Por Olúfémi O. Táíwò
Em abril de 2020, num artigo de opinião para o Washington Post, Andrew Yang, candidato à presidência nas primárias do partido democrata, sustentou que os asiático-americanos deveriam “intensificar” e abertamente apoiar as iniciativas de socorro às vítimas da pandemia para combater o racismo que acompanhou o crescimento dos casos de COVID-19. O apelo é um exemplo de “identity politics” (identitarismo), embora não do tipo que a expressão evoca para a maioria das pessoas. O identitarismo é geralmente visto como a defesa de direitos de um determinado grupo, fundada na sua vitimização coletiva. Porém, muitas vezes, seja por acaso ou intencionalmente, o identitarismo atende a um conjunto mais restrito de interesses, como os objetivos eleitorais de um candidato democrata. O argumento de Yang, por exemplo, atribui ao próprio grupo vítima de racismo a responsabilidade de se mostrar digno de ser americano, ao mesmo tempo em que pede pouco à maioria não asiática dos EUA, de cujos votos depende o seu futuro político.
O termo “identity politics” (identitarismo) foi popularizado pelo manifesto do coletivo Combahee River — uma organização de ativistas feministas negras –– publicado em 1977. Numa entrevista recente para a revista online The Root e em artigo publicado no The Guardian, Barbara Smith, uma das fundadoras do coletivo, aborda os equívocos comuns sobre o termo. O manifesto, ela explica, foi escrito por mulheres negras que reivindicavam o direito de definir suas próprias agendas políticas. Elas não se projetaram como uma aristocracia moral –– elas formularam um ponto de vista político pautado pela experiência comum para superar “problemas comuns”. Daí a defesa da coalizão de pessoas de distintas origens, uma abordagem que para Smith foi exemplificada pelo trabalho de base da campanha de Bernie Sanders e seu foco nas questões sociais que as pessoas de várias identidades enfrentam, especialmente “necessidades básicas de alimentação, moradia e saúde.” De acordo com Smith, os usos atuais do conceito “identity politics” (identitarismo) são muitas vezes “muito diferentes do que pretendíamos”. “Não queríamos, de forma alguma, trabalhar apenas com pessoas que eram idênticas a nós”, ela insiste. “Acreditávamos fortemente em coalizões e no trabalho com pessoas de várias identidades para enfrentar problemas comuns.”
Mas, ao invés de forjar alianças inclusivas, alguns ativistas optaram por instrumentalizar o identitarismo, cerrando fileiras — especialmente nas redes sociais — em torno de concepções de “interesses de grupo” cada vez mais estreitas, em lugar da solidariedade. O identitarismo, em si, não é o culpado. O problema é que, como tantas outras coisas, ele é vítima de um “sequestro” orquestrado por elites políticas, sociais e econômicas a serviço de seus próprios interesses e não das pessoas vulneráveis que muitas vezes essas elites afirmam representar.
O conceito de captura pela elite (elite capture) originou-se no estudo dos países em desenvolvimento para descrever a maneira como as pessoas socialmente favorecidas tendem a obter controle sobre os benefícios financeiros destinados a todos, especialmente os oriundos da ajuda externa. Mas o conceito também foi aplicado de forma genérica para descrever como os projetos políticos podem ser sequestrados — em princípio ou de fato — por pessoas bem posicionadas e com recursos, como exemplifica o chamado à “intensificação” do candidato democrata Yang. A ideia também ajuda a explicar como recursos públicos, tais como conhecimento, cobertura e valores, são distorcidos e distribuídos entre nossas estruturas de poder. E é precisamente isso o que se encontra entre nós e a visão de Smith sobre a “política de coalizão.”
A captura pela elite é responsável por muitas das objeções levantadas contra o identitarismo: o apoio acrítico a figuras públicas a despeito da sua política, ou ainda preocupações sociais que são “realmente para brancos ricos” . Alguns críticos perceberam isso; Saagar Enjeti até usa a palavra “elite” em sua recente e “descontraída” crítica à “elite obcecada por política de identidade” no interior do Partido Democrata. Como Enjeti afirma, “as pessoas que povoam nossas redações” também “povoam a classe de gestores profissionais e têm um impacto excessivo em nosso discurso político contemporâneo”. Apesar de ter identificado o problema em torno do uso dominante do termo identitarismo –– qual seja o impacto descomunal de pessoas bem posicionadas em nosso discurso político —, Enjeti transparece ser este um problema específico de uma ala de um partido político. De fato, as dinâmicas subjacentes são tão antigas quanto a própria política e não se limitam a uma política particular de identidade social.
