1908, Leonid pisava em um Marte diferente do que imaginávamos. Encantava-o a ciência avançada, a paisagem, mas algo o admirava mais: “As pessoas e as relações entre elas — eis o mais importante para mim; e em todo aquele ambiente fabuloso, justamente elas eram as mais fantásticas, as mais misteriosas”. Assim escrevia o carrasco de Lenin no xadrez. O autor de Red Star invejava o privilégio de Leonid, Bogdanov adoraria ter visto o socialismo em seu planeta. Passa Palavra

18 COMENTÁRIOS

  1. Bogdanov ou Zamiátin?
    Feito pêndulo, na maiakovskiana loucanatomia, o coração deste eclético leitor balança – mas não cai, ainda…

  2. Carrasco de Lenin?

    No xadrez?

    Alguém se importa de ajudar a entender? Ou se destina somente a já entendidos?

  3. É que “carrasco” e “xadrez”, no contexto da URSS, me levaram a outras coisas.

    Obrigado, prima.

  4. Já agora, sabem quem está assistindo ao jogo, e onde é que Bogdanov e Lenin estão a jogar?

  5. Dizem que foi em Capri, na Itália, numa visita ao Gorki. Curioso.

    E o Lenin, nesse flagrante fotográfico, estaria bocejando, rindo, gritando,…?

    (quem está assistindo é o anfitrião, o Gorki)

  6. Lenin não gritava. Estava a bocejar. E sim, foi na mansão de Maxim Gorky em Capri, paga com os pingues direitos autorais. Gorky deu muito desse dinheiro ao partido. Em 1917, antes do golpe de Estado de Outubro, Gorky pertencia ao Mezhraiontsy, ou estava próximo. Depois, como outros, foi absorvido pela burocracia, e enquanto Bogdanov era marginalizado até se suicidar, Gorky deixou-se corromper. Victor Serge descreveu-o nesses anos da degradação, tal como Romain Rolland e demais celebridades. Fala-se daqueles que foram mortos com um tiro na nuca ou remetidos para campos de concentração, mas a arma principal não é essa, é a do cerco e da corrupção, não a banal, por dinheiro, mas a corrupção moral. Toda a história contemporânea, não só da Rússia, mas de todos nós, até hoje, está contida na fotografia daqueles três homens numa tarde plácida, depois de almoço, numa varanda em Capri.

  7. Tive a mesma dúvida do Ji Boia. Não havia entendido. Carrasco no xadrez no contexto da Rússia realmente parece sinônimo de agente penitenciário, ou de torturador. Mais difícil é imaginar que se tratava de alguém que jogava partidas de xadrez com Lenin e lhe impunha derrotas.

  8. Não existiu nenhuma revolução russa. Houve sem dúvida uma revolução, mas não foi russa. Ela começou em 1915 nas trincheiras francesas e daí se expandiu velozmente aos outros países beligerantes, de um e outro lado das frentes de combate. A revolução que derrubou o império dos czares derrubaria pouco depois os impérios alemão e austro-húngaro e em seguida o império otomano. Marcou igualmente com traços indeléveis outros países beligerantes, sobretudo a França, a Itália, a Bulgária e o Japão, mas também Portugal e o Reino Unido. Esta revolução, que varreu de uma ponta a outra a Europa e cujos ecos se fizeram sentir igualmente nos Estados Unidos e no Canadá, foi uma revolução proletária internacional e, precisamente porque não se completou, porque ficou em suspenso, teve um perverso epílogo nos fascismos e na segunda guerra mundial.

    Aquela onda revolucionária alcançou a Rússia em Janeiro de 1916, quando mais de 10.000 operários entraram em greve numa base naval do Mar Negro, e o movimento depressa atravessou o país, paralisando 45.000 trabalhadores do porto de Petrogrado. Calcula-se que em Outubro de 1916 cerca de 200.000 operários estivessem a participar em 177 greves de carácter político. A divisão da revolução russa numa fase menchevista e noutra bolchevista é uma balela de catecismo. Hagiografia é uma coisa, história é outra. Houve um processo revolucionário único, cujos últimos alentos se extinguiram em Kronstadt em Março de 1921.

