Por Armando Chaguaceda e Melissa Cordero Novo
Traduzido pelo Passa Palavra, do original em espanhol publicado na revista Letras Libres em 13 de julho de 2021.
Num texto que será publicado em breve nesta revista analisamos a evolução do movimento sociocultural surgido em Cuba em torno da conjuntura (e identidade) do 27 de novembro de 2020. Neste, a partir do campo artístico, os cidadãos cubanos apresentaram várias reivindicações ao governo, reunidas em torno das ideias de diálogo nacional, participação cívica e o direito a ter direitos.
No processo de redação do nosso artigo, alguns colegas comentavam sobre o limite da experiência. Circunscrito — por causa da repressão estatal e a própria natureza dos participantes — ao grupo e artivistas urbanos, o 27N seria (segundo as palavras de um amigo sociólogo) “um gesto de protesto, valente e importante, incapaz de aderir a uma população cansada e analfabeta em direitos”.
No entanto, nossa observação dos acontecimentos e os resultados de uma série de entrevistas e pesquisas realizadas com centenas de membros da sociedade civil emergente elucidavam algo distinto. Isto é, a convergência de uma minoria ativa, cujas reivindicações apenas antecipavam o sentimento da população, que se expressava de maneira lenta e fragmentada em protestos isolados por serviços, críticas nas redes sociais e diversos eventos de auto-organização comunitária.
Recuperamos esse antecedente ante à explosão dos maiores protestos populares em sessenta anos de regime pós-revolucionário cubano. Tudo começou em San Antonio de los Baños, ao sudoeste da cidade de Havana. Por meio das redes sociais, transmitiu-se ao vivo uma concentração de pessoas que protestavam pelo povo, entoando palavras de ordem contrárias ao modelo socialista e estatal cubano e exigindo direitos. Era domingo, 11 de julho (11J) de 2021, por volta de meio-dia. Como costuma ocorrer nesses casos, sinais se acumularam, mas a fagulha pegou quando e onde ninguém esperava.
A notícia se espalhou de maneira exponencial por meio da internet. Poucas horas depois começavam relatos de manifestações em outras províncias do território nacional. Antes que acabasse o dia contabilizavam-se revoltas em mais de 60 localidades cubanas. O alcance, o imediatismo, a pluralidade dos manifestantes, a consistência, rebeldia, entusiasmo, unidade e o descontentamento foram algumas das características que podiam ser observadas à primeira vista entre os que se apoderaram do espaço público, por tantos anos restrito.
O marco desses acontecimentos é o de uma severa crise derivada do esgotamento do modelo estatista e agravada pela paralisia das reformas econômicas e outros múltiplos fatores: o impacto econômico da pandemia, que afetou o turismo, fonte de divisas; os efeitos das sanções norte-americanas; a dolarização da economia, que aumentou a pobreza, a desigualdade e a escassez — nos meios de comunicação independentes e redes sociais eram reproduzidos relatos de filas intermináveis para conseguir comida —, enquanto o governo colocava investimentos imobiliários acima de gastos sociais. Uma nova crise energética provocava longas horas de cortes no serviço de eletricidade, um dos aspectos que, com maior indignação, os cubanos recordam dos anos noventa, no começo do chamado Período Especial em tempos de Paz.
A ausência de políticas eficazes de apoio ao empresariado e aos trabalhadores coincidia com um férreo controle punitivo do comportamento do cidadão, que passou por uma escalada desde novembro de 2020, no rescaldo dos acontecimentos do despejo na sede do Movimento San Isidro (MSI) e a manifestação de artistas e intelectuais frente ao Ministério da Cultura. As detenções e vigilância domiciliares, os cortes de internet, o assédio e a difamação nos meios estatais, assim como a abertura de processos penais contra dissidentes, recrudesceram tanto a repressão como o desgosto.
Também contribuiu uma política sanitária que apostou tudo no desenvolvimento de vacinas próprias contra a covid-19, sem atender ao resto das condições — infraestrutura, insumos e pessoal — que sustentam, em qualquer lugar, a saúde pública. O uso das vacinas candidatas Soberana 01 e 02, Soberana Plus, Abdala e Mambisa como uma espécie de plataforma política e moeda de troca ante as carências visíveis no país, e a demora para o começo da vacinação, eram outras bases de estímulo para a explosão dos protestos. Deve-se recordar que, durante as últimas semanas, Cuba vivia um pico ascendente de reincidências, contágio e mortes pelo coronavírus. Os números mais alarmantes estavam concentrados na província de Matanzas, onde os serviços hospitalares e insumos estavam em colapso e esgotados.
Voltemos aos protestos. Milhares de pessoas, de maneira pacífica, marcharam e gritaram palavras de conteúdo social e político diverso. Entre os manifestantes era possível observar uma heterogeneidade de origens, idades e raças, assim como uma espontaneidade, desejo legítimo e crença no que exigiam nas ruas de todo o território nacional. Com o avanço da tarde ocorreram enfrentamentos com forças policiais dos mais diversos tipos e as chamadas Brigadas de Resposta Rápida (seções de quadros e militantes do Partido Comunista), mobilizados para controlar e sufocar as manifestações, nunca para protegê-las. Ainda se desconhece o alcance destes acontecimentos — alguns filmados, outros não —, mas foram difundidos vídeos que poderíamos catalogar, inequivocamente, como abuso policial.