Em 1957, o sociólogo pioneiro afro-americano E. Franklin Frazier publicou seu estudo sobre a classe média negra dos Estados Unidos: Black Bourgeoisie (A Burguesia Negra). Esse trabalho pode ser classificado como um estudo inovador acerca da captura da política pelas elites. Frazier acusa a classe média negra de ser insegura e impotente, constantemente construindo um mundo de “faz de conta” para lidar com o “complexo de inferioridade” gerado pela histórica e brutal dominação racial nos Estados Unidos. Controverso desde sua publicação, o prefácio à edição de 1962 registra que Frazier foi, ao mesmo tempo, aplaudido por sua coragem e ameaçado de agressão.
Um dos argumentos do livro discute a estratégia política de promoção racial adotada ao longo de gerações: o projeto de construir uma economia negra paralela separada dentro dos Estados Unidos. Em 1900, por exemplo, Booker T. Washington organizou a National Negro Business League, reunida pela primeira vez em Boston. A liga foi saudada com entusiasmo e fanfarra; muitos líderes empresariais afro-americanos presentes nutriam esperanças de que esse tipo de iniciativa fosse a solução para erradicar os danos do racismo branco.
Frazier argumenta que a abordagem de Washington, além de equivocada, baseia-se numa análise falha do potencial econômico dos negócios afro-americanos. O patrimônio líquido total de todos os 115 participantes originais não alcançava sequer US$1 milhão. Na época em que Frazier escreveu seu livro, em 1955, se combinados, todos os onze bancos de propriedade de negros nos EUA não somavam o capital de um único banco de porte médio de qualquer pequena cidade branca norte-americana. Simplesmente, não havia suficiente riqueza em mãos negras para que uma economia paralela e separada se “autossustentasse”. Mesmo que a iniciativa conseguisse mobilizar consumidores para adquirir produtos de empresas negras — com os dólares de operários negros das fábricas da Ford, por exemplo —, ainda assim não surgiria uma economia paralela. No entanto, logo após o quinquagésimo aniversário do grupo, a liga reafirmou a sua missão: a pregação do evangelho da fé no black business. Não surpreende que Frazier vislumbre, para os anos 60, a continuação da economia afro-americana como uma doce ilusão, tal qual havia sido na virada do século.
Por que o mito da economia negra como resposta abrangente ao racismo anti-negro sobreviveu, mesmo quando proeminentes empresários negros estavam cientes de que não se tratava de um plano viável? Segundo Frazier, interesses particulares de classe da pequena mas influente burguesia negra sustentaram a ideia. Alguns eram proprietários de empresas esperançosos em desfrutar o monopólio do mercado econômico afro-americano. Outros eram profissionais assalariados — de longe a maior porcentagem da classe média negra da época — interessados em trabalhar para empresas de marketing de propriedade de brancos com base em seu suposto conhecimento do poder de compra inexplorado dos negros. De qualquer forma, a National Negro Business League promoveu um ponto de vista que encorajou as pessoas a enfrentar o complexo problema da hegemonia branca no campo da política, cultura e economia com a premissa mítica de que os negros poderiam escapar da dominação através do consumo e do investimento.
Frazier reserva suas críticas mais contundentes à imprensa negra, “o principal meio de comunicação que cria e perpetua o mundo do faz de conta para a burguesia negra”. Apesar de reconhecer as contribuições de publicações negras como o Chicago Defender e o Frederick Douglass’s Paper, ele insiste que a “demanda da imprensa negra por igualdade para o negro na vida americana está preocupada principalmente com as oportunidades que irão beneficiar economicamente a burguesia negra e melhorar o status social do negro”. O controle da elite sobre a proeminente mídia negra promoveu os interesses particulares de um subgrupo à revelia da maioria dos negros. Como exemplo, Frazier observa que o jornal negro Journal and Guide de Norfolk, Virgínia, celebrou a eleição de um médico negro para a presidência de uma afiliada local da American Medical Association — apesar de ele ter se oposto à “medicina socializada,” o que sem dúvida teria beneficiado os afro-americanos da classe trabalhadora.
