Por Isadora de Andrade Guerreiro

No último mês, em São Paulo, ganhou algum destaque na mídia a colocação, por parte da subprefeitura, de pedras debaixo de um viaduto no bairro do Tatuapé para evitar a instalação de pessoas em situação de rua – com a consequente ação direta do Padre Júlio Lancellotti, histórico defensor desta população, retirando as pedras à marreta. A arquitetura “antimendigo” já tem tradição de longa data na capital paulista e em outros centros urbanos, não configurando exatamente uma novidade. Eu gostaria, no entanto, de usar o fato como disparador para pensar as relações entre a ascensão de elementos fascistas na nossa sociedade e a produção do espaço urbano. Embora este tipo de intervenção pudesse acontecer em vários locais da cidade, por que aconteceu naquele local e qual a particularidade de acontecer esta divulgação neste momento? Parece que as forças sociais hoje tão polarizadas, de um lado, se sentiram à vontade para investir numa obra cruel como esta naquele lugar e, de outro, as forças contrárias acharam importante dar visibilidade ao ato.

Mas o que há por trás desta disputa de narrativas? A colocação das pedras no viaduto do Tatuapé precisa ser entendida para muito além da superficialidade imediata tão cara à espetacularização – à direita e à esquerda. Ela está inserida dentro de um contexto de produção urbana muito particular, que pode ajudar nas reflexões sobre a conjuntura política. O bairro do Tatuapé, junto aos seus vizinhos contíguos, Mooca e Belém, são bairros históricos de origem proletária, primeiros centros industriais da capital paulista. A partir do Centro da cidade, são a porta de entrada da Zona Leste, que continua, até hoje, sendo o mais populoso local de moradia da classe trabalhadora da capital, cujo crescimento excludente foi particularmente planejado pelo Estado. Com o passar do tempo e a realocação das indústrias, esses bairros se transformaram numa importante frente de expansão imobiliária, de características marcantes ligadas à ascensão social destas classes trabalhadoras, cada vez mais ligadas aos serviços, aos profissionais liberais e comerciantes atuantes em meio à abertura do acesso ao consumo das mesmas.

Localizado, portanto, entre o Centro da cidade e a Zona Leste proletária, o Tatuapé é uma zona tensa de conflito social. Tal tensão é marcada pela forma de produção imobiliária predominante do bairro: ocupando antigas grandes glebas industriais, moradias e centros comerciais foram edificados como condomínios verticais. A Estação Tatuapé do Metrô foi a primeira estação do Brasil, em 1997, a ter um grande shopping conectado diretamente a ela. Grandes condomínios residenciais são também a marca de toda a região, que cresceu também com as faixas de renda mais altas do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV). Atualmente, um grande projeto de transformação urbana, denominado Eixo Platina, capitaneado pela construtora e incorporadora Porte, projeta interligar vários empreendimentos imobiliários formando um “ecossistema” urbano que promete, por meio da iniciativa privada, tudo o que a esfera pública deveria ser – com ares de integração comunitária afeita ao mundo dos negócios. Segundo seu site:

“A região Leste de São Paulo concentra a maior parte da população da Capital. É lar de mais de 200 mil profissionais hoje atuantes em cargos de liderança em outros cantos da cidade. Na sua maioria, são jovens empreendedores e mentes criativas que buscam se desenvolver longe de suas casas. A Porte desenvolveu o Eixo Platina para ser a linha que conecta demandas como essas a soluções urbanas voltadas para os negócios, educação, saúde, serviços, cultura, lazer e muito mais.”

Percebe-se que não se trata, agora, apenas de aumentar a quantidade de lotes que viram condomínios no bairro, mas de gerir o conjunto do espaço urbano por meio da lógica condominial, integrando condomínios. O condomínio é uma forma de propriedade que congrega, sob um único título proprietário, um conjunto de outras propriedades, que passam a atuar coletivamente, sob a gestão de uma comissão eleita pelos membros. O condomínio permite que classes populares possam acessar serviços e bens (como a moradia) que não poderia de maneira individualizada. O que, a princípio, parece ser uma forma coletivista de vida – na medida certa para a reprodução da vida de classes populares que se baseia em redes de sociabilidade, solidariedade e proteção – ganha outros contornos sob a forma-mercadoria.

O condomínio como forma jurídica afeita à reprodução do capital significa concentração de propriedade na mão de gestores, cujo poder social – e político – cresce na medida mesma deste domínio sobre um conjunto de poderes-propriedades menores, que não teriam como acessar tal poder sozinhas. Esta é a lógica também das finanças, que congregam pequenos investidores, bens ou partes de uma empresa ou instituição (títulos e ações) dentro de conglomerados unificados que exercem maior poder quanto mais concentrar as pequenas propriedades.

Assim, é inerente à forma-condomínio uma solidarização entre proprietários que tende à lógica securitária, que mobiliza violência privada de diversos níveis com objetivo de exercer maior poder de intervenção social. Para tanto, ela precisa de gestores que concentrem esse capital, ganhando, com isso, também vida política. Uma vida política marcada, portanto, pela violência privada e tendência à segregação de grupos “mais iguais” que os outros, característica que garante melhor performance – seja na intervenção urbana, política ou econômica. Uma vida política que, pela forma como foi gerada, tende à autonomização dos gestores, que passam a comandar aqueles que originaram seu poder [1]. Esta tendência a autonomia do gestor é tanto maior quanto menor for o poder social individual dos condôminos – que, no entanto, permanecem acreditando que estão no poder. No caso das pedras do viaduto do Tatuapé, a atitude aparentemente autônoma do gestor da subprefeitura parece, portanto, coadunar com o modo de produção do espaço de todo o bairro.

