Por um professor da rede privada de Ensino Básico

Neste momento, algumas palavras precisam ser ditas.

Eu, que escolhi dedicar a vida ao estudo das palavras, aos seus significados, suas nuances, suas insuspeitadas belezas e inimagináveis poderes; eu, hoje, não consigo extrair delas nada. Não consigo dar com elas nada, não consigo por meio delas receber nada. As palavras não têm vida própria e, se hoje elas são estéreis, só pode ser por um motivo: porque o mundo mesmo a que elas sempre estiveram ligadas perdeu todo o seu sentido.

Em um tempo não tão distante, ao sair de casa pela manhã, mochila nas costas, eu ouvia de minha mãe, “boa aula, filho”; e guardava essas palavras dentro de mim, como algo bom — a linguagem produzia então calor — fosse a aula boa ou não. Eu não costumava responder senão com as mãos, acenando. Em um tempo não tão distante, ao sair de casa pela manhã, mochila nas costas, eu ouvia de meus companheiros, “bom trabalho, camarada”; e guardava essas palavras dentro de mim, como algo bom — a linguagem produzia então cumplicidade —, já que, passados alguns anos, aprendidas algumas lições, eu dizia a eles o mesmo; aprendemos com nossas mães a importância de cuidar e de ser cuidado. E aprendemos com elas também que as palavras desempenham um papel importante para que esse aprendizado se dê e para que o cuidado se efetive.

Ontem liguei para minha mãe. É comum nos falarmos aos domingos. Ao final da ligação, ela costuma me desejar uma boa semana, com a mesma ternura com que antes me desejava boa aula. Ontem contei para ela que voltaria a trabalhar presencialmente, logo antes de desligar. Demorei tanto porque não me sentia bem e não sabia se deveria tocar no assunto. Talvez por ter medo de deixá-la preocupada. Talvez por não querer anunciar, nem para ela nem para mim, a verdade. Ela ficou muda. E o seu silêncio eu não sei quanto tempo durou, e eu não sei quanto tempo duraria, mas desliguei o telefone antes que pudesse descobrir.

Nós, que escolhemos dedicar a vida ao estudo das palavras, aos seus significados, suas nuances, suas insuspeitadas belezas e inimagináveis poderes; nós, hoje, sabemos que elas definharam. Que todo ato que elas deflagram é instantaneamente desmentido. Que todo sentido que elas buscam transmitir é falso e que não haverá futuro para elas, se não houver futuro para nós.

O futuro dos homens e mulheres deste mundo sempre zombou da morte, porque nunca esteve na vida mesma de cada um de nós (na vida apenas, diríamos) a sua grande força vital. As vidas vêm e vão, começam e acabam — sempre foi assim. Mas há um fio, tecido em segredo e que conecta todas elas; um frágil fio, que está sempre no presente, apontando para além dele; esse fio é o futuro. É ele que dá vida às palavras, que anima suas existências. Esse fio se rompeu.

Como podemos desejar uma boa aula aos nossos filhos, se sabemos que a aula não será boa? Como podemos desejar um bom trabalho aos nossos companheiros, se sabemos que o trabalho lhes impôs a inescrupulosa e impraticável escolha entre a morte certa sob tortura pela fome e a incerta morte sob tortura nos hospitais pelo vírus? Como poderemos dizer, quando o momento chegar, “meus pêsames, amigo”, se sabemos que somos todos cúmplices de uma morte que não poderá receber de nós o devido sepultamento?

A única saída digna seria trabalharmos em silêncio. O luto necessário, não pelas vidas que já perdemos e que talvez percamos — esse fizemos e teremos de fazer também, provavelmente agora calados —, mas o luto pelo sentido de nossa profissão. Como não é possível dar aula em silêncio, falaremos… verborragicamente vomitaremos, palavra após palavra, o vazio que nos preenche. Voltaremos para casa depois, silenciosamente humilhados. E, ao sermos recebidos por nossos companheiros, estaremos, nós e eles, temendo uns aos outros, e receosos demais para falar.

Sabemos por que a aula não será boa. Sabemos por que o trabalho nos impôs essa escolha. Sabemos que alguns são mais culpados do que outros. E já denunciamos exaustivamente tudo isso. Por isso, sabemos, hoje, que as palavras não valem nada… E por isso, a única postura digna seria emudecermos.

Antes disso, porém, algumas palavras precisam ser ditas. Todas elas têm o mesmo significado. Todas elas escondem o inominável. Todas elas farão parte do cortejo fúnebre do futuro taciturno… “educadores”… “saúde da instituição”… “diálogo”… “enfrentar os riscos”… “comunidade”… “protocolos de proteção”… “grandes desafios”… “cuidado coletivo”… “alunos”… etc… etc… etc…

A fotografia de destaque, cortada por motivos técnicos, é de Fan Ho. A outra é de Kültür Tava.

3 COMENTÁRIOS

  1. Parabéns pelo texto. Remete a Drummond:

    Luta com palavras
    é a luta mais vã.
    Entanto lutamos
    mal rompe a manhã.

    O autor afirma que hoje as palavras são “estéreis”. Se é assim, por que “algumas palavras precisam ser ditas”? A aparente aporia remete, também, a Drummond:

    Um inseto cava
    cava sem alarme
    perfurando a terra
    sem achar escape.

    Que fazer, exausto,
    em país bloqueado,
    enlace de noite
    raiz e minério?

    Eis que o labirinto
    (oh razão, mistério)
    presto se desata:

    em verde, sozinha,
    antieuclidiana,
    uma orquídea forma-se.

    Apesar do “país bloqueado”, um inseto cava e pode achar escape, uma orquídea pode se formar, antieuclidianamente. Lutemos com palavras, sempre.

    PS.: As fotografias encaixaram bem, também.

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