Frazier conclui que, seja na imprensa negra ou no mundo dos negócios, “a burguesia negra não mostrou interesse na ‘libertação’ dos negros” — isto é, a menos que “isso afetasse seu próprio status ou aceitação pela comunidade branca”. Em todas as oportunidades, “a burguesia negra explorou as massas negras tão cruelmente quanto os brancos”. Frazier, certamente, exagera nessa afirmação, mas seu livro evidencia um fenômeno comum.
Para uma melhor compreensão dessa dinâmica, podemos usar como referência o trabalho sobre jogos do filósofo C. Thi Nguyen. Como ele explica em seu novo livro Games: Agency as Art (2020), confundir o mundo real com a estrutura cuidadosamente incentivada dos mundos dos jogos pode levar a um fenômeno que ele chama de “captura de valores”, um processo pelo qual progressivamente substituímos ricos e sutis valores por versões simplificadas destes mesmos valores assimilados em nossa vida social. Nguyen é cuidadoso ao indicar que a captura de valores não requer a intervenção deliberada ou calculada de ninguém, apenas um ambiente ou estrutura de incentivos que assegure uma intensa clareza artificial na relação entre valores e ações.
Nguyen não mencionou que outro risco de “gamificar os valores” é a distribuição desigual de poder entre os participantes. Afinal, fora do mundo dos jogos, o desequilíbrio de poder determina os cenários. A captura de valores é conduzida pelas elites, propositalmente ou não. Em outras palavras, as elites não somente participam de nossa comunidade; suas decisões ajudam a estruturá-la, da mesma forma que os designers de jogos estruturam o mundo dos jogos. Afinal, as elites enfrentam uma versão mais simples da opressão do que os grupos subalternizados: enquanto os negros da classe trabalhadora são afetados pelo desprezo racial, pauperização e problemas econômicos que talvez necessitem de uma “medicina socializada” para resolvê-los, a posição econômica das elites as deixa confortáveis o suficiente para concentrarem-se em seu próprio status e poder cultural — muitas vezes às custas dos subalternizados.
Em seu livro From #BlackLivesMatter to Black Liberation (2016), Keeanga-Yamahtta Taylor fornece um exemplo revelador. O apoio da bancada negra do Congresso americano (Congressional Black Caucus) à lei anti-abuso de drogas de Ronald Reagan de 1986 contribuiu para acelerar o encarceramento em massa ao estabelecer uma condenação mínima obrigatória e assegurar US$ 1,7 bilhão para “a guerra às drogas”, enquanto os programas de bem-estar eram cortados. O apoio a essa legislação permitiu que as elites negras do Congresso parecessem realmente envolvidas com a resposta à epidemia de crack. Mas com a aprovação da lei, a classe trabalhadora negra passou a enfrentar dois problemas interligados: a epidemia de drogas — não resolvida por essa legislação draconiana — e o uso racista da lei desencadeado pela própria legislação. Em Crack (2019), uma narrativa histórica deste período, o historiador David Farber cita a surpreendente avaliação do senador democrata Daniel Patrick Moynihan:
“Se colocarmos a culpa do crime no crack, nossos políticos ficarão fora do radar. Esquecidas, as escolas fracassam, são nefastos os programas de bem-estar, abandonam-se os bairros, perdem-se os anos. Só o crack é o culpado. Somos levados a pensar que, se o crack não existisse, alguém em algum lugar receberia verba federal para desenvolvê-lo.”
Tal captura pela elite ameaça a estrutura de valores de todo um grupo, pois seus membros acabam sendo confrontados por esta simplificação dos seus valores fundantes e incentivados a adotá-la. Com o tempo, isso pode levar à mudança na compreensão dos valores desse mesmo grupo — tanto por seus membros quanto por outras pessoas externas a ele — em direção à visão simplista das elites.