Não pretendo generalizar o fenômeno, nem estigmatizar os bairros, mas olhar algumas predominâncias, que me parecem marcantes. É digno de nota, por exemplo, que Tatuapé e região (Mooca, Belém) sejam o centro da ascensão fascista paulistana que, para além das pedras no viaduto, é expressa também em termos eleitorais: foi ali que Bolsonaro teve suas mais expressivas votações na capital no primeiro e no segundo turno (em conjunto com, diga-se de passagem, os condomínios da expansão metropolitana em Barueri, como Alphaville e Tamboré), bem como foi o centro do eleitorado de Arthur do Val (“Mamãe Falei”, Patriotas) nas últimas eleições municipais. Assim, a colocação das pedras debaixo do viaduto não é um ato isolado de um funcionário municipal, mas tem sustentação social dentro da expansão da lógica condominial para todo o espaço urbano.

Seguindo a mesma hipótese, é importante atentar para o berço do bolsonarismo nacional: a Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, que é a radicalização urbana da forma-condomínio. Nascida da grilagem de terras devolutas por apenas quatro grandes proprietários (que depois se concentraram mais, em dois atualmente), a Barra da Tijuca também faz a ligação da antiga área rica do Rio de Janeiro (Zona Sul) com sua periferia trabalhadora na Zona Oeste. De maneira ainda mais “puro sangue” do que o Tatuapé (que tem origem proletária), a Barra nasce como expansão urbana dos novos ricos cariocas e, embora sua expansão para Recreio dos Bandeirantes (a ligação com Santa Cruz e Campo Grande, bairro carioca mais populoso) seja marcada por uma classe de pouco menor poder aquisitivo, toda a região foi urbanizada por uma sucessão de condomínios, tornando privatizado praticamente a totalidade do espaço urbano, nas mãos de pouquíssimos gestores, ligados historicamente ao violento processo de grilagem de terras. Dos mais ricos aos menos, os lotes internos aos condomínios vão diminuindo até a metragem popular mínima, mas valorizados pelo condomínio. O processo é finalizado na ponta por condomínios populares, nos moldes do PMCMV, que seguem o mesmo padrão de ocupação do espaço. De acordo com relatos locais, as milícias estão presentes ou se relacionam com a gestão de todos esses condomínios, fenômeno que se observa crescendo em todo o país.

A privatização do espaço por meio da forma-condomínio não é privilégio dos mais ricos, portanto. A novidade das últimas décadas tem sido a popularização desta forma de propriedade em várias esferas, cujos “ganhos” para as classes populares parecem mobilizar não apenas recursos, mas relações sociais e formas políticas. A ascensão das milícias justamente nesta área do Rio de Janeiro – pois Rio das Pedras se encontra em um dos seus limites administrativos – me parece estar relacionada a este processo. Há uma relação estreita entre a gestão centralizada sobre o trabalho terceirizado nos condomínios formais e a formação de milícias que passam a manter esse monopólio pela violência. Em particular por meio dos serviços de segurança privada, mas não só, pois também estão dentro dos condomínios a formação de monopólios sobre o acesso aos serviços urbanos, também privatizados numa área que, embora rica, tenha carência de infraestrutura pública. As mesmas milícias que estão nas portarias dos condomínios ricos passam a atuar, nas áreas populares (e também nas nem tão populares assim), “condominializando-as” de forma compulsória, numa relação de completa autonomização da gestão territorial e social em relação aos moradores, com uso de violência. Os territórios populares dominados por milícias são espécies de condomínios não legalizados, na medida em que são espaços privatizados, geridos e com fluxo de rendas extraído de maneira centralizada. Os que são produzidos diretamente pela milícia, já são, inclusive, legalizados sob a forma condominial, pois é a melhor forma de manter o controle da área.

Há, portanto, uma linha de continuidade interclasses aqui, através de mecanismos ligados à reprodução do capital por meio da propriedade (independente de sua legalidade). O conflito de classes no qual trabalhadores e capital estão inseridos na esfera produtiva parece ficar subsumido a determinadas relações proprietárias quando se trata da sua relação com a cidade, na qual aparece sua face de condôminos. Esta não é qualquer relação proprietária, mas uma bastante particular, que conta com grande centralidade e autonomia dos gestores terceirizados. No caso dos condôminos que perdem o controle sobre a gestão de seu espaço (ou bens), também perdem o controle sobre a produção do mesmo, como os proletários perdem o controle sobre os produtos de seu trabalho. Porém, no caso dos condôminos, eles perdem essa dimensão, acreditando que, pelo contrário, são livres-proprietários – na melhor imagem do empreendedorismo, no qual a face proprietária se choca com a face trabalhadora, tendo como consequência uma identidade truncada. O fascismo como expressão política desse processo de truncamento me parece algo em ascensão, como começam a mostrar os resultados eleitorais no Tatuapé e o candidato a presidente que foi eleito, vindo da Barra da Tijuca. As eleições, no entanto, só expressam o que já estava em formação e pode, entre outros elementos, ser observado também na forma de produção e apropriação do espaço urbano.

Nota

[1] Uma expressão precisa desse processo pode ser vista no filme Alphaville, de Jean-Luc Godard (1965).

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