Por ocasião do início das atividades da Convenção Constituinte no Chile, um dos resultados mais relevantes do ciclo de lutas iniciado em Outubro de 2019, entrevistamos o professor e pesquisador Alexis Cortes a respeito deste processo.

Passa Palavra: Sobre o Estallido de 2019, o que aconteceu? Você poderia recapitular um pouco do que aconteceu no Chile? [estallido significa “estouro”, “explosão” em espanhol]

Alexis Cortes: Bom, tendo passado já um tempo, é melhor pensar “no que começou a acontecer”. A primeira coisa que eu diria é que Estallido é o nome que ficou, mas provavelmente não há um termo que descreva o que começou a acontecer.

Estallido, traduzido, quer dizer estouro. Ou seja, em um momento só acontece uma explosão, e essa, normalmente, se estabiliza com o tempo. Mas o que vimos foi o início de um ciclo de mobilizações muito amplo, muito profundo, que reconfigurou a paisagem política chilena a partir desse momento e que só foi se interromper – pelo menos em sua expressão mais clara, através da ocupação das ruas – quando começaram as políticas de restrição por conta da pandemia.

A metáfora que eu mais utilizo para tentar compreender esse momento é a da explosão vulcânica. Porque primeiro permite apreciar um elemento mais curto da mobilização, telúrico, que não é visível a olho nu, que está operando e gerando uma pressão, e que num determinado momento consegue se agrupar de uma maneira que é muito arrasadora. É uma explosão que tem uma capacidade de destruição muito forte.

O Chile tem uma capacidade de destruição, de manifestação, de conflito e de violência muito forte, mas essa mesma força, ao longo do tempo, vai se estabilizando. O magma, que é um elemento telúrico incandescente, vai esfriando e vai se enrijecendo e construindo novas paisagens ao redor. O solo vulcânico é mais propenso para emergir faíscas, para emergir novas coisas.

Acho que é isso o que aconteceu. O termo estallido não nos permite compreender que há uma pré-história, que há forças que estavam operando desde muito antes e que produzem uma pressão tão forte que em alguns momentos isso tem que se esvair.

O estallido começa por um aumento na tarifa da passagem do metrô. O transporte público chileno, sobretudo em Santiago, é um dos mais caros do mundo e ao mesmo tempo é um dos que mais gera insatisfação. O metrô sofreu muita pressão, foi muito forçado porque quando foi feita a grande reforma do transporte metropolitano, o metrô foi o que recebeu o maior peso na suas costas, e então o seu serviço foi se deteriorando. E é claro, 30 pesos [1] parece pouco, mas se você faz a conta em dinheiro, você percebe uma acumulação de aumentos de tarifas que leva a uma indignação. Representa uma parcela relevante da renda de uma família trabalhadora de Santiago, mas é claro que não era só por isso.

Fizeram um mural que creio que representa muito bem o que está acontecendo. Nele estava escrito que “o Neoliberalismo nasce e morre no Chile’’. E você se pergunta como o neoliberalismo nasce e morre por centavos, um pouco como ocorreu em 2013 no Brasil, levando a uma mobilização que define a nova Constituição do país.

A questão do transporte público é algo muito sensível, que retrata, de uma certa forma, que a democracia que foi construída no Chile é uma democracia que foi tirando, sistematicamente, os âmbitos de deliberação coletiva, que foram sequestrados pela pequena burocracia, porque quem definiu a questão do transporte coletivo foi uma operação matemática.

O neoliberalismo começa a ocupar todos os âmbitos da vida social, desde que você acorda até o momento em que você volta do trabalho, ou desde o momento em que você nasce até o momento em que você morre, e as pessoas assim vão vivendo a sua vida, a sua biografia, e o que melhor retrata isso é sua aposentadoria.

Houve uma crise dramática no país. Para você ter uma noção, a metade do país ganha menos que 500 mil pesos (algo como 800 dólares), e a maior parte dos aposentados não ganha um salário mínimo. A maior parte nem consegue poupar o dinheiro que ganha.

