Por Jan Cenek

Leia aqui a 2ª parte e aqui a 3ª parte.

Prelúdio

Bartleby, o escrevente é um conto publicado por Herman Melville em 1853. Oitenta páginas na edição de bolso. Mas, se o texto é curto, as interpretações são infinitas e possíveis, o que demonstra a força do conto. Bartleby seria “o novo Cristo ou o irmão de todos nós”[1]. Bartleby é “a figura extrema do nada de onde procede toda a criação e, ao mesmo tempo, a mais implacável reivindicação deste nada como pura, absoluta potência.”[2] Bartleby seria um precursor do movimento Occupy Wall Street.[3] Bartleby seria um anúncio do colapso da escrita do próprio Melville, que parou de escrever pouco tempo depois. Bartleby é um agente do caos, um destruidor da representação.[4] Bartleby simboliza uma doença, uma enfermidade, um mal endêmico das literaturas contemporâneas: a pulsão negativa, ou atração pelo nada, que paralisa as melhores mentes, que conduz não poucos escritores a dizerem um sonoro não para a escrita.[5]

Vale a pena dedicar algumas palavras ao último citado. No romance Bartleby e companhia, Vila-Matas cataloga e discute casos de escritores — reais e inventados — acometidos pela pulsão negativa, ou atração pelo nada, ou síndrome de Bartleby. E se o livro pode ser chamado de romance, talvez seja justamente pelos escritores inventados e pelos acontecimentos duvidosos atribuídos a escritores reais. Exemplo: “Melville teve a síndrome antes que seu personagem existisse, o que nos poderia levar a pensar que talvez tenha criado Bartleby para descrever sua própria síndrome.” É sabido que Melville parou de escrever depois e não antes de Bartleby, o que sugere que a tese de Vila-Matas é uma invenção (um acontecimentos duvidoso atribuído a um escritor real), mas pouco importa, porque o objetivo era, provavelmente, inventar (qualquer leitor minimamente capacitado percebe que texto é todo jogo e brincadeira). Seja como for, neste ponto Deleuze está mais próximo dos fatos: “Bartleby anuncia o longo silêncio no qual penetrará Melville, rompido apenas pela música dos poemas e de onde só sairá para Billy Budd.” Vila-Matas não chegou a causar o bloqueio da minha escrita minguada, mas prejudicou minha interpretação. Por muito tempo associei Bartleby ao não escrever. Como estou convencido de que é mais do que isso, resolvi inscrever minha interpretação entre as muitas disponíveis.

No escritório de um poeta-advogado, no centro de São Paulo, no final do século XX, havia centenas de enciclopédias, livros de capa dura que cobriam as paredes, acumulavam pó, absorviam a luz e sufocavam. Quando perguntávamos para que serviam aqueles livros, o poeta-advogado respondia que “não serviam para absolutamente nada!” É o mundo de Bartleby: escritório, pó, asfixia, pouca luz, repetição, ausência absoluta de propósitos.

Quando penso em Bartleby, vejo-o no escritório, diante de uma janela que dá para uma parede escurecida pelo tempo e pela sombra. A falta de luz e de visão sufoca. As janelas se abrem para paredes, não há esperança, só abandono. Tudo se passa em ambiente fechado: um escritório sem luz natural, sem ventilação e sem saída. A visão é bloqueada por todos os lados, como a vida dos homens, que apesar de tudo e sem porquê: existem.

O advogado-patrão-narrador do conto Bartleby afirma que “a felicidade flerta com a luz”;[6] se é assim e se o contrário é verdadeiro, é possível afirmar, com Camus, que “os homens morrem e não são felizes”,[7] o escrevente entre eles. Aliás, houve quem comparasse Bartleby a Camus, aquele seria um precursor deste, um homem revoltado contra o absurdo.[8]

Um dia o advogado-patrão-narrador é promovido a oficial e a carga de trabalho cresce no escritório. É quando Bartleby é contratado e entra na história: “palidamente limpo, tristemente respeitável incuravelmente pobre!”.[9] A partir daquela manhã de verão o escrevente passa a habitar o conjunto de salas no segundo andar do n°… da Wall Street, mais precisamente atrás do biombo, sempre atrás do biombo, o que é tão sintomático como pouco comentado. Por que Bartleby se refugiava atrás do biombo? Ele chega a dizer “I would prefer to be left alone here” (Eu preferiria que me deixassem sozinho aqui, sendo que este “aqui” era atrás do biombo. É uma das poucas falas afirmativas do escrevente).

