Por Cridom
Janeiro de 2018. São Paulo. Sexta-feira. Fim de tarde. Calor e ar abafado. Fez 38 graus na Paulista. Mais de 20 minutos de espera no ponto de ônibus. Rotina. Já me acostumei que naquele ponto, em frente a uma das estações do metrô, não sendo final de semana e ainda mais naquele horário, a chance de conseguir ir sentado, nesta última parte da minha viagem de volta do trabalho, é quase zero. Aquele é apenas o segundo ponto da linha, mas só o fluxo que vem da estação e do terminal de ônibus anexo já é o suficiente para quase sempre lotar os ônibus daquela linha. O ônibus se aproxima. Eu torço fortemente para que ele pare bem ao meu lado. Estou com os dois pés no meio-fio. Não posso ser empurrado por motivo algum. Para a minha sorte, coisa rara, difícil de acontecer em meio a tanta gente, ele para ao meu lado. Nem bem as portas estavam totalmente abertas e eu já me colocara dentro. Passei pelos bancos amarelos, convidativos, mas não era o caso. Deixei-os para trás e me sentei depois da roleta, próximo à porta, num daqueles bancos mais altos. Ali bate um vento, da porta também vem um ventinho quando o ônibus para nos pontos. Ao meu lado sentou-se uma jovem e linda mulher. Baixa, magra, cabelo curto, curvas que se destacavam, pele morena, olhos puxados, a boca colorida maravilhosamente e nada discreta. Beleza que lembrava uma índia, uma filipina ou quem sabe uma tailandesa. Dava para sentir o perfume do shampoo que ela usou. Logo que se sentou, abriu a bolsa e tirou de lá “A sangue frio”, de Truman Capotte. Vejo que ela carregava uma linda tatuagem entre os seios. Ao ver aquelas páginas lembrei-me de retomar o relato do dia de ontem. E o retomei ali mesmo. No bloco de notas do celular.
Primeiro dia do meu segundo ano na cidade de São Paulo. O mesmo cheiro de merda continua no ar. Da minha primeira temporada aqui, no início dos anos 1980, não tenho recordação alguma. Eu era uma criança muito pequena. Quatro horas da manhã e já há muita gente na rodoviária do Tietê. Sigo com minha obrigação: metrô, metrô, caminhada curta, ônibus, caminhada considerável e trabalho. A população em situação de rua se espalha pelas calçadas e marquises. Cada dia parece haver mais. Alguns vagam solitários pela noite. Muita gente se prostituindo. Bares e lanchonetes abertos. Um razoável movimento de automóveis corta a cidade. Viaturas militares cruzam ruas. Filas no metrô. Filas nos pontos de ônibus. A mulher deficiente não encontra fraternidade na porta do vagão. Dentro, três homens discutem por conta de um assento. Um casal passeia feliz num carro conversível; sorridentes. Na calçada, um mendigo passa as mãos na cabeça. Parece desesperado. Pessoas perfumadas caminham para o trabalho ou à academia de ginástica. Os perfumes agradam meu olfato desanimado. São bons os perfumes de duas prostitutas, que como eu, caminham lentamente. Já sei bem que não mais estou numa região do interior do Brasil: mato, praias e montanhas. Tudo continua igual ao que era em dezembro do ano passado. Fim de férias. Volto ao trabalho. Como parte de um considerável grupo de trabalhadores da educação, numa empresa privada, também soltarei aplausos que os outros não merecem. Fotografias serão produzidas. Em silêncio, jogo o jogo que conheço bem. Sei das suas regras sociais. Sou um trabalhador comum qualquer. Tenho dívidas financeiras e necessidades que me fazem jogar. Preciso comer, beber, vestir, morar, me preparar para o trabalho. Amar, visitar, presentear e ajudar quem eu amo, e desconhecidos. Viver!
O início do ano letivo, naquela empresa, foi marcado por uma apresentação de um grupo musical, repleta de interações com o público, e uma reunião com parte dos gestores. Além de uma breve fala da diretora da empresa. Uma atividade pior que a outra. Novidade desagradável me esperava. Minha carga de aulas, que já era pequena ano passado, agora será ainda menor. Renda menor. Empobrecimento certo. O ano promete mais dificuldades. Ainda é incerta a minha situação no meu outro trabalho. Numa faculdade privada, onde minha carga horária já foi, ano passado, extremamente baixa, e onde vi vários professores perderem suas aulas. Aulas presenciais foram substituídas por aulas à distância. A empresa segue a tendência. Ali, ainda sigo com a incerteza. Um aumento da jornada poderá reverter a terrível situação que me fora apresentada hoje. Mas sei bem o quanto isto é difícil. Nada me indica mudança para melhor. Espero um ano mais difícil do que o anterior. 18 horas. Volto para casa após uma tarde bastante agradável na companhia de um casal de colegas. Tráfego intenso na avenida Eliseu de Almeida e cheiro de maconha no ar.
No destaque, uma fotografia de Rebecca Bathory (1982-).
Crônica da vida real. Tudo são meras distrações para nos desviar da certeza de que amanhã será pior.
Se existe uma certeza hoje em dia é de que, não importa o que aconteça, dentro das possibilidades, amanhã será pior.
E como se organiza e se luta sabendo que de qualquer forma amanhã será pior?
“Patience, patience.
Patience dans l’azur
chaque atome de silence
est la chance d’un fruit mûr !”
― Paul Valéry