Por Passa Palavra
A atual direção da Câmara e do Senado inaugura uma nova fase na história do governo Bolsonaro, de agora em diante marcada pela preponderância do chamado “centrão”, que apesar do nome reúne os mais diversos partidos e políticos conservadores: herdeiros da ARENA (Aliança Renovadora Nacional); representantes do sindicalismo de negócios; representantes de Igrejas; gente das bancadas ruralista e da bala; quem está ali para defender interesses e privilégios regionais e locais; quem está ali para ocupar cargos e ministérios, participar da gestão de empresas públicas e estatais, apropriar-se de seus recursos; gente que tenta subir na vida ou conservar sua posição.
São pessoas conservadoras e, portanto, de direita, mas cuja razão de ser é apoiar o governo, qualquer que seja a sua ideologia, enquanto esse apoio for vantajoso. É uma direita pragmática, que está ali para oferecer sustentação política, mas nunca de graça. São os chamados políticos e partidos “fisiológicos”. Nesse grupo existe gente importante (grandes lideranças regionais, que fazem de tudo para ter presença e influência em governos e prefeituras, câmaras municipais e assembleias, e em quaisquer órgãos e empresas relevantes de suas cidades e estados de origem, mobilizando uma corte de apadrinhados) e o chamado “baixo clero” (esses precisam encontrar um padrinho, alguém que os faça subir na escala social, do “baixo clero” para o “alto clero”, de uma classe para outra, etc.).
Bolsonaro fazia parte do “centrão”, mais especificamente do “baixo clero”: depois de suas ambições militares serem frustradas, passou a atuar no Legislativo defendendo interesses corporativos de militares e outros grupos, mais recentemente os caminhoneiros, atuando também para proteger criminosos dos tempos da ditadura e policiais envolvidos em atos de violência e execuções extrajudiciais e sendo hoje um aliado importante para as Igrejas e os ruralistas. Era útil também, como agora, para a indústria armamentista, e se especializou na defesa do “cidadão de bem” violador da lei contra as multas ambientais e de trânsito, etc. Defendia também, claro, pautas ultraconservadoras e buscava proteger a si mesmo e à verdadeira organização criminosa que é a sua família, não apenas corrupta como também fortemente ligada às milícias cariocas. E promovia, por fim, tratamentos médicos sem eficácia científica comprovada. Do “baixo clero” ele veio, do “alto clero” ele dependeu, e carregado nos braços de ambos agora ele está, desde que a crise da falta de oxigênio nos hospitais de Manaus revelou o que pode vir a ser um colapso total do sistema de saúde no país e desde que a sociedade civil, tanto à direita como à esquerda, começou a se mobilizar mais intensamente pelo impeachment.
O “centrão” apoiou Fernando Henrique Cardoso, Lula, Dilma, Temer, Maia e Alcolumbre e vai agora apoiar Bolsonaro, porque finalmente Bolsonaro, diante de pressões mais generalizadas pelo impeachment e isolado internacionalmente, resolveu ceder às pressões e “liberar geral”: ofereceu ministérios, cargos e bilhões de reais em emendas para influir nas eleições para o comando das duas casas do Congresso Nacional. O cálculo de Bolsonaro, neste momento, é o de que ele precisa se manter no poder até que surja a oportunidade de um golpe de Estado, e ele já deu sinais muito explícitos de quando pretende tentá-lo: nas eleições de 2022, que ele tenta deslegitimar desde já, propagando mentiras sobre a autenticidade dos resultados no sistema eletrônico de votação. Além disso, nessas eleições ele dirá que, durante seu primeiro governo, não foi capaz de fazer tudo o que queria porque foi impedido pelos tribunais, pelo Congresso e pela pandemia, que “pode ter sido fabricada”, e cujo enfrentamento, por governadores e prefeitos, foi desastroso para a economia e principalmente para os mais pobres; jogará a culpa também na mídia “de esquerda” e em instituições da sociedade civil (movimentos, ONGs, associações profissionais, a Ordem dos Advogados do Brasil, etc.) e governos estrangeiros, tudo parte de um grande complô esquerdista-globalista-ecologista contra o governo da pátria, de Deus e da família.
