Por Jan Cenek
I
A história é conhecida. No final da vida, aos 40 anos… Franz Kafka pediu para que Max Brod queimasse-lhe os textos não terminados. O amigo não obedeceu e divulgou os escritos inéditos. Pouco tempo depois da morte de Kafka, em 1924, foram publicados O processo (1925), O castelo (1926) e outros. Fosse Max Brod um personagem kafkiano, como tantos que cumprem obstinadamente qualquer ordem, os textos teriam desaparecido para sempre.
A história também é conhecida, mas pouco associada aos contos e romances escritos por Kafka. Em 1908, já formado em direito, o escritor ingressou no Instituto de Seguros contra Acidentes do Trabalho do Reino da Boêmia. A atuação não se restringia a questões jurídicas, Kafka compunha o “departamento técnico”: visitava fábricas, construções, pedreiras, serrarias. Classificava o “nível de periculosidade” das indústrias e “se ocupava diariamente com as consequências de graves acidentes de trabalho” [1]. Acompanhou batalhas jurídicas travadas contra empresas e as consequências de acidentes para os trabalhadores: “Membros mutilados por serras ou bobinas de corda, escalpelamentos por rodas de transmissão, queimaduras, envenenamentos e cauterizações” [1]. Kafka conheceu o mundo do trabalho por dentro. Em 1909, o escritor enviou uma carta a Max Brod em que relatava:
Pois o que eu tenho que fazer! Nos meus quatro distritos […] como bêbadas as pessoas despencam dos andaimes para dentro das máquinas, todas as vigas tombam, todas as rampas se soltam, todas as escadas escorregam, o que se alcança para cima, desaba para baixo, o que se alcança para baixo, causa a própria queda. E se tem dores de cabeça das jovens nas fábricas de porcelana, que incessantemente se lançam sobre as escadas carregando torres de louça [2].
A metamorfose é formada por três capítulos. Foi publicada em 1915. A novela não estava, portanto, entre as obras que deveriam ser queimadas, foi concluída pelo autor em vida, na época em que trabalhava no Instituto de Seguros contra Acidentes do Trabalho do Reino da Boêmia. Kafka às vezes não dá nomes aos personagens, mas costuma indicar-lhes as profissões: o oficial (Na colônia penal), os ajudantes (O castelo), o jejuador (Um artista da fome). Ainda que não seja o único, A metamorfose é um dos textos kafkianos em que o trabalho é central, principalmente no primeiro capítulo. Certa manhã, o caixeiro viajante Gregor Samsa desperta de sonhos intranquilos e se percebe transformado em inseto. A partir do segundo capítulo, o narrador explora a relação entre a família e Gregor, que continua ouvindo, mas vai aos poucos perdendo a fala. Impossível não pensar em Bartleby, o escriturário, de Herman Melville, que começa a repetir “preferiria não” e vai perdendo a fala dentro de um escritório em Wall Street. Bartleby se refugiava atrás de um biombo. Gregor Samsa, já transformado em inseto, se refugiava debaixo de um sofá. Bartleby é um Gregor Samsa que recusou o trabalho. Gregor Samsa é um Bartleby incapaz de dizer “preferiria não” ao chefe e à empresa.
II
A fórmula foi repetida no romance O processo, o drama começa ao despertar. Na mesma frase, logo no início da novela A metamorfose, o narrador informa que Gregor Samsa teve “sonhos intranquilos e está na cama metamorfoseado num inseto monstruoso” [3]. Na sequência, ficamos sabendo que as numerosas pernas do inseto, lastimavelmente finas, tremulavam ao alcance de seus olhos. Não há nenhuma indicação sobre a causa da metamorfose, mas no terceiro parágrafo, logo após Gregor perguntar “o que aconteceu comigo?”, somos informados de que Samsa é um caixeiro-viajante e, apesar de ter se transformado num “inseto monstruoso”, ainda conserva a fala, é o próprio que diz:
Que profissão cansativa eu escolhi. Entra dia, sai dia — viajando. A excitação comercial é muito maior que na própria sede da firma e, além disso, me é imposta essa canseira de viajar, a preocupação com a troca de trens, as refeições irregulares e ruins, um convívio humano que muda sempre, jamais perdura, nunca se torna caloroso. O diabo carregue tudo isso.