Há, ainda, uma outra percepção construída através da aplicação da analogia dos jogos à nossa discussão sobre a apropriação pela elite. As decisões relativas ao design estruturam o ambiente artificialmente construído de um jogo, incorporando a visão dos designers às decisões que os jogadores devem tomar. De maneira semelhante, o processo decisório das elites determina quais opções estarão disponíveis às demais classes sociais (não-elites). Este é precisamente o papel que a imprensa, influenciadores digitais, o alto escalão militar e os titãs do capital têm em nossas vidas. Ou seja, eles definem as condições de trabalho (e lazer) para o resto de nós.
Isso ajuda a iluminar os desenvolvimentos na política da elite negra desde que Frazier escreveu nos anos 1950. Na época de Frazier, havia diferenças de classe entre os afro-americanos, mas muito poucos negros americanos acumulavam um notável poder político ou nível de riqueza que os assegurasse influência social. Mas isso mudou, como aponta Keeanga-Yamahtta Taylor:
“A transformação mais significativa em toda a vida negra nos últimos cinquenta anos foi o surgimento de uma elite negra, apoiada pela classe política negra, que foi responsável por operar cortes e administrar magros orçamentos em prejuízo dos eleitores negros.”
Essa mudança se demonstrou dramática em Baltimore durante os protestos pelo assassinato de Freddie Gray. Taylor continua: “quando um prefeito negro, governando uma cidade predominantemente negra, ajuda na mobilização de uma unidade militar liderada por uma mulher negra para reprimir uma rebelião negra, estamos em um novo período de luta pela liberdade dos negros.”
A ação política dos negros e negras não é a única a ser capturada pela elite; trata-se de uma característica geral da política, em qualquer lugar e em todos os lugares. Sem maiores problemas, eu poderia concentrar a minha análise no mundo das universidades de elite. Na obra Philosophy of African American Studies (2015), por exemplo, Stephen Ferguson II apresenta um argumento semelhante sobre a apropriação, pela elite, dos estudos raciais — que inclusive devem a sua existência aos movimentos estudantis radicais das décadas de 1960 e 1970, mas, desde então, foram “transformados numa engrenagem burocrática na roda acadêmica controlada pelos administradores, praticamente sem nenhuma contribuição democrática dos alunos ou da classe trabalhadora negra”. Eu também poderia manter a perspectiva geral, mas invertendo o papel da raça e da classe. Por exemplo, em organizações socialistas, concluir-se-ia que brancos também tendem a se apropriar da política do grupo.
Ou, ainda, poderíamos desviar o olhar da raça em direção a um conjunto diferente de características identitárias. No artigo do Buzzfeed You Wanted Same-Sex Marriage? Now You Have Pete Buttigieg, Shannon Keating lamenta a trajetória mainstream da política queer distanciada dos elementos mais radicais tão marcantes na revolta de Stonewall, em 1969, e no ACT UP. Ou refletir como o The Wing, um espaço de coworking que se autodenomina uma “utopia feminina”, explora as mulheres que trabalham para elas.
E, claro, o uso desviante do identitarismo pela elite não se limita aos Estados Unidos. É também um problema saliente na política do Sul Global, onde as identidades nacionais, étnicas e de casta são moldadas por uma mistura instável de história indígena e colonial. A acadêmica da área dos estudos da paz, Camilla Orjuela, argumenta que, do Sri Lanka ao Quênia, a política em sociedades multiétnicas do Sul Global facilmente cai em ciclos de espera para que as elites aloquem recursos com base em critérios explicitamente étnicos e regionais. Afinal, as elites de todos os outros grupos étnicos farão o mesmo quando estiverem no poder. O jornalista John Githongo descreve essas elites étnicas como “criaturas do mecenato e […] tráfico de influência” que tratam o Estado como uma escada para seus próprios objetivos, em vez de uma instituição de responsabilidade coletiva. Essas vertentes conceituais são vividamente ilustradas pela história dos ditadores haitianos apoiados pelos EUA, “Papa Doc” e “Baby Doc” Duvalier . Os Duvaliers cinicamente usaram tropos retirados da religião Vodu, popular entre as camadas pobres do país, para intimidar os cidadãos e enriquecerem-se . Ao mesmo tempo, eles desencadearam uma violência indescritível sobre os verdadeiros praticantes de Vodu, temendo o potencial revolucionário da religião, que foi fundamental para acabar com a escravidão na ilha.