Junto com isso, a democracia foi perdendo pouco a pouco sua capacidade para gerar uma intensificação da participação, porque se manteve um poder de veto muito forte dos empresários, que atualmente têm uma participação direta sobre as políticas, financiando suas campanhas e influenciando os projetos de lei. Houve escândalos que mostraram tudo acerca do campo empresarial, que foi a grande pauta reivindicada nas manifestações. Esses escândalos mostraram a conivência entre o sistema econômico e o sistema político para favorecer os interesses do sistema econômico.

E o que mostram as pesquisas prévias é que as pessoas foram perdendo a fé na democracia de um modo geral, e não só na democracia existente no país. E por que isso acontece? Porque as pessoas tendem a atribuir à democracia a conquista da justiça social. E o que a gente viu nestes últimos 30 anos foi um aumento da desigualdade social. Aliás, ela diminuiu no último período, de forma leve, mas é percebida de uma maneira muito pior pela população. Ela é percebida de outra maneira. Por exemplo, os abusos cotidianos. Isso se expressa numa justiça para ricos e outra justiça para pobres. Esses grandes esquemas de corrupção no mundo empresarial, cartelizando preços por exemplo do frango, do papel higiênico, dos alimentos de um modo geral, foram levemente sancionados, mas quando as pessoas com menos recursos esboçam algum tipo de reação – como por exemplo participar nas manifestações, são gravemente castigadas.

PP: Nesse ambiente de revolta contra todas essas coisas que, como você disse, estavam sendo acumuladas, e também contra certo laço social da democracia – como você disse, as pessoas perderam a fé -, como uma pandemia impacta na cabeça das pessoas que estavam todos os dias na rua para protestar contra um sistema?

AC: A pandemia, eu acho, veio para confirmar boa parte do diagnóstico mobilizador das manifestações. A grande questão do Chile é a desigualdade, e a pandemia, como você bem sabe, evidenciou muito esse diferencial, por meio das consequências dela. Por isso surgiu a frase “não estamos no mesmo barco, estamos na mesma tormenta”.

No Chile, a prevalência da doença e os índices de mortalidade aumentam nos setores de menor renda, e as mortes no sistema público dobram em relação ao sistema privado, as condições de comorbidade eram muito mais prevalecentes nos setores de menor renda, como obesidade, má-nutrição, hipertensão, diabetes.

E uma outra coisa é que as mobilizações só poderiam ter sido interrompidas por alguma ação maior ligada à saúde coletiva, à saúde pública. E você pode ver que, embora tenha havido algumas tentativas de mantê-las, as mobilizações ficaram em pausa.

Eu lembro muito bem de uma coisa foi escrita na rua, que é “Viviremos, volveremos, venceremos” , ou seja, nós estamos dando uma pausa e voltaremos para a rua em um outro momento. Mas na verdade isso se intensificou porque, já que a pandemia evidencia a desigualdade, uma pobreza que não é tão visível no Chile, que não se vê das vias rápidas e modernas, por exemplo no caminho do aeroporto até um bairro com os melhores hotéis, começou a aparecer. O Ministro da Saúde deu uma declaração do tipo “A gente não sabia das condições nas quais moravam a maior parte da população’’. Ou seja, com fome, com alta densidade nos bairros onde moram, com pouco acesso a condições de segurança.

Então a fome reapareceu. E começou-se a ir às ruas na periferia, mobilizando contra a fome. Ficaram na disjuntiva entre “ou você morre do vírus ou você morre de fome’’.

Então, muito da organização que começou a ser criada num momento de mobilização de Outubro de 2019 se reciclou enquanto um espaço de solidariedade. Algumas coisas que se fizeram presentes no momento da ditadura, como a olla común (ou “cozinha solidária”), compras coletivas, iniciativas de apoio mútuo, começaram a reaparecer e a se multiplicar, dando uma nova oportunidade à organização territorial que começou a aparecer e se consolidar durante Outubro de 2019.

PP: O que você acha que aconteceu com esse tipo de rede ou mobilizações territoriais no contexto da Constituinte? Você poderia dizer que isso se expressou de alguma forma? Como é que a Constituinte esteve relacionada com essa organização mais “molecular”?