A situação se agravou logo que o presidente cubano, Miguel Díaz-Canel Bermúdez, compareceu na Televisão Cubana (TVC) no mesmo 11 de julho. Em um discurso improvisado, onde aparecia nervoso e soberbo, utilizou a retórica batida e belicosa empregada nas primeiras décadas posteriores a 1959. Não houve uma palavra conciliatória. Díaz-Canel induziu ao enfrentamento e não ao diálogo ou a uma resolução pacífica, porque esta última teria sido considerada como aceitar a legitimidade dos protestos e ver-se pressionado a escutá-los. Optou pela negação da realidade, por refugiar-se no simbolismo falso e decadente que é incapaz de sustentar o Estado e governo cubanos. Depois de uns tropeços verbais, tentou catalogar e segmentar os manifestantes em “revolucionários”, “revolucionários confundidos” e “contrarrevolucionários” pagos pelos Estados Unidos, enquanto assegurava que a rua era dos revolucionários, categoria discriminatória e segregacionista que não deveria aparecer no vocabulário de um presidente que representa a todos os cidadãos do país. Omitiu, na hora de seu discurso, que os protestos já estavam presentes em quase todo o arquipélago. Segundo a TVC, os “distúrbios” somente ocorreram em San Antonio de los Baños. Díaz-Canel terminou sua aparição afirmando que estava “disposto a tudo”, que teriam de passar por cima de seu cadáver e que “a ordem de combate está dada”.
Durante os protestos foram vistos, também, saques — análogos aos que ocorrem durante protestos similares, por todo o globo — nas lojas onde se compram em divisas, depósitos de produtos de primeira necessidade e foco da ira popular. As pessoas não invadiram esses estabelecimentos por um simples desejo de destruição: levaram de seu interior dezenas de bens e itens que não podem adquirir porque não recebem na moeda forte em que o Estado vende esses produtos. Alguém pode imaginar que se tratou de simples vandalismo? Não: trata-se de necessidade, precariedade, desespero.
Apesar de que entre os manifestantes se escutavam, continuamente, apelos para atuar de forma pacífica, uma vez liberado o ímpeto popular é impossível conter as emoções e impedir que sejam canalizadas do modo como cada qual considera conveniente. Este elemento foi utilizado pelo governo para afirmar que se tratava de vândalos, delinquentes e pessoas vulgares. Como se não fossem indivíduos criados pelo próprio sistema que lhes impede de realizar suas necessidades econômicas e seu direito de expressão. A academia latino-americana — em particular a progressista — tem se dedicado recentemente a informar, analisar e até romantizar as causas e expressões por trás de acontecimentos similares em países como Colômbia, Equador ou Chile, países com governos neoliberais onde os pobres saquearam lojas. Os julgamentos devem ser distintos onde há governos autodenominados socialistas? Qualquer compreensão e crítica não deveria basear-se menos em posturas ideológicas e mais em compreender a situação dos que saqueiam, e do sistema que os impeliu a fazê-lo?
Ocorreram enfrentamentos violentos. Há vídeos e imagens que mostram pessoas baleadas, feridas, violentadas e agredidas; pessoas desarmadas. Há dezenas de desaparecidos não contabilizados e dos quais não se conhece o paradeiro nem as acusações que enfrentarão. Há relatos sem confirmação de pessoas mortas e há cenas de confronto direto entre as forças policiais — que também foram agredidas — e as massas. Os meios de comunicação estatais têm silenciado injustificadamente perante a situação, pois dezenas de vídeos e fotografias circulam pelas redes sociais publicamente. No 12 de julho, Cuba inteira amanheceu com um corte de internet e serviço intermitente da telefonia móvel, o que somente pode levar à conclusão de que o governo busca, de maneira intencional, ocultar o ocorrido no dia anterior e impedir possíveis novas articulações.
No momento em que escrevemos esse texto, a tônica geral dos acontecimentos tem sido a diversidade, massividade e politização das manifestações. Não se trata de turbas pedindo esmolas a um patrão, mas de cidadãos que exigem direitos às autoridades. Cai por terra a ideia de um povo geneticamente incapacitado, por seis décadas de castrismo, a reivindicar de seus governantes. Também o mito de uma Revolução eterna, que dissolve as responsabilidades do Estado autoritário na suposta identificação povo/governo/partido único. Acabou o discurso da unicidade e da irrevogabilidade do socialismo como sistema para Cuba.