A equipe de “colaboradores” (para usar o jargão dos departamentos de RH) era formada por outros dois escreventes e um mensageiro: Turkey, Nippers e Ginger Nut (respectivamente: Peru, Alicate e Biscoito de Gengibre). Todos comandados pelo advogado-patrão-narrador. Turkey: mais de sessenta anos, ficava vermelho e tinha sua capacidade de trabalho seriamente comprometida depois do meio-dia, à tarde copiava com fúria e intensidade, fazia barulho, esmurrava os papéis e, sobretudo, produzia borrões. Nippers: mais ou menos vinte e cinco anos, pele amarelada, ambicioso, sofria de má digestão, rangia os dentes, ficava irritado e tinha sua capacidade de trabalho seriamente comprometida de manhã. Como as crises dos escreventes ocorriam em turnos alternados, o advogado conseguia tocar os trabalhos. No começo chegou a pensar que a contratação de Bartleby compensaria as oscilações dos outros dois copistas. O último a compor o ecossistema do escritório é Ginger Nuts: aproximadamente doze anos, órfão de pai, entregava mensagens, limpava e varria o escritório, comprava biscoitos de gengibre para os demais, daí o apelido.

Nas grandes obras toda palavra e toda sentença são gravemente calculadas, nada é à toa, as palavras e as sentenças entram apenas quando é absolutamente impossível ficarem fora. É o que se percebe em Bartleby à medida que a leitura pede releituras, conforme passamos pelos comentadores, quando saltamos de uma tradução para outra e até para o texto original, em inglês. Sim, é preferível cotejar o original, porque toda tradução tem um quê de traição, e a mania de evitar as repetições pode ser fatal no conto de Melville. Especialmente quando decidem evitar a repetição da sentença (I would prefer not to/Eu preferiria não), que Bartleby repete catorze vezes; uma variante da sentença (I prefer not/Eu prefiro não) é pronunciada três vezes pelo escrevente. É assim que está no texto original, mas as traduções variam. Quando o patrão-narrador insiste, o escrevente troca o futuro do pretérito (preferiria) pelo presente do indicativo (prefiro). É o que vai aparecer mais à frente, em As recusas, onde respeitei as sentenças pronunciadas no original, mantendo as repetições que, desconfio, são importantes para entender o caso Bartleby. Não acredito que Melville tenha criado o escrevente primeiro na cabeça para depois colocá-lo no papel. Mais provável que conteúdo e forma tenham se forjado dialeticamente, porque são inseparáveis. Daí a importância de manter as repetições que as traduções tentam evitar. Daí a importância de contextualizar as recusas do funcionário.

Contar a história não prejudica quem ainda não leu, porque o fundamental não está escrito, está no que não é contado. Resumidamente. Com o crescimento da carga de trabalho o advogado-patrão-narrador resolve contratar um terceiro escrevente, um rapaz jovem e pouco descrito. Sabemos apenas que era frágil e pálido, que tinha olhos cinzas e rosto enxuto. É Bartleby. A partir do terceiro dia o escrevente se recusa a executar tarefas. Começa se recusando a examinar cópias. Termina na cadeia, recusando comida: morre ao pé do muro, com os olhos abertos e sem brilho.

Diversas interpretações sobre o conto podem ser encontradas. Como escrevi, são todas possíveis, afirmar, como faço, que o caso Bartleby tem a ver com um adoecimento relacionado ao trabalho é só mais uma interpretação possível. Não se trata de definir exatamente o que houve com o escrevente. Seria confundir ficção com realidade. Mais interessante é apontar como a relação entre trabalho e adoecimento é pouco notada pelos comentadores do texto, apesar dos fatos acontecerem dentro de um escritório e de envolverem um patrão e um empregado.

As recusas

1º) Nos três primeiros dias Bartleby produziu “quantidades extraordinárias de cópias”, ainda que escrevesse em “silêncio, apático, mecânico.” O narrador-patrão parece querer que o escrevente se alegrasse com o enfadonho trabalho de copista… No terceiro dia o narrador-patrão pede que o funcionário o ajude a revisar documentos. É quando aparece pela primeira vez a voz e a sentença de Bartleby: “Eu preferiria não”.

2º) “Alguns dias depois”, não sabemos ao certo quantos, o advogado-patrão volta a solicitar que Bartleby ajude a revisar cópias. Recebe a resposta padrão: “Eu preferiria não”. Mas insiste explicando que revisar cópias é parte do trabalho dos escreventes. É quando “Eu preferiria não” se torna “Eu prefiro não” pela primeira vez. O presente do indicativo substituiu o futuro do pretérito. A decisão deixa de ser condicional para se tornar “irreversível”. A mudança no tempo verbal ocorre justamente quando estava em questão o trabalho do escrevente. É um indício de que naquele momento o patrão rompeu o acordo que havia firmado com o funcionário, tentando forçá-lo a executar uma tarefa para a qual não seria remunerado.

