Por Caminante

Assunção volta a ser palco de manifestações. Desde a semana passada, fazendo referência a Março de 1999 [1], e ao Incêndio no Congresso em 2017 (na tentativa de reforma constitucional e reeleição de Horácio Cartes) [2] — eventos que ficaram na memória dos trabalhadores paraguaios — a população esgotada com a crise sanitária, a má gestão da pandemia, a corrupção e a crise econômica vai às ruas, desabrochando uma crise política nacional.

No dia 3 de Março, trabalhadores da saúde membros do Sindicato de Enfermeiros do Paraguai se manifestaram em frente ao Instituto Nacional de Enfermedades Respiratórias y del Ambiente (Ineram) por falta de medicamentos e material sanitário para atendimento dos internados pelo coronavírus [3]. Em Março de 2020, o Governo de Mário Abdo Benítez (Partido Colorado) conseguiu aprovação de um crédito de US$ 1,6 bilhão para fazer frente ao coronavírus. As manifestações aconteceram um dia depois de o diretor do Ineram ter apresentado sua renúncia verbal ao cargo ante a falta de insumos, embora ele seja mantido no cargo. Neste mesmo dia Abdo Benítez fez um discurso e disse que, em caso de contágio, se trataria no instituto. Para os trabalhadores da saúde, as palavras de Abdo não condizem com a situação real dos centros de saúde do país, onde os casos por coronavírus seguem subindo enquanto faltam insumos e medicamentos hospitalares.

Já na sexta-feira, dia 5, manifestantes convocados por redes sociais protestaram na capital, reivindicando a saída do presidente por má gestão da pandemia. Somam-se a isso os casos de corrupção e a dificuldade econômica agravada durante a pandemia. A população questiona o crédito concedido para o combate ao coronavirus e a falta de medicamentos em hospitais públicos. Neste dia milhares de pessoas saíram às ruas de Assunção e outras cidades importantes, como Ciudad del Este e Encarnación, pedindo juicio político y elecciones [impeachment e eleições]. Com a população revoltada nas ruas, o presidente paraguaio se afundou numa crise política em meio à pandemia. No sábado, o presidente pediu que seus ministros deixem seus cargos como resposta ao movimento que toma as ruas da capital até a madrugada. Porém, o tamanho da crise parece ser ainda maior. Já estamos no quarto dia seguido (8 de Março) de manifestações em vários pontos do país, compostas por diferentes grupos sociais: classe média, baixa, trabalhadores mais pobres e uma juventude que numericamente tem uma expressão considerável.

Para entender melhor o contexto paraguaio, convém ressaltar alguns pontos sobre este levante que pode derrubar um presidente latino-americano em plena pandemia, por sua má gestão e escândalos de corrupção, de um partido tradicional que está no poder há décadas.

O Partido Colorado governa de forma quase ininterrupta há mais de 70 anos. O partido se manteve no poder inclusive durante a ditadura de Alfredo Stroessner, que presidiu por 35 anos de 1954 a 1989 — a ditadura mais longa da América Latina. O presidente Mario Abdo Benítez, um verdadeiro hijo del Stronismo, é filho do ex-secretário particular de Stroessner e herdou uma grande fortuna de seu pai graças a duas construtoras que trabalham com o Estado. No mesmo partido, está Horácio Cartes, ex-presidente do Paraguai conhecido como o maior contrabandista de cigarros do país, que possui influência política e econômica nacional, com maioria na Câmara, e é dono de um conglomerado de empresas. Foi durante a quase reeleição de Cartes e a conciliação com a oposição para uma tentativa de reforma constitucional, que possibilitasse sua reeleição e a de futuros candidatos, inclusive da oposição (o que constitucionalmente não é permitido desde 1992), que a população paraguaia se revoltou e incendiou parte do congresso, em 2017. Devido à sua grande influência, Cartes também é alvo dos manifestantes que recentemente foram à sua casa protestar.

