Por Passa Palavra

Não é novidade que o governo federal, junto a governadores aliados, tem feito uma irresponsável propaganda de remédios sem eficácia comprovada para o tratamento da covid-19, mas agora, ao que tudo indica, essa prática foi estendida aos aplicativos hospedados no domínio oficial do Ministério da Saúde.

É o caso do TrateCov, desenvolvido pelo Ministério da Saúde para auxiliar no diagnóstico da covid-19. O aplicativo recomenda aos seus usuários — neste caso específico “médicos e enfermeiros que atuam na Secretaria de Saúde do Município de Manaus, na Secretaria Estadual de Saúde do Amazonas e Hospitais privados do Município de Manaus” — o “tratamento precoce”, que já foi amplamente refutado pela comunidade médica diante da ausência de evidências científicas para medidas preventivas contra a covid-19, por exemplo aqui e aqui.

A gravidade da situação é a seguinte: mesmo que o site informe que “esta versão do TrateCov é um ambiente de simulação que ficará disponível até que sejam realizados e validados os cadastros para registro dos profissionais de saúde na referida plataforma”, esse formulário hospedado na plataforma oficial do Ministério da Saúde indica o “tratamento precoce” e o uso de medicamentos sem eficácia comprovada para o tratamento da doença, caso os sintomas coletados apontem para um diagnóstico de covid-19, sendo que a única resposta de conduta recomendada no formulário é a indicação de “Iniciar Tratamento Precoce”. Essa informação, obtida por um usuário do Twitter, levanta a preocupação deste artigo. A recusa ao sugerido “tratamento precoce” nesse formulário, por sua vez, direciona o usuário a justificar o motivo de não se prescrever o “tratamento precoce”.

Está claro que o “formulário clínico” é totalmente enviesado, e que o que supostamente deveria ser uma ferramenta para auxiliar profissionais de saúde a coletar e analisar sintomas relativos à covid-19 apresenta-se como uma indevida indicação/orientação para que os profissionais adotem a temerária conduta de iniciar “tratamento precoce” contra a doença que já matou mais de 200.000 brasileiros, mesmo diante da total ausência de comprovação científica de eficácia de tratamento precoce neste caso. A situação é tão absurda que o aplicativo indica que sejam receitados diversos medicamentos, que, uma vez mais, não possuem eficácia comprovada no tratamento da covid-19, tais como cloroquina e ivermectina.

No momento em que este artigo estava sendo escrito, o site estava fora do ar — segundo o Ministério da Saúde, ele foi ao ar por conta de um “ataque hacker” —, mas você pode conferir o formulário em questão acessando a cópia disponível aqui. A situação aqui narrada pode ser checada com uma simples simulação de preenchimento do formulário, pois, quando se assinala qualquer um dos sintomas disponíveis no formulário, este, mesmo antes de ser finalizado e submetido, já sugere a conduta de “Iniciar Tratamento Precoce”.

Isso acontece porque o código-fonte foi escrito para apresentar esse comportamento. Trocando em miúdos, o código-fonte corresponde à “receita” para “fazer” a página do site, que é visualizada após se clicar no link. Ou seja, o que se escreve no código gera o formulário tal qual o visualizamos, porque o código é o responsável por processar os dados inseridos no formulário. Acontece que no código de programação do aplicativo a menção à cloroquina aparece 86 vezes, e à ivermectina, 113 vezes. O pesquisador Rodrigo Menegat registrou uma autopsia do aplicativo TrateCov e o pesquisador Ronaldo Lemos fez uma thread no Twitter procurando detalhar o problema. Ainda nesta mesma thread, ele explica que “o TrateCov é hospedado nos Estados Unidos e não tem política de proteção de dados adequada. Viola frontalmente a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) que determinada que dados de saúde são dados sensíveis e tem de ser tratados com proteção elevada”.

O código-fonte do aplicativo só está disponível para acesso público porque ele foi construído com uma tecnologia que executa o código-fonte inteiramente no seu navegador, ou seja, toda a análise que está sendo feita aqui pode ser realizada por qualquer pessoa com conhecimento técnico em desenvolvimento de sites web. Dizemos isso para deixar claro que não tivemos nenhum acesso privilegiado a qualquer código-fonte do referido site, tampouco esse acesso se deu por qualquer tipo de violação de privacidade. O código-fonte simplesmente é baixado e executado na máquina de qualquer pessoa que acessa a página.

Existe uma função no código-fonte do TrateCov, chamada “dbtf” que é responsável por criar um objeto chamado “o”. Como explicação para quem não é da área técnica, podemos dizer que função e objetos são mecanismos que normalmente são usados para evitar repetição de informação no código-fonte. Voltando ao código-fonte do TrateCov, o objeto “o” criado pela função “dbtf” coloca de forma estática expressões como “cloroquina”, “hidroxicloroquina” e “ivermectina”. Isso quer dizer que esses dados são manipulados pelo site independentemente dos dados preenchidos no formulário. Dito de modo mais simples, independente do que for preenchido no formulário, desde que selecionada alguma das opções de sintomas listados, o código-fonte foi projetado para apresentar como resposta a indicação de “CONDUTA: Iniciar Tratamento Precoce”.

Um outro detalhe que se revela da análise desse código-fonte é que a única forma de negativa da condução do “tratamento precoce” é a seleção do botão “Não” na pergunta “Paciente receberá tratamento precoce?”. Porém, da forma como o código foi escrito, os botões de opção de “Sim” ou “Não” somente aparecem após já apresentada a única sugestão, a saber, “CONDUTA: Iniciar Tratamento Precoce”. Por sua vez, caso seja selecionada a opção “Sim” à pergunta “Paciente receberá tratamento precoce?”, a página já responde com a prescrição de medicamentos sem eficácia comprovada para o tratamento da covid-19, tais como cloroquina e ivermectina. Tanto assim que, tecnicamente falando, na função “doBranching” é possível ver que, apenas quando a palavra “trat_contraindic_motivo” é encontrada, no processamento da página, não se apresenta a prescrição de medicamentos.

Em resumo, apenas depois que o usuário do sistema recebe a informação sobre a “CONDUTA: Iniciar Tratamento Precoce” é que o site oferece a opção de informar negativa ao “tratamento precoce” e, mais ainda, é requerido do usuário justificar o motivo da não aplicação do “tratamento precoce”. Ainda, na mesma semana de teste do novo aplicativo do Ministério da Saúde, o ministro Pazuello fez do kit covid a falsa esperança da população de Manaus, que sofre uma calamidade na saúde pública da qual o mesmo ministério — que, como resposta, propôs a utilização de um aplicativo negacionista — é corresponsável, ao lado do governo do estado do Amazonas. Até a última atualização deste artigo, o Conselho Federal de Medicina havia pedido ao Ministério da Saúde que retirasse o aplicativo do ar. Além das inúmeras razões atestadas pelos usuários que justifica a sua retirada do ar estão os seguintes agravantes:

– Não preserva adequadamente o sigilo das informações;
– Permite seu preenchimento por profissionais não médicos;
– Credita confiança científica a drogas que não contam com esse reconhecimento internacional para o tratamento de covid-19;
– Induz à automedicação e à interferência na autonomia dos médicos;
– E não deixa clara a finalidade do uso dos dados preenchidos pelos médicos assistentes.

As imagens que ilustram este artigo são de Mika Baumeister.

1 COMENTÁRIO

  1. Na verdade o tal tratamento precoce não é que não carece de confiança ds comunidade científica internacional, mas sim já foi comprovada cientificamente sua ineficácia. Não se trata mais sequer de não ter eficácia comprovada, mas sim de ter sua ineficácia comprovada.

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