Por Eraldo Souza dos Santos

As impurezas do branco nos permitem entrever um Drummond às voltas com os desafios poético-políticos postos pelo golpe de 1964, pelo AI-5 e pela vida sob o regime militar. Mas, apesar (ou talvez precisamente por causa) da seriedade do contexto, é em tom irreverente que, no poema que abre o livro, o eu lírico se dirige “Ao Deus Kom Unik Assão”:

Senhor! Senhor!
De nosso poema fazei uma dor
que nos irmane, Manaus e Birmânia
pavão e Pavone
pavio e povo
pangaré e Pan
e Ré Dó Mi Fá Sol-
apante salmoura
n’alma, cação podrido.

Haveria, aqui, para além do deboche, da blasfêmia e das aliterações entre “m” e “n”, algo que, de fato, nos irmanasse, como reza a prece, Manaus e Birmânia, Brasil e Mianmar? Algo que reavivaria, em 1973, o abraço que parecia haver se desfeito permanentemente em 1945, abraço que, nas palavras d’A rosa do povo, permitiam ao eu lírico,

homem da roça, percorrer a estepe,
sentir o negro, dormir a teu lado,
irmão chinês, mexicano ou báltico?

Em 1964, a Birmânia já havia sofrido um golpe militar há dois anos e vivia sob um regime militar há seis. Em 1973, ano de publicação d’As impurezas do branco, era aprovada uma nova constituição no país asiático, constituição que consolidaria o poder dos militares por décadas na vida política birmanesa.

Hoje, tanto o Brasil quanto a Birmânia veem os militares ocuparem novamente um espaço cada vez maior em seus governos. Quando, em fevereiro deste ano, mais um golpe foi declarado na Birmânia após dez anos de transição democrática frágil, o receio de que apenas a participação ativa no governo não bastaria aos militares birmaneses se confirmou.

Um dos debates-chaves que vem ocupando a intelligentsia brasileira nas últimas décadas se resume, nesse sentido, a uma frase: O que resta da ditadura? E se, para além de todas as polêmicas, há algo que parece, de fato, haver restado da ditadura no Brasil são os militares – e sua presença sempre latente nas instituições políticas brasileiras.

Em Aristóteles e a política, Francis Wolff busca mostrar que para o filósofo grego não se tratava de afirmar que é melhor que o povo governe, mas que o povo governa melhor. Para muitos hoje, trata-se antes de mostrar que os militares governam melhor do que o povo – e que governam melhor para o povo se governam sem ele.

A pandemia pôs à prova, como já se disse ad nauseam, a capacidade de governar de líderes políticos ao redor do mundo. Um de seus momentos mais trágicos no Brasil, a crise do oxigênio em Manaus, colocou em jogo mais uma vez a ideia de que um governo de militares é um governo modelo e de que o melhor regime possível é um regime militar.

Hoje, a Birmânia sofre sob uma constelação semelhante. Centenas morrem nas ruas e hospitais do país devido à falta de oxigênio. A junta acusa a oposição de haver comprado todo o oxigênio disponível no mercado com o objetivo de agravar a crise. Dificulta ou impossibilita a chegada de ajuda humanitária nas regiões mais afetadas pela pandemia. Cria emboscadas para prender profissionais da saúde que participam do Movimento de Desobediência Civil contra o golpe. Pede ao povo que, na falta de oxigênio, entoe mantras budistas para afastar o vírus de suas casas.

Em suas manifestações e passeatas, diárias apesar da repressão constante, os ativistas do Movimento de Desobediência Civil mostram que, para além da tendência liberal de conceitualizar o caráter civil da desobediência como civilidade e decoro, o que é essencial à desobediência civil é seu caráter não-militar e antimilitar.

Não por acaso era assim que a administração britânica categorizava os movimentos populares contra seu império na África e na Ásia: movimentos que não somente não eram organizados por militares e que não somente se dirigiam contra forças de repressão militarizadas, mas que deliberadamente recusavam a maneira como a resistência militar se organizava, experimentando novas formas de luta.

Hoje, após séculos de opressão colonialista, imperialista e capitalista, a dor mais pungente que nos irmana, Manaus e Birmânia, para além das aliterações do poeta, se expressa por um nome: militarismo. E o desafio que se apresenta diante de nós, birmaneses e brasileiros, brasileiros com birmaneses, é pensar que formas essa desobediência civil, desobediência dos civis, deve tomar contra o militarismo que estamos enfrentando.

Eraldo Souza dos Santos é doutorando em filosofia na Universidade Paris I Panthéon-Sorbonne.

Ilustração de Bruno Lanza feita especialmente para o texto, reproduzindo o verso de Drummond em português e birmanês.

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