Refletindo sobre as mazelas do trabalho, Gregor Samsa reclama dos problemas relacionados ao sono numa profissão em que é obrigado a viajar constantemente. Na sequência ficamos sabendo, pela boca do “inseto monstruoso”, que Gregor tem um chefe exigente e capaz de demiti-lo pelo menor deslize. Depois somos informados que a família Samsa (pais e irmã) é sustentada pelo caixeiro-viajante, que, por essa razão, teme perder o emprego. Além disso, o pai de Gregor tem uma dívida pecuniária com o chefe do filho, o que o pressiona a continuar trabalhando: “Se não me contivesse por causa dos meus pais, teria pedido demissão há muito tempo; teria me postado diante do chefe e dito o que penso do fundo do coração” [3].
Como não consegue se levantar da cama, Gregor pensa em faltar ao trabalho alegando problemas de saúde, mas desiste porque nunca havia ficado doente em cinco anos de serviço. Além disso, “o chefe viria com o médico do seguro de saúde, censuraria os pais por causa do filho preguiçoso e cercearia todas as objeções apoiado no médico, para quem só existem pessoas inteiramente sadias, mas refratárias ao trabalho” [3]. O médico é um exemplo de personagem sem nome e com profissão, ele tomaria o partido da empresa e cumpriria obstinadamente qualquer ordem. A medicina do trabalho é uma especialidade que surgiu como exigência das empresas para baratear custos, é comum encontrar médicos do trabalho mais preocupados com os lucros do capital do que com a saúde dos funcionários. Kafka conhecia o mundo do trabalho, a referência ao “médico do seguro de saúde” não é à toa.
Ainda sem conseguir sair do quarto, Samsa nota alterações na própria voz, mas acredita tratar-se do prenúncio “de um severo resfriado, moléstia profissional do caixeiro-viajante” [3]. Moléstia profissional…
Passam-se algumas páginas, mas ainda estamos nas primeiras horas daquela manhã, Gregor escuta batidas na porta do apartamento, do quarto ouve as primeiras palavras e identifica o visitante, é o gerente. Neste ponto, o narrador pergunta:
Por que Gregor estava condenado a servir numa firma em que à mínima omissão se levantava logo a máxima suspeita? Será que todos os funcionários eram sem exceção vagabundos? Não havia, pois, entre eles nenhum homem leal e dedicado que, embora deixando de aproveitar algumas horas da manhã em prol da firma, tenha ficado louco de remorso e literalmente impossibilitado de abandonar a cama?
A mãe de Gregor recebe o gerente dizendo que o filho não estava bem e que ainda não havia saído do quarto. Segundo ela, Samsa não tem outra coisa na cabeça a não ser o trabalho. O gerente responde: “Esperemos que não seja nada grave. Embora por outro lado eu tenha de dizer que nós, homens do comércio, feliz ou infelizmente — como se quiser — precisamos muitas vezes, por considerações de ordem comercial, simplesmente superar um ligeiro mal-estar” [3]. A referência ao trabalho é tão explícita quanto a pressão do gerente, que assedia o funcionário diante da família Samsa.
Transformado num inseto, Gregor não consegue se levantar e abrir a porta, mas continua ouvindo e falando. O estranhamento, em Kafka, brota de contrastes desse tipo. O gerente eleva o tom de voz e se dirige a Gregor: “O senhor se entrincheira no seu quarto, responde somente sim ou não, causa preocupações sérias e desnecessárias aos seus pais e descura — para mencionar isso apenas de passagem — seus deveres funcionais” [3]. Cresce o estranhamento: de um lado, um homem transformado num “inseto monstruoso” tentando se levantar e ir para o trabalho; do outro lado, um gerente preocupado com o negócio. Diante da situação absurda, as ações e reações são normais, os personagens respondem com atitudes comuns, naturaliza-se o estranhamento. O gerente diz a Gregor: “O chefe em verdade me insinuou esta manhã uma possível explicação para as suas omissões — ela dizia respeito aos pagamentos à vista que recentemente lhe foram confiados” [3]. O superior sugere que o subordinado poderia ter roubado uma quantia que lhe havia sido confiada, ou seja, a honestidade do caixeiro-viajante é questionada, apesar de ele ser um funcionário exemplar.