O manifesto do coletivo Combahee River parte de uma profunda compreensão do processo de captura pela elite para oferecer uma resposta fundada em princípios. Sua posição foi gestada nas experiências dos movimentos sociais das décadas de 60 e 70. A historiadora Duchess Harris relata que, em 1961, o presidente John F. Kennedy criou a Comissão sobre o Status da Mulher. A comissão estava dividida em quatro órgãos consultivos, um dos quais era a Consulta sobre as Mulheres Negras. Estas iniciativas se desenvolveram e se multiplicaram; a terceira Conferência Nacional das Comissões sobre o Status da Mulher deu origem à reunião que fundou a Organização Nacional para Mulheres (NOW), cujas fundadoras esperavam que servisse como uma espécie de “NAACP” para mulheres. No entanto, a NOW falhou em cumprir essa promessa de tratar a questão racial com seriedade — e as organizações nacionalistas negras falharam igualmente em abordar as questões de gênero. Como resultado, ativistas, incluindo Shirley Chisholm e Alice Walker, formaram, em 1973, a National Black Feminist Organization (NBFO). Em 1974, a jovem ativista Barbara Smith conheceu Demita Frazier depois que ela começou a trabalhar para construir uma filial da NBFO em Boston. A dupla concordou com muitos objetivos da NBFO, mas também queriam uma organização que pudesse discutir o tema da “economia radical” mais livremente e garantisse voz para as lésbicas. De uma reunião de quatro pessoas começou o coletivo Combahee River: um coletivo político socialista e feminista negro. De 1977 a 1980, elas realizaram sete retiros com outras ativistas, aos quais compareceram ativistas veteranas de Boston com a mesma mentalidade, e até mesmo Audre Lorde.
As experiências que uniram essas mulheres –– ao terem suas prioridades políticas sistematicamente postas de lado ou desvalorizadas em diferentes organizações — resultaram na postura que desenvolveram e que batizaram de identity politics (identitarismo). Smith explicou suas motivações dizendo: “Nós, como mulheres negras, tínhamos realmente o direito de criar prioridades políticas e agendas e ações e soluções com base em nossas experiências” — uma agenda política baseada em suas experiências e seus interesses, não como token de mulheres brancas ou como secretárias de líderes e dirigentes negros, e com toda a complexidade de seus valores em vista, não uma caricatura degradada e disforme deles.
Um problema central com a apropriação é que o subgrupo de pessoas com poder e acesso aos recursos que são usados para descrever, definir e criar realidades políticas — em outras palavras, as elites — são substancialmente diferentes do conjunto total de pessoas afetadas pelas decisões que são tomadas. Como a parte do grupo mais próxima do poder e dos recursos, eles são normalmente a parte cujos interesses se distanciam dos interesses comuns da maior parte do grupo. Na ausência de freios ou restrições, eles irão capturar os valores do grupo, forçando as pessoas a se associarem a um projeto social mais restrito do que o grupo faria se o poder fosse distribuído de forma diferente. Quando as elites comandam o show, os interesses do “grupo” são reduzidos ao que eles têm em comum com os que estão no topo.
Vista como uma resposta a esse tipo de problema, a visão de Smith sobre o identitarismo, ela afirma, não foi uma alternativa oposta à coalizão política, mas uma condição para que essa existisse. O Combahee River enfatizava as diferenças individuais não como um fator decisivo para a participação na luta, mas sim para revelar as limitações na definição da escala e escopo tanto dos problemas como das respectivas soluções.
Posto dessa forma, faz mais sentido que Frazier tenha aplicado a sua crítica à burguesia negra também ao mundo dos negócios, à mídia e à cultura popular. Isso também esclarece por que a captura pela elite não é um problema exclusivo do identitarismo. Se a captura se resumir à maneira como o poder e os recursos tendem a ser distribuídos dentro dos grupos, e não simplesmente entre os grupos, então trata-se de um problema comum da política num mundo que distribui poder e recursos de maneira injusta e desigual. As elites controlam as ideias em circulação acerca das identidades pelos mesmos métodos e pelas mesmas razões que elas obtêm controle sobre todo o resto.
No prefácio à edição de 1962 de Black Bourgeoisie, Frazier sinaliza um grupo chave que ele decerto consideraria caso escrevesse o livro novamente: os participantes das manifestações e outros movimentos sociais contra a segregação racial. Quando instigado por um editor a imaginar uma elite negra alternativa que não merecesse a crítica contundente que ele fez à atual, esses ativistas serviram-lhe de resposta.
