Por Z1010010
A tarefa de realizar uma transferência bancária, a tarefa de fazer uma compra, ou de todos os meses, se você ainda tiver um salário para tal, pagar um boleto com a satisfação de manter em dia as contas sem ter que enfrentar uma fila na lotérica ou precisar do computador para acessar o serviço de internet banking, tudo isso que envolve a circulação do dinheiro nas mais diversas transações econômicas está mudando pouco a pouco no Brasil. Agora basta ter um smartphone, preferencialmente conectado à internet, baixar o aplicativo do banco, fintech ou outra plataforma de pagamento, e fazer um PIX. Anunciado em 2019, o sistema de pagamento instantâneo criado pelo Banco Central (Bacen) e parcialmente implementado em novembro de 2020, o PIX foi apresentado como uma alternativa mais rápida e barata ao TED e DOC. Mas esse é apenas o argumento mais superficial, feito para atrair o interesse daqueles que abominam as taxas bancárias. Expandir o alcance da economia nos meios digitais, eliminar ou reduzir consideravelmente o uso do papel moeda, ampliar o número de atores no mercado financeiro, incluindo agora as fintechs (empresas de tecnologia em finanças), cooperativas, financeiras, e plataformas digitais, competir com os cartões de crédito e débito, e fomentar a chamada “inclusão financeira” especialmente dos trabalhadores informais e microempresários individuais, são os objetivos centrais de instituições como Banco Central, bancos privados, empresas de tecnologia digital e fintechs, que vem liderando o processo de digitalização dos pagamentos.
Mesmo que seja difícil captar a extensão dos problemas no momento dos acontecimentos, considerando que os pagamentos digitais ainda não estão totalmente consolidados, nem seu uso generalizado, é preciso chamar atenção para duas questões emergentes: a multiplicação dos intermediários nessa convergência entre atores do sistema financeiro e empresas de tecnologia digital, que sabidamente compartilham práticas similares de vigilância, e a financeirização de modos de vida, especialmente daqueles que são considerados os “desbancarizados”.
Imagine que você foi à feira ou à farmácia e fez o pagamento em dinheiro físico. No ato de retirar as notas ou moedas da carteira, pagar o vendedor e eventualmente receber o troco, temos uma relação direta pessoa-a-pessoa entre dois atores do mercado. Se você não preencheu nenhum cadastro, nem forneceu seu CPF para receber desconto ou pedir nota fiscal eletrônica, essa relação é praticamente anônima, já que o vendedor só viu seu rosto uma vez e provavelmente vai esquecê-lo em poucos minutos. Pessoas completamente estranhas entre si usam dinheiro para comprar e vender, e qualquer obrigação entre as partes termina no momento em que o pagamento se concretiza. Isso porque o dinheiro em espécie sacado dos caixas eletrônicos é uma unidade física do dinheiro estatal, que passou na forma de informação pela rede do sistema monetário dos bancos privados, e uma vez retirado na forma física da sua conta em um banco comercial ele cai fora do controle do sistema bancário depois do saque.
Algo completamente diferente acontece quando, por exemplo, um cartão de crédito ou o PIX é usado. Nesses casos todas as transações acontecem dentro da infraestrutura do sistema financeiro. Cada vez que passamos um cartão na máquina (ex. PagBank, Cielo), conhecidos como pontos de venda (POS, na sigla em inglês), os dados da transação passam pela rede da máquina, que simplesmente é uma rede de comunicações, pela operadora do cartão de crédito (ex. Visa, Mastercard), pelo banco de dados do banco comercial do comprador e do vendedor (ex. Banco do Brasil, Itaú), ou de uma fintech (ex. NuBank, Banco Original), e são registrados no Banco Central. Já o PIX é uma infraestrutura, ou o meio de pagamento, que vai ampliar o número de participantes na ciranda de dados que registra as trocas econômicas, pois vai facilitar o uso de alguns meios de pagamento já existentes, como as carteiras digitais (ex. PagSeguro, PayPal, PicPay, GooglePay, ApplePay, SamsungPay). Há aqui uma diferença fundamental não só com relação ao pagamento em dinheiro físico, mas também com aos cartões, pois com o PIX, os smartphones passam a ser o dispositivo central para realizar as transações, e não mais o cartão débito/crédito, a maquininha ou o dinheiro vivo, mudando também a direção da comunicação dos dados. Isso significa que em vez dos dados da transação serem passados para o distribuidor, como a Cielo, e para a empresa de pagamento como a Visa, as informações vão para o celular do comprador, passando pelo aplicativo sendo usado, e para o banco ou fintech.