Gregor pede que seus pais sejam poupados, afinal não havia motivos para as censuras. Ele se refere ao mal-estar: “Por que não comuniquei à firma? Mas sempre se pensa que se vai superar a doença sem ficar em casa” [3]. Ele resistiu enquanto pôde, como Bartleby. O caixeiro-viajante suplica: “senhor gerente, o senhor está vendo que não sou teimoso e que gosto de trabalhar, viajar é fatigante, mas não poderia viver sem viajar” [3]. Gregor Samsa mostra que vestia a camisa da empresa. Na sequência, ele suplica: “Tenho por outro lado de cuidar dos meus pais e da minha irmã. Estou num aperto, mas sairei dele trabalhando. Não me torne, porém, as coisas mais difíceis do que já são” [3].
III
A presença ambígua do trabalho na literatura não foi inaugurada por Kafka. Trinta anos antes do nascimento do escritor tcheco, Herman Melville publicou o conto Bartleby, o escriturário. Como os personagens kafkianos, o passado de Bartleby é desconhecido, sabe-se, apenas, que ele foi contratado para trabalhar num escritório em Wall Street. Aos poucos, o escriturário passa a repetir a frase “preferiria não” quando o chefe lhe pede para elaborar ou revisar documentos. Depois cai num mutismo quase total. Bartleby definha dentro do escritório [4], praticamente perde a fala, como Gregor Samsa. Mas, em geral, ensaístas, filósofos e acadêmicos não relacionam o caso Bartleby ao trabalho [5], o mesmo acontece com a novela A metamorfose.
Walter Benjamin registrou que “o mundo das chancelarias e dos arquivos, das salas mofadas, escuras, decadentes, é o mundo de Kafka” [6]. Vale destacar que, dentro das chancelarias, entre os arquivos, nas salas mofadas, laboram homens invisíveis, como Bartleby e os personagens kafkianos. Albert Camus notou uma cumplicidade secreta unindo o lógico e o cotidiano ao trágico: “Eis aí por que Samsa, o herói de A metamorfose, é um caixeiro-viajante. Eis aí por que a única coisa que o aborrece na singular aventura que faz dele um inseto repugnante é que seu patrão ficará descontente com sua ausência” [7]. Onde Camus enxerga o “cotidiano”, vejo o “trabalho”, é o que sugere todo o primeiro capítulo, com os parágrafos se alternando para relatar as mazelas da metamorfose e do ofício de caixeiro-viajante. A história de Gregor Samsa seria diferente se ele fosse porteiro, segurança ou funcionário público.
Kafka reclamava que o emprego no Instituto de Seguros contra Acidentes do Trabalho roubava-lhe o tempo necessário para escrever, mas teria escrito A metamorfose se não conhecesse e vivenciasse as mazelas do mundo do trabalho? A pergunta é válida para outros textos atravessados por questões laborais, como O processo, O castelo, Um artista da fome, A construção.
Na novela A metamorfose, mas não só, Kafka narra um acontecimento extraordinário com linguagem cartorial. É a grande sacada do escritor tcheco. Gregor Samsa age normalmente, apesar do absurdo. Também o narrador age normalmente, conta a história como se redigisse uma ata de reunião de condomínio, o que aumenta o estranhamento. O absurdo está naturalizado e não causa espanto. O narrador não se espanta com a metamorfose, assim como os leitores não se espantam com as mazelas laborais do caixeiro-viajante.
A excepcionalidade da metamorfose, somada à técnica refinada de Kafka, embaralha a imaginação dos leitores. Mas reparando bem, a transformação do caixeiro-viajante num “inseto monstruoso” tem relação com o trabalho, o que depõe contra o modo de produção capitalista.
Notas
[1] Santos, T. B. dos. Tecnologia e Franz Kafka: experiências profissionais e sua relevância na ficção. Rev. Let., São Paulo, v. 50, n. 2, p. 307-325, jul./dez. 2010.
[2] Carta citada no artigo acima, p. 309.
[3] Kafka, F. A metamorfose. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
[4] Para uma leitura do conto de Herman Melville a partir do trabalho, ver Bartleby: insegurança, adoecimento e morte de um trabalhador.
[5] Para uma leitura da novela a partir do campo da Saúde Mental e do Trabalho, ver A metamorfose e o campo da saúde mental de trabalhadores: uma análise bakthiniana.
[6] Benjamin, W. Franz Kafka. A propósito do décimo aniversário de sua morte. In Benjamin, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1993.
[7] Camus, A. O mito de Sisífo. 3. ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989.