Isso é um começo, mas não o suficiente. Como o coletivo Combahee River reconheceu, apenas ser ativista não garante que desenvolveremos o tipo certo de cultura política; suas fundadoras eram veteranas de importantes movimentos políticos radicais que, no entanto, se desviaram ao longo do caminho. As elites precisam se envolver — realmente se envolver — mas esse envolvimento precisa resistir à captura de valores pela elite e à gamificação da vida política.
Estamos diante de uma situação complexa, mas felizmente não estamos começando do zero: temos uma rica história para nos inspirar. Na década de 1960, as feministas realizavam reuniões regulares, em casas e apartamentos, para discutir desigualdade de gênero de uma forma considerada tabu para organizações mistas da época. Um conjunto de diretrizes para o “aumento da consciência”, elaborado por Barbara Smith e suas colegas ativistas Tia Cross, Freada Klein e Beverly Smith fornece um exemplo do modelo de identitarismo que o Combahee River projetou. O exercício começa pedindo aos participantes que examinem suas próprias deficiências (“Quando você percebeu que tratava pessoas de cor de uma maneira diferente?”), mas termina questionando como elas podem usar uma opressão sofrida por todas como uma ponte para unir as pessoas diferentes (“De que maneiras a opressão lésbica compartilhada poderia ser usada para construir conexões entre mulheres brancas e mulheres de cor?”). Porque, no fim das contas, estamos nisso juntos — e, do ponto de vista do identitarismo, essa é a razão de fundo.
Traduzido do original em inglês por Waldemar Oliveira.
As fotografias que ilustram o artigo são de Sandra Eleta (1942-)
Acho que o problema maior do identitarismo não é sua captura e desvirtuamento pelas elites econômicas ou políticas, como o texto leva a crer, e sim intrínseco ao próprio identitarismo como forma de 1) demanda e de 2) organização, pautadas em critérios (muitas vezes biológicos) de identidade, de vivência etc.
Com isso não quero ressoar um velho bolchevismo e dizer que é preciso ter demandas ou formas de organização classista, mas que as lutas anti-opressão (de gênero, raça, sexualidade e outras formas de identidade) precisam ser críticas, ou seja, observar a raiz dos problemas de opressão e de exploração, e essa raiz passa necessariamente pela esfera econômica das estruturas de exploração capitalista.
Mesmo que se torça o nariz para isso, por conta de lembrar o trato histórico stalinista das questões identitárias como se fossem questões de perfumaria, secundárias etc., é possível e necessário que os militantes e pessoas preocupadas com as questões de identidade, preconceito e discriminação observem os resultados práticos e reais das lutas, formas de organização e demandas identitárias, e nas últimas décadas estes resultados, sem sombra de dúvida, têm sido o fortalecimento do capitalismo, ao mesmo tempo em que tem sido inócuo o combate ao machismo, racismo, sexismo.
Pior ainda, as formas de organização identitária, tal qual existem (e não após alguma apropriação ou “desvirtuamento”, nem nada do tipo) têm reforçado a separação entre sujeitos que deveriam estar lutando juntos por causas semelhantes, potencializando a capacidade de resistência específica a cada uma dessas causas anti-opressão e anti-exploração. Ao invés de união e reforço das lutas, com trabalhadores e trabalahadoras e brancos e negros e homens e mulheres e gays e heteros formando juntos novas relações sociais e de resistência, o que temos é o enfraquecimento das lutas desses trabalhadores, seja nas pautas classistas, seja nas pautas identitárias, que inclusive se colocam como pautas autoexcludentes entre si. Embora em sua origem houvesse intenções de luta conjunta e não sectária, há décadas o identitarismo opera de modo nefasto e destrutivo para as lutas dos trabalhadores e trabalhadoras. Não é preciso nenhum desvirtuamento ou apropriação por parte das elites, o identitarismo é em si mesmo um caminho errado construído pela esquerda.