Enquanto o “centrão” estiver ganhando alguma coisa em sua relação com Bolsonaro, este terá apoio institucional e será blindado, contando ainda com o sempre prestativo Procurador-Geral da República, desejoso de uma cadeira no Supremo Tribunal Federal: nada de impeachment pelos vários crimes de responsabilidade, nada de processo criminal pelos vários crimes comuns, nada de cassação dos mandatos dos filhos, nenhum amigo ou familiar sendo perseguido “de sacanagem”. Mas ele precisará ceder, pois a relação com o “centrão” é, historicamente, a do “toma lá, dá cá”. A cada projeto de lei proposto pelo governo, o “centrão” exigirá algo em troca, caso contrário tais projetos provavelmente não serão aprovados, ainda mais se o “centrão” trabalhar habilmente com a oposição de centro-esquerda e de esquerda para obstruí-los. Entretanto, o “toma lá, dá cá” é uma via de mão dupla: a indicação de uma bolsonarista radical para a presidência da Comissão de Constituição e Justiça indica que agora há muito mais abertura para o avanço de uma agenda legislativa bolsonarista.
Mas a personalidade e a postura totalitárias do presidente não combinam muito bem com esse novo quadro: Bolsonaro quer tão somente submissão cega e apoio absoluto. Além do mais, como será a relação do “centrão” com o núcleo ideológico do governo, os olavistas, que pedem frequentemente o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal, pressionando os militares em favor de um golpe? E como será também a relação do “centrão” com os mais de 6 mil militares ocupando cargos no governo? O presidente pode ter de ceder cargos ou criar outros mais (recriando ministérios, por exemplo) para atender às pressões, intensificadas a cada nova crise política e pelo agravamento da crise econômica e sanitária; e o preço a ser pago pelo avanço da agenda legislativa de Bolsonaro tenderá a ser maior quanto mais impopulares forem seus projetos. Isso aumentará a pressão sobre os cofres públicos e sobre o orçamento, algo que tende a desagradar o grande capital, que defende o controle de gastos, na medida em que o Estado é realizador e garantidor de investimentos e precisa, para isso, de ter as contas equilibradas. Rodrigo Maia, por exemplo, tentou ser o porta-voz do “mercado” desde que assumiu a presidência da Câmara, sendo obrigado a sair da sua posição confortável de líder do “centrão”, e foi essa uma das razões para que caísse em desgraça com sua própria base, para quem a realização de reformas pró-mercado não atende necessariamente aos interesses imediatos.
Por outro lado, o horizonte para a classe trabalhadora, no campo e nas cidades, é desolador: desemprego e desalento; inflação; crise sanitária; vulnerabilidade em face do crime, organizado ou não; violência policial; ameaças constantes de pistoleiros nas áreas rurais e nas reservas indígenas; salário mínimo reajustado sem ganho real; programas sociais cortados; a eterna crise habitacional; falta de saneamento básico; a precarização progressiva das relações de trabalho e a difusão da “viração”; enfim, a barbárie. Tudo isso contribui para uma situação socialmente explosiva, que Bolsonaro tentará explorar para decretar medidas de exceção e perpetuar-se no poder. No momento certo, isto é, quando for possível alegar que as mobilizações de esquerda representam um risco para a estabilidade das instituições democráticas, o presidente mandará reprimi-las, contando com o apoio das polícias, da Agência Brasileira de Inteligência e dos militares, e tentará aumentar o contingente de apoiadores de que dispõe, recrutáveis para as protomilícias fascistas já existentes, buscando afirmar-se como o líder de um proletariado e de uma “classe média” empobrecidos, ou cuja ascensão social foi abortada, e revoltados com as elites, velhas ou novas, direcionando essa revolta contra inimigos reais e imaginários.
