Por Cristiano Fretta

Lutar com palavras é a luta mais vã, disse-nos o poeta Carlos Drummond de Andrade no poema O Lutador, de 1942. De fato, toda expressão verbal — seja ela escrita ou falada — é, grosso modo, uma tentativa de traduzir em convencionais sinais gráficos ou em sons produzidos por nosso rebuscado aparelho fonador uma gama complexa de sensações, sentimentos e/ou ideias produzidas nas profundezas de nosso cérebro. Dito de outra forma, a palavra nunca é a coisa em si, mas sim uma representação da coisa. “Ceci n´est pas une pipe” [1] é uma verdade que vai para muito além das artes plásticas e dos museus europeus: o espaço que existe entre o objeto do pensamento e sua representação gráfica ou fônica é uma luta inconsciente que todo falante de português ou de qualquer outra língua vivencia no cotidiano. Primo Levi, narrando as brutais experiências pelas quais passou em Auschwitz, em seu livro de memórias É isto um homem?, disse:

Assim como nossa fome não é apenas a sensação de quem deixou de almoçar, nossa maneira de termos frio mereceria uma denominação específica. Dizemos ´fome´, dizemos ´cansaço´, ´medo´ e ´dor´, dizemos ´inverno´, mas trata-se de outras coisas. Aquelas são palavras livres, criadas, usadas por homens livres que viviam, entre alegrias e tristezas, em suas casas. Se os Campos de Extermínio tivessem durado mais tempo, teria nascido uma nova, áspera linguagem, e ela nos faz falta agora para explicar o que significa labutar o dia inteiro no vento, abaixo de zero, vestindo apenas camisa, cuecas, casaco e calças de brim e tendo dentro de si fraqueza, fome e a consciência da morte que chega. [2]

A comunicação humana é, dessa forma, um problema de representação. Somos presos à linguagem e à sua verticalidade. As escolhas que o sujeito enunciador faz na hora de enunciar são, portanto, uma porta de acesso à sua subjetividade, às suas ideologias, enfim, à sua visão de mundo. Nesse sentido, toda linguagem é ideológica, na medida em que traz em si mesma uma escolha que em sua essência é arbitrária. Aqui cabem, como exemplo, duas manchetes sobre um mesmo assunto, veiculadas em um portal de notícias: “Polícia prende jovens de classe média com 300kg de maconha no Rio” e “Polícia prende traficante com 10 quilos de maconha em Fortaleza”. A diferença entre os dois exemplos aponta para o fato de que a escolha vocabular para representar o tráfico de drogas é norteada por pressupostos ideológicos; a tentativa eufemística de utilizar “jovens de classe média” ao invés de “traficantes” mostra o quanto somos, de fato, reféns das palavras. Elas nos representam, mas também nos denunciam.

Desde o dia 27 de abril o país vem acompanhando os desdobramentos da CPI [Comissão Parlamentar de Inquérito] da Covid, instaurada após decisão do STF [Supremo Tribunal Federal]. Com o intuito de analisar as ações e omissões do Executivo durante a pandemia de Covid-19, a CPI tem ocupado a atenção de boa parte dos brasileiros. Nela, os depoimentos são essenciais, pois ao mesmo tempo que se dá aos enunciadores o direito amplo da linguagem também se cobra a prerrogativa legal de que o que é falado encontre respaldo na realidade. No entanto a linguagem, além de criar o real, também é capaz de destruí-lo ou forjá-lo. Muito tem se chamado de negacionistas as narrativas fantasiosas criadas pelos asseclas do atual governo. No entanto elas vão para muito além da negação pura e simples, na medida em que não só negam a realidade, mas também geram narrativas puramente ficcionais. Dessa forma, a CPI da Covid tem o poder de explicitar uma das noções mais presentes em qualquer regime de identificação fascista: a irrealidade. Cruzamos uma perigosa linha em que o discurso se descolou do que é real. E se, como diria Foucault, não existe realidade fora da linguagem, aqui estamos nós vivendo a ditadura da discursividade. Situadas na distância entre o fato e o dito, as narrativas inventadas na CPI tentam levantar as palavras para cada vez mais longe do chão. É nesse sentido que Jason Stanley, em seu Como funciona o fascismo, diz que “as teorias da conspiração não apenas têm o poder de influenciar as percepções da realidade, mas também podem moldar o curso de eventos reais”. No caso do Brasil, isso fica latente quando percebemos o amplo uso de Cloroquina e Ivermectina por boa parte da população brasileira, apesar da ausência de qualquer comprovação científica de que esses medicamentos sejam efetivos contra a Covid. Jason Stanley é assertivo:

O que acontece quando as teorias da conspiração se tornam a moeda da política, e a grande mídia e as instituições educacionais estão desacreditadas, é que os cidadãos não têm mais uma realidade comum que possa servir como pano de fundo para a deliberação democrática. [3]

Ou seja, no campo em que a linguagem não mais tenta espelhar o real, tudo é possível; esvaem-se, junto com a visão racional dos acontecimentos, o respeito pelo outro e pelas evidências, e se mergulha numa lama de irrealidade em que absolutamente qualquer discurso ou ordem encontram respaldo no real imaginado. Dessa forma, muitas das coisas que soam esdrúxulas para nós nada mais são do que uma verdade para os tais “negacionistas”, e isso vai desde medicamentos que não têm eficácia comprovada até a suposta relação de uma atriz pornô com um estudo fraudulento sobre Cloroquina. Os depoimentos completamente opostos das médicas Nise Yamaguchi e Luana Araújo explicitam a oposição entre as palavras que espelham uma realidade e aquelas que a forjam.

A CPI tem a obrigação ética de encaminhar punições em direção daqueles que, caminhando sobre pilhas de mortos, enunciam narrativas fantasiosas em um contexto que visa a investigar os responsáveis diretos e indiretos pelo caos sanitário e humanitário no qual o Brasil está mergulhado. Trata-se, portanto, de uma situação privilegiada, em que a linguagem ganha papel de extremo destaque, pois, como já foi dito, é apenas através dela que conhecemos o mundo. Que o mundo que ela representa sempre seja o real, pois o que existe para fora dele é o terreno fértil da barbárie.

Notas

[1] Referência ao quadro A Traição das Imagens (1928-1929), de René Magritte.
[2] LEVI, Primo. É Isto um Homem? Tradução de Luigi Del Re. Rio de Janeiro: Rocco, 1988.
[3] STANLEY, Jason. Como funciona o fascismo. Tradução de Bruno Alexander. Porto Alegre: L&PM, 2018.

As obras que ilustram o artigo são da autoria de Aakash Nihalani (1986-).

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