É nesse sentido que o sistema do Banco Central vai fortalecer a entrada de empresas como a Google e Apple, e plataformas como Uber, no mercado dos pagamentos digitais, ou seja, vai prover a convergência entre mercados que já são altamente concentrados, o de tecnologia digital e o mercado financeiro. Entram também no jogo digital-financeiro as empresas de telecomunicações, varejistas, start-ups de tecnologias voltadas para aferição de biometria, fabricantes de hardware de dispositivos de ponto de venda (ex. a maquininha de cartão com QR Code), especialistas em análise de dados, agencias da marketing e publicidade, empresas de seguro, start-ups financiadas pelos fundos de capital de risco. Para todas essas empresas, não só os dados das transações financeiras ficam registrados, mas um sem fim de dados de reconhecimento facial e impressão digital, número do celular, CPF, e-mail, contatos, produtos comprados e estabelecimentos frequentados, hábitos de consumo em geral, e geolocalização, potencializando práticas de vigilância.
Independentemente do meio ou aplicativo sendo usado, é comum ouvir de representantes do Bacen, bancos, empresas de tecnologia e especialistas em sites de tecnologia digital, o argumento de que a redução do uso do dinheiro físico traz mais segurança e conveniência, evita problemas no recebimento do troco, e diminui o custo de impressão do papel moeda em tempos nos quais se fala em privatizar a Casa da Moeda. Na mesma linha, segue-se a justificativa de que a digitalização dos pagamentos fortalece a economia informal, cuja movimentação é difícil de ser controlada pelo Estado e pelo setor financeiro, e vai desburocratizar as transações, facilitando acesso aos bancos e consequentemente ao crédito com, por exemplo, a entrada das fintechs. Tudo isso por meio das chamadas “soluções de bancarização” facilitadas pelo PIX. A preocupação verbalizada por boa parte desses agentes é de que as transações feitas em dinheiro físico dispensam as instituições financeiras, o que, nessa perspectiva, limita a expansão das trocas ditas informais. Ainda nessa visão, pessoas que usam o dinheiro físico “preferem” se endividar com estabelecimentos ou pessoas conhecidas, a dever dinheiro para os bancos solicitando crédito. A inclusão financeira dos “desbancarizados” via aplicativos, plataformas digitais, empresas de tecnologia em finanças refere-se, portanto, à forma como as relações informais serão dissolvidas, substituídas e limitadas por relações institucionalmente mediadas e controladas por bancos, instituições financeiras e o próprio Estado. Para essa parte da população, precarizada, vulnerabilizada e fora do sistema, a bancarização digital está inevitavelmente ligada à lógica da dívida e às práticas de endividamento sucessivo, que sempre adiam os pagamentos para a fatura do mês seguinte. Práticas estas que afetam os modos de organização da vida familiar, a sociabilidade e a solidariedade local, e pode jogar uma grande parcela da população no endividamento, beneficiando apenas o setor financeiro e, agora, as empresas de tecnologia.
É comum encontrar nas críticas à ampliação dos meios de pagamento digital referência a uma passagem do livro “O Conto de Aia” de Margareth Atwood, em que a personagem relata como o dinheiro físico vai sendo substituído aos poucos por outros meios, primeiro trocado por um cartão e depois integrado a um sistema computadorizado sobre o qual poucos tinham controle, o que teria facilitado as decisões políticas autoritárias que resultaram numa sociedade antidemocrática, cindida, desigual e na qual práticas de extermínio passaram a ser altamente toleradas. Mas talvez o primeiro cuidado digital a ser tomado tenha relação também ao conto “Casa Tomada” do argentino Júlio Cortázar. Assim como no conto em que os ruídos nos cômodos de uma casa vão pouco a pouco mudando os hábitos e finalmente expulsando os moradores que ali viviam confortavelmente, é preciso prestar atenção na forma como o sistema de pagamentos digitais foi desenhado para redirecionar as pessoas de um sistema público representado pelo dinheiro físico para uma rede financeira digital que oferece benefícios limitados e de curto prazo, expondo-as a ameaças coletivas em grande escala, como o elevado grau de endividamento e o consequente extermínio da população que, uma vez “pixelada”, ou vai estar mergulhada em dívidas, ou vai ser expelida de práticas econômicas fundamentais para a manutenção da vida.
Isso sem contar a facilidade para cobrar a CPMF que o Guedes quer recriar. Primeiro eles criam a demanda pelo uso, substituinbdo o dinheiro físico pelo Pix, que passa a ser uma necessidade, como o artigo coloca. Depois para a cobrar uma taxa, um imposto em todas as transações. Daí que esse novo imposto vai acabar, novamente, pesando muito mais no bolso dos mais pobres.
José da Silva tocou no ponto que parece ser fundamental.
Deixam as pessoas usarem o PIX de graça, se acostumarem, se viciarem… depois cobram.
O Santander começou a cobrar taxas de 50 centavos a 10 reais por PIX de clientes PJ, sendo que o Banco Central cobra dos bancos 1 centavo por cada 10 PIX.