AC: Bom, só temos Constituinte porque houve conflito social. Se não tivesse tido uma pressão popular através da mobilização, jamais teria sido aceita a derrubada do último grande cadeado da institucionalidade daqui. A Constituição que estava em vigor no Chile, diferente de todas as Constituições vigentes na América Latina, praticamente não garantia direitos. Não estabelece a obrigação do Estado de garantir direitos. O que garante é que o Estado não vai atrapalhar a possibilidade de escolha que foi dada.

Então, não é que a pessoa acha que a Constituição vai mudar por milagre a situação dela. Mas pelo histórico constitucional dos últimos 30 anos, principalmente dos últimos, e a pandemia também contribuiu para isso, faz-se concluir que a Constituição é o grande marco para gerar transformações sociais.

Quando a centro-esquerda começou a ganhar um número de parlamentares capazes de levar em frente as transformações que seu governo prometia, ficou claro que não era suficiente ter maioria parlamentar, não era suficiente ganhar um governo, porque a direita sempre apelava ao Tribunal Constitucional, que atuava como uma “terceira câmara’’ contra-majoritária, cuja a função era proteger o poder econômico de desproteção social.

O momento que estamos vivendo agora só foi possível não porque a direita e os setores mais ligados à centro-esquerda estivessem convencidos da necessidade da transformação constitucional. Porque se não isso já teria ocorrido no governo da Bachelet, no projeto de Constituinte que acabou não vingando. E também, é claro que aquele projeto foi um ato simbólico, havia partidos que não tinham interesse em promulgar a Constituinte. Acharam que era uma demanda muito longe do que os cidadãos esperavam, mas a mobilização colocou isso no centro. Era uma demanda central a nova Constituição.

No caso da eleição de Maio, o primeiro plebiscito, em que uma grande porcentagem da população era a favor de uma mudança constitucional, apenas 20% se contrapunha, era comum essa posição em alguns bairros, eram cinco bairros onde se concentra a elite econômica e dois que concentram militares e que são contra a reforma constitucional. E depois, quando se elegeu a Constituinte, era muito provável que toda a força da direita se aliasse aos partidos mais de centro, apontando que a direita sempre tem essa possibilidade de, em algum momento, atrapalhar o processo.

O ponto central era conseguir os 2/3 dos votos, necessários para aprovar qualquer proposta. Qual era a força da direita? Era ganhar ao menos 1/3. Porque a Convenção Constituinte foi pensada como uma réplica do Congresso, embora durante o governo aconteceu uma reforma eleitoral muito importante que favorecia a direita e a centro-esquerda e que, simultaneamente, excluía os setores mais críticos, mais de esquerda, para um sistema proporcional. Mas mesmo assim, nesse sistema proporcional, como a direita é mais disciplinada ela consegue ter uma sobre-representação.

Porém, à diferença de outros processos de mobilização, teve uma sincronia muito maior entre a crítica social das mobilizações por um lado, e a capacidade de expressar eleitoralmente essa crítica, por outra. Então o grande resultado da eleição da Constituinte foi que a direita, mesmo se unindo mais do que nunca, porque incluíram nessa coligação até a extrema-direita, não conseguiu 1/3 dos votos. O que se expressou também na eleição municipal.

PP: O que aconteceu com a direita no Chile? Porque a gente vê que a direita cresce em outros países da América Latina. Por que vemos, no Chile, o que pareceria ser uma dissolução da direita? Parece que ela tem cada vez menos poder.

AC: No Chile, os processos de crítica ao neoliberalismo são bem mais tardios. No Chile, o modelo foi imposto durante a ditadura, mas durante a transição democrática parecia algo que não era possível de mudar. Então veio uma certa identificação da centro-esquerda com esse ideal. Nesse contexto, construíram uma democracia de acordos entre a direita e a Concertación [frente político de centro-esquerda, Concertación de Partidos por la Democracia] que inaugurou uma arquitetura institucional que sempre favoreceu a direita. A direita então teve um peso muito maior do que o que ela representava.