    A grande lição dos bolchevistas — para quem estiver interessado em aprender estas lições — foi mostrar como se pode domesticar uma revolução, enquadrá-la e, afinal, extingui-la. O golpe de Estado bolchevista de Outubro de 1917 foi um episódio da domesticação.

  9. Caro João Bernardo…

    Você escrevendo essas palavras me lembrou de duas reflexões permeiam minha cabeça.

    Uma está nesta carta do Victor Serge “Diz-se muitas vezes que ‘o germe de todo stalinismo foi o bolchevismo em seu início’. Não faço objeções. Mas o bolchevismo continha outros germes, uma grande quantidade de outros germes, e quem vivenciou o entusiasmo dos primeiros anos da primeira revolução socialista bem-sucedida não pode esquecê-la. Julgar o homem vivo pelos germes mortos que a autópsia revela em seu corpo – e que pode ter carregado dentro dele desde o nascimento – é sensato?” (cito do livro Outubro do China Miéville)

    Porém, muitas vezes a resposta à essa carta encontro em sua análise publicada no Passa Palavra “A Revolução Russa como resolução negativa da nova forma de ambiguidade do movimento operário” (https://passapalavra.info/2018/03/118524/). O senhor mostra como a solução para as contradições que se seguiram à tomado do poder em 1917 foi via o tacão de ferro que pouco tempo depois se desdobou-se no stalinismo.

    A carta e o seu texto são duas reflexões que levo faz algum tempo…

    Abraços fraternos

  10. “Houve um processo revolucionário único, cujos últimos alentos se extinguiram em Kronstadt em Março de 1921″… E a Revolução Espanhola, João Bernardo?

  11. Pedro Irio, Papa Nicolau e Papa Francisco,
    duas Santidades ao mesmo tempo, e eu sem saber que a Igreja Católica tinha regressado à época de Avignon.

    Um dos aspectos mais sedutores de Victor Serge é a honestidade com que ele reflectiu sobre a sua actividade na União Soviética. Convém saber que os governos capitalistas daquela época não entendiam bem o que era o bolchevismo e uns confundiam-no com o anarquismo, enquanto outros pensavam que se trataria de uma versão russa do maximalismo italiano. Baseados nesta ignorância, governos como o dos Estados Unidos e o da França deportaram para a Rússia soviética, sob escolta militar, alguns dos anarquistas e propagandistas contra a guerra que povoavam as suas prisões. Foi assim que Lenin, enquanto prendia boa parte dos anarquistas seus compatriotas, se viu a braços com outros anarquistas que, evidentemente, seria escandaloso prender, Emma Goldman e Alexander Berkman entre eles. Através de um percurso mais acidentado, também chegou à Rússia o anarquista Victor Serge, apátrida, nascido na Bélgica de pais russos, exilados políticos. Vendo as potencialidades do processo revolucionário, Serge decidiu aderir àqueles que apareciam na sua vanguarda e, além disso, beneficiavam da inestimável vantagem de deterem o poder político. Durante esse período Serge viu-se obrigado a fazer concessões, e muitas, todas elas justificadas pela conveniência de se manter num Partido que mais adiante talvez regressasse à dinâmica revolucionária. Foi este dilema que Serge narrou honestamente depois de uma campanha, animada entre outros por André Gide, ter conseguido fazê-lo sair das prisões de Stalin. Para quem saiba francês, existe uma recolha, com mais de mil páginas e muitas notas, das obras em que Serge analisou a experiência soviética e narrou a sua participação (Jean Rière e Jil Silberstein (orgs.) Victor Serge. Mémoires d’un Révolutionnaire et autres Écrits Politiques, Paris: Robert Laffont, 2001) Esta recolha tem ainda a vantagem de nos dar a conhecer as divergências de Serge relativamente a Trotsky, na época em que este tentava criar uma quarta Internacional como um ilusionista tira um coelho de um chapéu. Mas quem souber inglês e quiser conhecer até que ponto chegaram as cedências de Serge no seu período soviético terá interesse em ler uma recolha de artigos onde Serge defendeu a linha suicida do Partido Comunista Alemão perante a ascensão do nacional-socialismo, que era a orientação definida pela direcção do Komintern e tão poderosamente contribuiu para colocar Hitler na Chancelaria: Ian Birchall (org.) Victor Serge. Witness to the German Revolution. Writings from Germany, 1923, Chicago: Haymarket, 2011.