Cabe aos dirigentes cubanos apelar ao fantasma da desestabilização exterior: o mesmo invocado em 68 para criminalizar os protestos juvenis. Discurso idêntico ao que usaram os trumpistas contra o movimento Black Lives Matter no ano passado nos Estado Unidos. A diferença é que em Cuba, hoje, como ontem no México priista [*], a mentira oficial tem muitos canais para se impor sobre uma população desinformada e simpatizantes estrangeiros. Enquanto que, em uma democracia como a estadunidense, o apelo à ingerência externa — como se fez com a russa em 2020 — não basta para suspender o exercício de direitos pela população.
Isso não quer dizer que os manifestantes espontâneos deste 11 de julho levaram debaixo do braço propostas políticas concretas e elaboradas. Quer dizer que estão em desacordo com o estado de coisas no arquipélago e isso começa pela crítica à gestão maniqueísta do Estado cubano, da economia, da pandemia e da sociedade. Essa que desde há algumas décadas se esvazia de conteúdo e é incapaz de resolver os problemas básicos, enquanto só exige ao povo sacrifícios, resistência e compreensão.
As reações têm sido impressionantes, como ocorre ante à irrupção do novo, em um lugar onde há muito tempo que (supostamente) não acontece nada. Os acontecimentos se difundem massivamente através dos meios de comunicação e redes sociais. Alguns governos e funcionários apoiam o Estado cubano, outros solicitam que se escute o povo e se chegue a uma saída pacífica. As imagens e áudios de milhares de pessoas reivindicando direitos no espaço público ficarão para quem quiser vê-los. O silêncio e a solidariedade para com o regime ou os cidadãos cubanos far-se-ão, desde já, mais visíveis. Estamos em um desses momentos da História em que cada um escolhe com quem anda — e assumirá a responsabilidade de fazê-lo.
O governo cubano tem construído ao longo de décadas um mecanismo bem lubrificado de controle social, sustentáculo de uma vocação de poder total, que acredita ter o direito de exercer apesar de tudo e acima de qualquer realidade. Essa rejeição à pluralidade teve reflexos também na coletiva de imprensa convocada para a manhã de 12 de julho, dia no qual continuaram noticiando manifestações, em uma escala muito menor, porque o país foi fortemente militarizado. Ali não se reconheceu responsabilidade alguma. Falaram de restabelecer os cortes de luz, suposto único motivo de descontentamento popular, e responsabilizaram o embargo norte-americano e a guerra não convencional pelo que sucede em Cuba hoje. O chanceler cubano, Bruno Rodríguez Parilla, em outra coletiva de imprensa realizada na tarde de 13 de julho afirmou, novamente, que no último domingo não houve uma explosão social em Cuba, senão “distúrbios muito limitados”. Negou a violência policial. Afirmou que os cortes de internet não eram resultado de uma estratégia governamental e que se deviam a falhas pela ausência de fluido elétrico. Condenou o governo estadunidense e reiterou que o descontentamento popular generalizado surgiu graças ao esforço de laboratórios midiáticos daquele país. Os manifestantes chamou de: “agentes de uma potência estrangeira”, “elementos delinquentes”, “pessoas vinculadas a elementos da marginalidade”. Porque se, como disse Brecht, o povo se opõe a seu governo, este se arroga ao direito de dissolvê-lo.
A suposta “excepcionalidade cubana” definha. A ilha é hoje, simultaneamente, a sede de um regime soviético rígido e antiquado, e uma sociedade caribenha — diversa, desigual, pobre — como seus homólogos da região e com uma economia subdesenvolvida, conectada de maneira precária à globalização. Santiago de Cuba tem hoje mais em comum com Santiago de los Caballeros ou Santiago Atitlán que com uma cidade do velho socialismo real. O excepcional em Cuba se mantém apenas na natureza de um regime que se nega a reconhecer o direito de seu povo, real e heterogêneo, a ter (e exercer) direitos. Isto só faz com que a pressão se torne mais intensa, e torna possível controlar a válvula de pressão.
Como acontece hoje em muitos países, as pessoas em Cuba estão cansadas de suportar o peso combinado da pandemia, da exploração e da negligência governamental. De que os de cima lhes tirem tudo, falando (além disso) em seu nome. O único final feliz desses acontecimentos seria que as autoridades aceitassem as reivindicações de cidadania ainda que, segundo as palavras de seus governantes, esta esperança seja incerta. Oxalá fique também isolado qualquer chamado à violência popular ou à intervenção estrangeira, que favoreçam a propaganda e a repressão estatais. O certo é que, independentemente do rumo dos acontecimentos, não há como voltar atrás. Cuba é outra depois do 11J.
Notas da tradução:
[*] Uma referência ao PRI (Partido Revolucionario Institucional), que por setenta anos dominou a política mexicana, entre 1930 e 2000.
Para completar o debate, ainda que um pouco vagas, ajudam a colocar alguns caroços nesse angu:
– https://pt.crimethinc.com/2021/07/22/anarquistas-cubanxs-sobre-las-protestas-del-11-de-julio
– http://proletariosrevolucionarios.blogspot.com/2021/07/analisis-de-la-actual-revuelta-en-cuba.html