O identitarismo é a própria organização sectária das lutas, visando a colocação hierárquica de seus membros, tanto internamente ao grupo, nas disputas por liderança e status, quanto externamente, no mundo econômico e político, nas disputas por melhores colocações nas estruturas de poder, ou seja, o identitarismo é essencialmente uma forma de organização formadora de gestores coloridos, o que beneficia não apenas as novas elites que daí surgem, mas essencialmente reforça a posição das empresas capitalistas e dá legitimidade à exploração capitalista. Trata-se, para os trabalhadores e trabalhadoras, infelizmente, de um inimigo interno, e digo infelizmente porque as pautas anti-opressão são absolutamente incontornáveis para qualquer um que centre sua atuação em pautas anti-exploração.
Não é possível uma revolução contra o capital que não seja também uma revolução contra o machismo, sexismo e racismo, porém as principais formas existentes de manejo das chamadas “questões de identidade” e “agenda da diversidade” são hoje identitárias, o que significa que não possuem capacidade alguma de confluírem em lutas radicais que efetivamente contestem o racismo, machismo e sexismo. Pelo contrário, contribuem para a manutenção e reforço dessas estruturas opressivas de raiz profunda, enquanto tão somente operam uma ascensão de novas elites negras, lgbt e femininas.
Artigo bem interessante. Nessa linha, como/onde vocês enquadrariam este fato recentíssimo, desdobramento imediato do incêndio no Borba Gato? Conquista ou captura? Avanço na disputa pelo simbólico, ou retrocesso na institucionalização e monumentalização buscando incorporar e neutralizar significados históricos e ímpetos de revolta?
“Geraldo Filme, Carolina Maria de Jesus e outras personalidades negras ganharão estátuas em São Paulo” – https://www.geledes.org.br/carolina-de-jesus-geraldo-filme-e-outras-personalidades-negras-ganharao-estatuas-na-cidade-de-sp/
REVIVAL
Dupla walking dead: Pareto & Mosca…
pela matéria do Geledes que o Incendiário compartilhou em seu comentário, ficamos sabendo que o artista que fez a estátua do Borba Gato, o genocida racista misógino, é também o responsável pela única estátua de uma mulher negra em São Paulo. O detalhe é que isso não é mencionado na matéria.
Após um destrambelhado incêndio de uma estátua, que apenas para letrados simbolizava algo e nem de longe afrontou forças políticas em disputa atual (como por exemplo rasgar uma placa de rua de Marielle Franco no calor das eleições, ou urinar e pixar nas estátuas de Rosa e Liebknecht no pré-nazismo), um incêndio que demais não a destruiu e resultou na prisão dos incendiários, avança um preexistente projeto de lei visando a implantação de algumas poucas estátuas de mulheres e negros de relevância cultural, em São Paulo. Diante de tal, vem um sujeito de sorriso de canto de boca se perguntar se tal fato constitui uma conquista ou captura, na “disputa pelo simbólico”. Provável ainda que o sujeito considere que a pergunta foi perspicaz, visto que ngm o respondeu. Quando a derrota material e política é aceita resta disputar o simbólico, o discursivo, o irrelevante.
Quando um não quer, dois não disputam perspicácia. Até porque, de inteligentes superperspicazes a irrelevância está cheia. De resto, miserável é o pensamento supostamente crítico que não encara certas complexidades e suas contradições onipresentes, por maiores ou menores que possam parecer/ser, e acredita que a retumbante derrota material e política em que estamos todos metidos não tem nada a ver com a disputa também pelo simbólico. Ou que a disputa por certos simbólicos seja irrelevante para avançar em reais conquistas materiais, sociais e políticas – historicamente. Enquanto isso, a extrema-direita e o bolso-fascismo brasileiro mobilizam diuturnamente símbolos e discursos em massa que nos incendeiam concretamente a todos, da Praça dos Três Poderes (com STF, com tudo) a mais de 600 mil vítimas num genocídio em curso, biomas inteiros num ecocídio também em curso – em um Brasil Paralelo do simbólico, até aqui, indisputado. Um domínio soberano. Mas só nos resta acatar aos velhos ou novos guias inteligentes dos povos, ainda q com um choro no fundo da boca, um nó na garganta, pés, mãos e demais revoltas atadas. (sentimentos, ademais, também irrelevantes, de pessoas e coletivos de uma estupidez monumental, com quem não há qualquer relevo se comunicar nem construir de forma alternativa absolutamente… nada). Reste-se em paz.