A estratégia de Bolsonaro é não apenas, no momento certo, associar-se à (e direcionar a) revolta. Ele também precisa consolidar a narrativa de que ele, como o proletariado, os aspirantes a gestores e os pequenos patrões, é mais uma vítima do establishment, de uma elite privilegiada, de um sistema que o impede de governar e que impede o “cidadão de bem”, que vê-se a si mesmo como respeitador da lei e da ordem, de ascender socialmente. E precisa estimular a sensação de que ele, como todas as pessoas que se sentem impotentes no momento, é uma vítima de circunstâncias que lhe fogem ao controle. Bolsonaro já conseguiu, por exemplo, fazer com que a maior parte dos brasileiros considere, contra todas as evidências, que ele não é o principal responsável pelas altas taxas de contágio e letalidade da covid-19, e conta ainda com o apoio da maior parte da opinião pública, que é contra a abertura de um processo de impeachment. Ele precisa, num cálculo político criminoso, deixar de governar, deixar de intervir no cenário de calamidade em curso, agravando deliberadamente esse mesmo cenário, para que os impotentes se identifiquem com ele, em sua impotência.
E aí voltamos à problemática da relação com o “centrão”: não há nada que represente melhor o establishment do que o “centrão”, nada que represente melhor a “velha política” que Bolsonaro diz combater e com a qual será forçado agora a negociar, ficando de mãos atadas, sendo chantageado a todo momento com a perda da governabilidade e a ameaça de um impeachment. Por outro lado, também não há nada que represente melhor uma elite privilegiada do que o Poder Judiciário — um exemplo são as tentativas recentes dos tribunais superiores de reservar milhares de doses da vacina contra o coronavírus para ministros e servidores —, que intervém frequentemente contra o Executivo, suspendendo a eficácia de atos e decretos do presidente e seus subordinados, e também costuma tomar decisões desastrosas para a imagem pública das cortes.
Também não há nada que represente melhor o establishment e o elitismo do que movimentos como o liderado por Luciano Huck, que recentemente engrossou o caldo dos pedidos de impeachment, financiados pelo grande capital e recrutando militantes à esquerda e à direita para renovar a classe dos gestores, articulando liberalismo econômico, consciência social e ecológica, um identitarismo moderado e o politicamente correto. Ao lado de movimentos desse tipo, vemos grandes empresas (por exemplo, aqui e aqui) buscando renovar sua imagem em face de pressões do identitarismo e de protestos nas ruas, no Brasil e no mundo, convergindo com grande parte da esquerda, que busca fazer das lutas contra a opressão machista e racial vias de acesso a esse mesmo establishment. Esta esquerda atrai para si a atenção dos órgãos de repressão, por articular militância com exibicionismo nas redes sociais, além do ressentimento daqueles que se sentem por ela proscritos, frequentemente censurados quando emitem opiniões críticas à política e aos discursos identitários. Elitismo e ressentimento: jogando uma elite contra a outra e estimulando o ressentimento mútuo, Bolsonaro neutraliza a luta de classes e, mais do que isso, obstrui qualquer possibilidade de ação coletiva, reduzindo a política à luta pela afirmação do indivíduo e seu ego. A convergência com a esquerda não poderia ser maior.
Perante todo esse elitismo — denunciado por Bolsonaro e pelos bolsonaristas ao mesmo tempo em que promovem um outro elitismo de sinal trocado, conduzindo ao topo da hierarquia do Estado e do setor privado uma extrema-direita que nunca teve a chance de chegar lá — aumenta o ressentimento daqueles, entre os trabalhadores, que também nunca tiveram essa chance e nunca foram atraídos pela esquerda ou foram por ela desiludidos. São os ingredientes da nação em cólera, um amálgama de identidades enraivecidas, preparando o terreno para uma escalada fascista.
As imagens que ilustram este artigo são de Gustavo Leighton.
Uma ótima análise da política atual no Brasil, a direita e a esquerda. Mas o que fazer?
Nicolau deveria perguntar ao xará Tchernicheviski…
Diante de tal cenário já é hora de dormimos em camas de prego
É como dizia Silvana Dunley, citando Caetano Veloso: “cria[r] fama de faquir”.