E essas mobilizações e as últimas votações permitiram mostrar o que a direita realmente é. Ela se encontra numa parcela muito específica da sociedade, geograficamente, você consegue marcar num mapa.

A direita chilena é em boa parte pinochetista, nunca ocultou isso, diferente do Brasil onde por muito tempo houve uma direita “escondida’’, que só se manifestou mais claramente com a eleição do Bolsonaro, e aí você se pergunta: “por que não pode haver um Bolsonaro no Chile?“ No Chile há um partido direitista, neoliberal, que tinha uma postura institucional – não outsider, como o Bolsonaro -, e a experiência dessa direita no poder acho que contribuiu com a desmitificação da figura do empresário bem-sucedido como o ideal com o qual as pessoas podem se identificar.

Você tem uma direita que se opôs ao reconhecimento igualitário dos filhos nascidos em qualquer família – havia uma figura legal de “filho legítimo” e “filho ilegítimo’’, quando se nasce fora do matrimônio – e a direita se opôs a mudar isso. A direita se opôs à lei do divórcio, a direita se opôs à educação sexual nas escolas. Depois ela se opôs ao aborto, se opôs a qualquer programa social. Houve um bloqueio permanente a essas pautas, e isso foi castigado nas últimas eleições.

 

PP: Algo que se viu muito nas fotografias e nos vídeos das mobilizações eram as bandeiras mapuches, inclusive nas grandes cidades como Santiago. Eu queria perguntar como você entende essa relação da figura dos mapuches no estallido. Como você diria que é o vínculo dos manifestantes com essa bandeira, e qual a relação que isso tem com o movimento de luta dos mapuches em suas comunidades?

AC: Bom, o primeiro que eu diria é que o retorno democrático – por mais que a gente possa ser crítico dele, é democracia. Você tem o direito de se manifestar, você tem os direitos mais ou menos garantidos. Mas eu diria que a ditadura nunca acabou para os povos mapuches. Isso foi transversal, se deu tanto em governos da direita como da centro-esquerda. Os mapuches foram absolutamente reprimidos, criminalizados, excluídos.

O governo Piñera começa com o assassinato, por parte do comando militarizado da polícia, treinado na Colômbia, de um porta-voz de uma comunidade mapuche, que foi apresentado como um enfrentamento. Foi um assassinato com encobrimento. Nesse encobrimento se tentou forjar um enfrentamento.

Eu acho que havia uma forte presença das bandeiras mapuches durante o estallido – porque o que mais se via eram bandeiras mapuches e bandeiras chilenas de luto – pois funciona como uma metáfora dessa identificação do povo chileno com um povo maltratado e difamado durante toda a história do nosso país.

Durante o estallido os chilenos começaram a ser tratados como mapuches. É como aconteceu em Junho de 2013, quando começou essa repressão crua nas ruas. As pessoas estavam sendo maltratadas como nas favelas, acho que essa é uma relação que pode servir para representar isso. Esse povo maltratado, reprimido, violentado… que sofre e é abusado. Era uma metáfora de todos os chilenos.

E um detalhe, hoje ocorreu a instalação da Constituinte e, para mim, e acho que para grande parte do país, foi muito emocionante pelo seguinte: quem foi eleita para presidir a Convenção é uma mulher mapuche, uma representante do povo mapuche, acadêmica, uma voz muito poderosa do resgate da língua mapuche. Então essa bandeira que estava nas ruas, hoje encabeça os trabalhos da Convenção Constituinte.

E realmente é uma situação que permite a reivindicação desse povo maltratado, desse povo que agora está começando a refundação de um país onde todos e todas vão ter espaço, onde essa promessa de igualdade perante a lei, de democracia plena, se cumpra. Pra mim é uma cena muito esperançosa, que mostra a ligação entre esses dois acontecimentos: o começo dessa grande revolta social e o início de uma nova Constituição.

Notas

[1] Equivalente a R$0,21 ou U$D 0,04 no dia 02 de Agosto de 2021.

As fotos que ilustram este artigo são das cinzas lançadas pelo vulcão Calbuco em 2015.

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here