3º) “Passaram-se mais alguns dias, com o escrevente dedicado a outra tarefa de fôlego”. Novamente o narrador deixa de informar quantos dias. A situação se repete. O escrevente está concluindo cópias. O patrão informa que pretende conferir os documentos em conjunto. A resposta: “Eu preferiria não”. Na sequência o narrador-patrão procura Bartleby pedindo-lhe que fosse ao correio (“uma caminhada de três minutos”). A resposta: “Eu preferiria não”. O patrão insiste, o funcionário retruca com “Eu prefiro não”. Depois o narrador pede que Bartleby vá à outra sala chamar Nippers. A resposta é “Eu prefiro não”. Com a insistência do patrão, o presente do indicativo (prefiro) substitui o futuro do pretérito (preferiria).

4º) “Os dias se passavam” até que, “num domingo de manhã”, o patrão resolve ir à igreja ouvir um renomado pregador. Como chega muito cedo, resolve passar no escritório e é surpreendido por Bartleby. Constata que o escrevente estava vivendo ali, ainda que “sem prato, espelho ou cama.” Hilário: Bartleby diz que sentia muito, mas estava atarefado e preferia que o advogado não entrasse. Atordoado, ele se retira e perde a missa. O narrador-patrão-advogado lamenta a condição do funcionário: “Que miserável solidão se revela aqui! Sua pobreza é imensa: mas esse isolamento, esse desamparo… que horror!” Ainda ele: “Aos domingos, Wall Street é tão deserta quanto Petra; e todas as noites de todos os dias é um só vazio.”

5) Segunda-feira de manhã, o patrão estava decido a conversar com Bartleby. Caso este preferisse não responder, seria demitido, não sem receber um pouco a mais do que fazia jus. O advogado chama o escrevente uma vez, mas fica sem resposta. Daí esclarece que não faria nenhum pedido, queria apenas conversar. Bartleby aparece. O narrador-patrão pergunta onde o escrevente havia nascido. Resposta padrão: “Eu preferiria não”. Então ele pede que o escrevente fale de si próprio. Resposta padrão: “Eu preferiria não”. Insiste: “Qual a sua resposta, Bartleby?” O escrevente retruca: “No momento prefiro não dar resposta”. A insistência faz o “Eu preferiria não” (I would prefer not to) se tornar novamente “Eu prefiro não” (I prefer not). Na sequência ocorre uma recusa-chave, que não é percebida pelos filósofos (Deleuze e Agamben) nem pelos comentaristas em geral. O advogado se dirige “amigavelmente” ao funcionário e diz: “Bartleby, esqueça tudo aquilo sobre revelar-me sua história, mas deixe-me pedir-lhe, como amigo, que respeite integralmente as regras deste escritório. Prometa-me que amanhã e depois de amanhã você será meu auxiliar no exame dos documentos; prometa-me, em suma, que nos próximos dois dias você será minimamente razoável — prometa-me, Bartleby”. A resposta: “No momento preferiria não ser minimamente razoável”. O escrevente atordoa o patrão e os leitores, mas uma releitura atenta mostra que estava em disputa a revisão (exame) dos documentos. Era o que um exigia e o outro recusava.

6º) Ainda segunda-feira de manhã. Estamos no ponto-chave do conto. Aquele “no momento” (at present) dito por Bartleby é revelador. Por que naquele momento ele preferiria não ser minimamente razoável? Em outra oportunidade ele seria razoável? Não ser razoável teria a ver com a exigência de revisar documentos? Nippers se aproxima irritado (sofria de má digestão pela manhã). Turkey se aproxima calmo (ficava vermelho somente à tarde) e se dirige ao advogado: “Com sua permissão, senhor, ontem pensava em Bartleby, e pensei que, se ele talvez preferisse beber um quarto de cerveja da boa todo dia, que isso o ajudaria a se sentir melhor e, tenho certeza, o tornaria apto a auxiliá-lo com o exame da documentação.” Era a última chance: a última saída antes do pedágio. É significativo que o convite tenha partido do funcionário mais experiente, que discretamente se oferece para ajudar e evitar o pior. O que teria acontecido se Bartleby passasse a “beber um quarto de cerveja da boa todo dia”? Ele se enturmaria com os outros funcionários? Criaria vínculos? Agiria coletivamente? É desnecessário especular o que aconteceria se Bartleby tivesse aceitado o convite de Turkey, porque seria outra história, provavelmente desinteressante. O essencial é que Turkey associa a cerveja à revisão (exame) de documentos. Ao reproduzir a fala de Turkey, o narrador revela que a questão-chave era Bartleby se recusar a revisar documentos. Como escrevente recebia por produção. Quatro centavos por página (de cem palavras). É absolutamente razoável se recusar a conferir cópias, especialmente de terceiros. O narrador-patrão não comenta o acordo feito com o escrevente ao contratá-lo. É estranho um advogado não citar contratos, caputs, artigos, alíneas… Bartleby fecha a questão e as portas: “Eu preferiria que me deixassem sozinho aqui”.