    É que os personagens da história actuam a priori, de olhos fechados, ou só meio abertos, enquanto o historiador escreve numa cómoda posição a posteriori. Hoje o futuro aparece como um número ilimitado de possibilidades, que amanhã surgirão como uma linha única e determinada. Um bom historiador americano, Robert O. Paxton, no seu livro sobre a França durante a ocupação nacional-socialista, usou conjuntamente as duas perspectivas para explicar os acontecimentos, mostrando que os participantes dessa época agiam sem conhecer o futuro, mas que é necessário nós conhecermo-lo para entendermos essas actuações. Uma grande lição de metodologia histórica. É que o tempo — pelo menos no nível supra-quântico — não é simétrico e o futuro nunca ocorre antes do passado. Esta dicotomia entre a nossa actuação e as suas consequências faz com que a história não possa ser uma lição de moral. Quem pretende recorrer à história para pregar lições de moral não faz história, mas entretém-se a canonizar santos e condenar demónios.

    E se eu observo isto a propósito de Victor Serge na revolução russa posso repeti-lo, num âmbito mais modesto, a respeito do PT. Quando cheguei ao Brasil, em 1984, o PT e a CUT, acabados de fundar, pareciam repletos de potencialidades. Quem, nessa época, poderia garantir que o PT e a CUT seriam o que foram? Mas hoje nós afirmamos taxativamente que o PT e a CUT foram o que já eram. E assim a história perde o relevo. Leibniz defendia que o possível, pelo facto de ser possível, é real. As potencialidades também eram — e são — realidades.

    Quanto à guerra civil em Espanha, ela não se insere na onda revolucionária que percorreu a Europa de 1915 até 1921. Aliás, a Espanha não participou na primeira guerra mundial. A guerra civil deveu-se à resistência oposta pelo operariado e pelos camponeses ao golpe militar iniciado pelos generais com o apoio, inicialmente relutante, do partido fascista, a Falange. Rapidamente aquela resistência deu lugar, no âmbito da República, a uma revolução e ao mesmo tempo a uma contra-revolução. Apesar, uma vez mais, das hagiografias que são feitas por todos os lados, tratou-se de um processo multímodo e muito ambíguo. Quem quiser conhecer os factos e a minha interpretação poderá ler o que escrevi nas págs. 780-828 da 3ª versão do meu livro Labirintos do Fascismo. Uma alternativa é esperar pela 4ª versão, que será publicada em papel, este ano, por uma editora brasileira.

  12. Que venha, pois, a 4ª versão (revista e ampliada?) de Labirintos do Fascismo.

  13. João Bernardo!

    Parabéns pela publicação do livro Labirintos do Fascismo!

    Confesso que ultimamente torço para uma exposição sua em um ensaio sobre Teoria da História. Aqui agora no site do passa palavra e nos dois prefácios dos livros “Labirintos do Fascismo” e “Era um Mundo – libertar-se do mundo morto” você dá uma aula sobre teoria e metologia de história.

  14. Caro Fernando Paz!
    Muito obrigado pela indicação do texto do João Bernardo.
    Abraços fraternos

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