Marito, representante da direita conservadora nacional, teve um posicionamento um tanto quanto mais lúcido que o governo Bolsonaro com relação à gestão da pandemia. A respeito da cloroquina e da ivermectina, o presidente paraguaio não se envolveu com os medicamentos usados como tratamento precoce, incentivado por seu vizinho brasileiro. Desde a deflagração da pandemia, o Estado sempre discursou com veracidade acerca das necessidades de protocolos de segurança, de maneira bem técnica, seguindo orientações da Organização Mundial de Saúde (OMS), como quarentenas, medidas de distanciamento social e restrição a aglomerações. O fato é que a infraestrutura do sistema de saúde paraguaio não está capacitada para uma pandemia, portanto não dá conta das necessidades da população no tratamento e combate ao coronavirus, como apontado pela OMS. Medidas como o fechamento da fronteira com o Brasil barraram o circuito superior e inferior presente na Ciudad del Este; com as grandes lojas de importados eletrônicos, hotéis e cassinos fechados, os pequenos comerciantes, camelôs e trabalhadores informais que sobreviviam em torno do turismo franco-aduaneiro, além dos trabalhadores brasileiros e paraguaios que trabalhavam na cidade, sentiram os primeiros impactos. Não demorou muito e em setembro houve manifestações pedindo a abertura da Ponte da Amizade e a volta do comércio. Naquele momento houve em algum nível os primeiros discursos de um certo negacionismo com relação à existência do coronavírus, pois até então, com a fronteira fechada, os casos de covid estavam, na medida do possível, sendo controlados. Pode dizer-se que esse negacionismo foi motivado pela vulnerabilidade econômica que atingia os trabalhadores da Ciudad del Este devido à ausência de trabalho e renda. Porém, com a reabertura da fronteira com o Brasil em Novembro, a expectativa de uma recuperação econômica não se materializou e as ruas continuam cada vez mais vazias, com baixo fluxo de turistas que visitam a Foz do Iguaçu fugindo de lockdowns pelo mundo — um motorista de aplicativo Uber fez uma corrida para um espanhol, que, esquivando das mesmas medidas na Europa, surpreso com o recente lockdown em vigor, já busca outra cidade: Florianópolis, no Brasil. A cidade é responsável por 10% do Produto Interno Bruto paraguaio, aproximadamente US$ 4 bilhões [4]. Agora com cerca de 20 mortos por dia o discurso negacionista diminuiu bastante e, além do mais, a população rapidamente se deu conta de que do outro lado do Rio Paraná está o Brasil, com uma das piores gestões sanitárias do mundo, e de que seu sistema de saúde pode colapsar a qualquer brecha. A sensação de ser brasileiro é a mesma de estar contaminado. O governo fez um programa econômico chamado “Pytyvo”, ayuda em guarani.

Parece que o papel da mídia tem uma relevância, afinal ela está nas mãos de uma burguesia nacional. Marito, desde o empréstimo de US$ 1,6 milhão [*], é criticado por todos os lados. Os meios de comunicação centraram na corrupção do governo e nas vacinas que não estão chegando. A mídia tem contribuído para seu desgaste. Por exemplo, veio à tona o tratado de Itaipu, assinado perante o presidente Jair Bolsonaro, relativo a um contrato de venda de energia ao Brasil [5], e novos protestos quase levaram o presidente paraguaio a um impeachment. Desde então, o presidente é acusado pela população de não defender a soberania nacional. Afetada pela pandemia, a economia paraguaia viu o aumento do trabalho informal nas ruas da capital, o aumento da pobreza e do desemprego. O governo criou um programa de aporte financeiro que ajudou milhares de famílias, mas elas vêm sofrendo com o aumento da inflação, que passa a ser sentida mais fortemente, já que antes da pandemia foram feitas reduções na tarifa do combustível, para incentivar a população a não usar o transporte coletivo.