7º) Terça-feira. Ocorre a virada decisiva. Bartleby está de pé, de frente para uma janela que dá para uma parede. O advogado indaga por que ele não está copiando. Bartleby responde que havia decidido parar de escrever. O advogado pergunta: “qual é a razão?” Bartleby retruca: “Você não é capaz de ver a razão?” Se o patrão-narrador não vê ou não quer ver a razão é difícil de cravar, mas ele deixa pistas. Deleuze: “Pode-se supor que a contratação de Bartleby foi uma espécie de pacto, como se o advogado, depois de sua promoção, tivesse decidido converter esse personagem, sem referências objetivas, num homem de confiança que lhe deveria tudo. Quer fazer dele o seu homem. O pacto consiste no seguinte: Bartleby copiará, próximo de seu chefe, a quem ouvirá, mas não será visto, tal como um pássaro noturno que não suporta ser olhado. Então, não há dúvida, no momento em que o advogado pretende (sem querer fazê-lo de propósito) tirar Bartleby de seu biombo para cotejar as cópias com os outros, quebra o pacto. Por isso Bartleby, ao mesmo tempo que ‘prefere não’ cotejar, já não pode continuar copiando.” Mas Deleuze não segue a pista, prefere analisar a “fórmula” (I would prefer not to), e escorrega; preferir não cotejar e deixar de copiar não acontecem ao mesmo tempo; é a quebra do “pacto”, e não a “fórmula”, que faz Bartleby parar de copiar. O conto não traz informações sobre o contrato de trabalho firmado entre o advogado e o escrevente, mas é plausível supor que o acordo se limitasse a copiar, não incluindo ir ao correio, chamar os outros escreventes, falar da própria vida e, sobretudo, revisar documentos. É somente após a recusa de Bartleby que o narrador-patrão menciona que conferir cópias fazia parte do trabalho do escrevente. Teria esclarecido esse ponto quando da contratação? Se houve falha de comunicação ou se o advogado deliberadamente ludibriava os funcionários é difícil de saber. A culpa que ele expressa aponta para a segunda opção, mas é impossível cravar. O fato é que o advogado pagava por página copiada. O trabalho de conferência não seria pago para Bartleby. Por se fixar na análise da “fórmula” (I would prefer not to), Deleuze deixa escapar o “pacto” e as formas de pagamento. Agamben vai mais longe. Vê em Bartleby uma “implacável reivindicação do nada”, mas não comenta o trabalho do copista e passa batido pela forma de remuneração: Há mais coisas num escritório do que pode imaginar nossa vã filosofia.

8º) “Alguns dias se passaram.” O patrão reflete e informa que o escrevente deveria deixar o escritório em seis dias. O primeiro ajudaria o segundo assim que este tomasse a iniciativa. O prazo termina, mas Bartleby permanece atrás do biombo. O narrador-advogado vai até o escrevente e diz: “É chegada a hora; você precisa deixar este lugar; sinto muito; tome aqui algum dinheiro; mas você precisa partir.” Bartleby responde: “Eu preferiria não.” Patrão: “Você deve.” Deixa trinta e dois dólares para o escrevente e sai, mas antes esclarece que lhe devia apenas doze dólares, e que a diferença podia ficar para o funcionário.

9º) No dia seguinte pela manhã, o advogado chega ao escritório e percebe que o escrevente continuava por lá. Involuntariamente bate na porta e Bartleby responde: “Ainda não; estou ocupado.” Quando entra no escritório o narrador-patrão constata que o funcionário além de continuar por lá, não havia pegado o dinheiro. Ele procura Bartleby e lhe dirige a palavra com energia: “Você vai ou não vai embora?” Resposta padrão: “Eu preferiria não ir.” O escrevente já não copiava, era como uma peça do mobiliário, tinha longos devaneios diante da janela que dava para uma parede.

