da mercadoria casa.

Ambos os modos expressam o esgotamento do modelo anterior que, quando aplicado, se desloca. Mas eles não são iguais, notadamente porque mobilizam politicamente de maneiras distintas a relação entre trabalho e moradia. Eles constroem formas distintas de “poder popular”. O primeiro aposta na gestão dos conflitos, enquanto o segundo, embora critique tal gestão do trabalhador-cidadão, aposta numa espécie de integração de interesses vinculados à gestão de uma população consumidora. No primeiro modo, o deslocamento da autogestão vai em direção à formação de certo empreendedorismo na base do movimento, que precisa adequar a produção à maior produtividade. No segundo modo, o empreendedorismo está nas lideranças, que passam a dar produtividade à organização política como gestão do capital (imobiliário, no caso), na esfera da distribuição de mercadorias.

Portanto, falar do PMCMV Entidades significa muitas vezes falar de formas de organização da produção diferentes, com consequências nas formas de mobilização política da base. No entanto, isso é sempre obscurecido pelos movimentos – e o MTST aqui é um dos principais – que contratavam por “Empreitada Global”, uma dinâmica que acompanha de perto o obscurecimento do mundo da produção e das relações de trabalho. Chama a atenção, no entanto, a necessidade de publicizar a “conquista da moradia” por uma pretensa “autogestão” que se apoia numa realidade produtiva estritamente terceirizada e empresarial, de canteiros (e orçamentos) fechados, projetos padrão e lista de “demanda”. Por que não dizer simplesmente que o movimento contratou uma construtora, que é contra a autogestão (já tão criticada e não desejada por quase ninguém)? Por que manter essa aparência, que é um vínculo com processos políticos-produtivos anteriores? Vamos lembrar então o início do texto e a estratégia de manter a contradição aparente.

O MTST baseou sua expansão nacional neste mecanismo, se reproduzindo politicamente pela mesma forma do PMCMV Entidades “Empreitada Global”, com a qual contratou e mandou construir seus empreendimentos habitacionais. Boulos e seu grupo foram responsáveis por instituir dentro do movimento um processo de “profissionalização” (era essa a palavra usada em reuniões entre nós, assessores técnicos, e eles) que na verdade conformou a organização ao modelo de empresa, dentro da qual trabalho deve produzir resultado quantificável. Ou seja, deve antes de tudo ser fragmentado, controlado e dirigido aos resultados previamente planejados (por poucos), pois é necessário haver retorno dos investimentos (políticos e financeiros) feitos. A produtividade política incluía controlar a crítica interna, manter os colaboradores subsumidos e, principalmente, desenvolver técnicas de gestão de uma base fluida, que precisa estar entre a mobilização e a desmobilização, flexível na medida certa – como o mar de barracos de lona na maioria inabitáveis de seus acampamentos.

A “profissionalização” chegou a tal ponto que o MTST passou a não precisar mais nem mesmo organizar diretamente as mobilizações locais, mas apenas emprestar sua bandeira para as mesas de negociação – ponto nevrálgico do processo, na medida em que eram elas que abriam as oportunidades de novas frentes que, terceirizadas, ainda sairiam com o nome do MTST. Neste sentido, gerenciava grandes processos de negociação: uma “demanda”, que nunca teve acesso ao mercado, tornada volátil pelo subsídio, sem que o movimento tenha, contraditoriamente, uma base efetiva mobilizada. Não é a toa que, embora o PSOL quisesse que o pacote Boulos viesse junto com sua base popular para um partido que custa a ter penetração na periferia, isso não tenha acontecido – simplesmente porque ela não existe, é apenas acionada na medida dos seus interesses como consumidora.

Retomemos por fim a questão da estratégia entre ser e não-ser. O trabalho mobilizado para a reprodução política deste tipo de organização precisa parecer engajamento, enquanto é, predominantemente, trabalho que produz mercadorias – para além das casas, ativos políticos. A forma do trabalho no empreendedorismo é exatamente essa: precisa trabalhar sem parecer que é trabalho; precisa produzir mercadorias que escondem que são mercadorias. A força de Boulos vem da sua capacidade de produzir uma forma nova e potente – no sentido do alcance – de fazer política, pois subsumida à forma empreendedora popular. Era esse o sentido do final da minha coluna anterior, quando eu falava sobre canalizar e dar respostas aos anseios populares, porém formalizando-os, criando novos contornos da ordem.

Boulos não é o PT da integração pelos direitos sociais, nem o PSDB das Parcerias Público-Privadas, nem o centrão populista, nem mesmo a ascensão identitária – ainda que tudo isso possa caber dentro de seu discurso e até mesmo das possíveis futuras práticas governamentais. Importa menos o discurso – que será adaptado às circunstâncias –, mas muito mais a forma de organização mobilizada. Esta está a serviço da reestruturação das organizações onde ele passar, como aqueles “reestruturadores de empresas”, que as reposicionam no mercado em meio à crise. Aparece como “a única saída” (como escutei de muitos colegas do PSOL). A “saída” eleitoral de “sucesso”, aqui, aparece como maneira pragmática de associar “produtivamente” as diferentes formas adquiridas pela crise do trabalho nas periferias, devidamente fetichizadas para obscurecer sua negatividade, com a qual é muito difícil lidar. Afinal, quem não quer ser feliz depois de 2013?

2 COMENTÁRIOS

  1. muito interessante. Enquanto o estalinismo revive discursivamente nas redes sociais, o Boulos vinha mostrando há anos na prática a cara do “socialismo realmente existente” no solo brasileiro.

  2. Enquanto a esquerda puder se criticar assim talvez ainda haja sentido pensar em construir um campo efetivamente de esquerda.

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