As manifestações nas ruas têm uma composição heterogênea, uma classe média, baixa, classes populares e a juventude em peso, com um discurso que não é um discurso apolítico que se refere a todos os partidos como degenerados, contra toda a classe política, mas sim a descrença nos partidos tradicionais, Colorado e Liberal, implícito no “¡que se vayan todos!”. Um fator visível que diferencia este Março de manifestações passadas, como o incêndio ao congresso nacional em 2017 — que o Partido Colorado não governe nunca mais, é o que está sendo proclamado nas ruas: parece uma análise estrutural um pouco mais interessante, pois antes o alvo eram as individualidades, agora o partido. As pessoas estão na rua com uma postura medianamente crítica, mais aberta, não há pedidos de volta à ditadura militar nem discursos liberais acerca de venda de estatais. O nacionalismo paraguaio não está só nas bandeiras colocadas na rua, mas sim na sua história contra o imperialismo. Os manifestantes convocam a população para uma reedição de Março de 1999 pela hashtag #estoyparaelmarzo2021 e o que vem de carona [de boleia] junto com o que parece ser uma revolta pelo desgaste da pandemia e contra a corrupção é a presença de pautas mais genéricas, como “mais educação”, “uma vida digna” e que o Partido Colorado é culpado de todos os males.

O que se pode entender até o momento é que não há uma direção política clara nas manifestações e tampouco é possível dizer que a esquerda esteja se valendo das movimentações. Pelo contrário, ela parece, até aqui, seguir a correnteza. Não existe ainda uma figura que absorva o descontentamento. É uma força que não se identifica especificamente com um partido, apesar de haver partidos de oposição em seu arranjo. Não pode dizer-se ainda para onde será canalizada esta revolta. Um momento histórico e o seu desabrochar estão em jogo e existe uma juventude fortemente ativa nas ruas sem identificação política clara, que pode ser preponderante para o fim da hegemonia do Partido Colorado no poder.

Esse texto foi escrito perante a necessidade de algum relato sobre os últimos acontecimentos no Paraguai, na tentativa de elucidar algumas questões levantadas em tempos de pandemia e crise econômica para gerar apontamentos futuros e acompanhar as revoltas sociais em torno da luta de classes. Por ser um dos primeiros materiais sobre o tema, carece de aprofundamentos e reflexões que vão sendo postas ao longo do tempo. O texto foi escrito como contribuição por entrevista e pesquisa.

Notas

[1] https://www.ultimahora.com/la-violenta-historia-del-primer-marzo-paraguayo-n2930267.html.
[2] https://brasil.elpais.com/brasil/2017/03/31/internacional/1490977940_157080.html.
[3] https://www.swissinfo.ch/spa/coronavirus-paraguay_enfermeros-se-manifiestan-en-asunci%C3%B3n-por-falta-de-insumos-y-medicamentos/46417640, https://www.ultimahora.com/director-del-ineram-presento-renuncia-verbal-falta-medicamentos-n2929804.html.
[4] https://www.hoy.com.py/nacionales/abdo-promulga-ley-de-emergencia-que-autoriza-creditos-de-hasta-us-1.600-millones.
[5] https://www.bbc.com/portuguese/brasil-49201623.

Nota do Passa Palavra

[*] O Congresso paraguaio aprovou a Lei 6.524/2020, que permite ao Poder Executivo fazer um empréstimo de até US$ 1,6 bilhão para financiar suas ações. E agora, em meio à crise de falta de medicamentos, o governo solicitou empréstimo internacional de US$ 1,6 milhão para comprar insumos que, por ora, não chegaram.

2 COMENTÁRIOS

  1. Seguindo a velha tradição de produzir factóides juntando fatos sem nenhuma conexão, não deixa de saltar aos olhos que o valor tomado de empréstimo pelo governo paraguaio para comprar medicamentos é igual ao valor que Ronaldinho Gaúcho pagou de fiança em abril passado – US$ 1,6 milhão. Fica portanto o questionamento: onde foi parar o dinheiro que Ronaldinho Gaúcho doou para o governo paraguaio comprar medicamentos? O que fizeram com o dinheiro d’O Bruxo?

  2. Emerson, a sua colocação é muito importante. Na verdade, em breve publicaremos uma reportagem que temos conduzido que prova que na verdade Ronaldinho se antecipou à pior fase da pandemia para socorrer os camaradas da América Latina e o golpe que você relatou tem raízes no imperialismo genocida.

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