10º) “Passaram-se alguns dias”. O narrador-patrão lê tratados teológicos. Chega a pensar que sua missão no mundo era manter o escritório para que o escrevente pudesse permanecer pelo tempo que fosse necessário. Mas a presença de Bartleby começa a gerar fofocas, prejudicando os negócios. Ocorre ao advogado que o escrevente pudesse ser longevo, e pior, que poderia reclamar a posse do escritório. O narrador-patrão “sugere” que o escrevente se retire definitivamente, mas depois de três dias recebe a resposta, Bartleby preferia não se retirar. A solução é drástica. O patrão muda o endereço do escritório e deixa o escrevente para trás.

11º) O advogado-narrador mantém a porta do novo escritório fechada por dois dias, com medo de que o escrevente pudesse aparecer. Mas só depois de aproximadamente duas semanas que chegam notícias de Bartleby. Várias pessoas procuram o narrador, inclusive o locatário do antigo escritório. Pedem ajuda para retirar o escrevente do prédio: expulso do escritório, passava os dias sentado no corrimão e as noites dormindo na entrada do imóvel. O narrador pensa em não ajudar, mas teme ver seu nome exposto nos jornais. Resolve procurar Bartleby, desde que pudesse conversar com ele de forma reservada. O advogado informa ao escrevente que, se este não fizesse alguma coisa, alguma coisa seria feita contra ele. Recebe a resposta padrão: “Eu preferiria não”. Pergunta se o ex-funcionário gostaria de exercer algum outro ofício: vendedor, atendente, viajar pelo país fazendo cobranças? Resposta: “Eu preferiria não”. Tentativa absurda: “E ir para a Europa como acompanhante e entreter algum jovem cavalheiro com suas palavras, será que isso não serve?” Bartleby entretendo alguém com sua conversa… Resposta: “De maneira nenhuma. Não me agrada. Não há nada certo e definido nisso. Gosto de ficar parado. Mas não sou exigente.” Última tentativa, indagado se aceitaria dividir o mesmo teto que o advogado (lar e não escritório), pelo menos até acharem uma solução. Bartleby responde: “Não, no momento eu preferiria não fazer qualquer mudança.”

12º) “Alguns dias” se passam. O narrador recebe uma mensagem informando que o locatário havia denunciado Bartleby, que estava preso. O ex-patrão procura seu ex-funcionário na cadeia. Ao chamá-lo, ouve: “Não quero lhe dizer nada.” Antes de deixar a prisão, o advogado aceita pagar propina. Dá dinheiro ao cozinheiro (“cara-da-boia”) para que este prepare comida diferenciada para o preso. Quando o jantar é oferecido a Bartleby, a resposta é dura e direta, prescinde da condicional: “Prefiro não jantar hoje” (I prefer not dine today). Alguns dias depois o narrador-patrão volta a visitar Bartleby e o encontra morto ao pé do muro. Tinha os olhos abertos, mas sem brilho.

Notas

[1] DELEUZE, G. Bartleby, ou a fórmula. In: DELEUZE, G. Crítica e clínica. 2 ed. São Paulo: Editora 34, 2013. p. 91-117.
[2] AGAMBEN, G. Bartleby, escrita da potência. Lisboa: Editora Assírio & Alvim, 2007.
[3] ŽIŽEK, S. O ano em que sonhamos perigosamente. Boitempo: São Paulo, 2011.
[4] ESTRADA, A. C. T. Bartleby o la politica del caos. Acesso em: 23 abr. 2019.
[5] VILA-MATAS, E. Bartleby e companhia. Tradução: Maria Carolina de Araújo e Josely Vianna Baptista. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
[6] MELVILLE, H. Bartleby, o escrevente. Tradução: Bruno Gambarotto. São Paulo: Grua livros, 2014. A maioria das citações do conto é desta edição, quando forem de outras edições estará indicado.
[7] CAMUS, A. Caligula. Acesso em: 18 abr. 2019.
[8] BENTO, A. I would prefer no to – Bartleby, a fórmula e a palavra de ordem. Acesso em: 18 abr. 2019.
[9] Esta é uma das poucas descrições de Bartleby, e as traduções variam. Exemplo. Bruno Gambarotto (Grua Livros): “Ainda posso ver-lhe as feições – sua fragilidade asseada, sua miséria apresentável, sua ruina insondável! Era Bartleby.” No original está registrado: “I can see that figure now – pallidly neat, pitiably respectable, incurably forlorn! It was Bartleby.” A tradução utilizada está em: MELVILLE, H. Bartleby, o escrivão: uma história de Wall Street e outras histórias. Tradução: Cássia Zanon. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.

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