Involução: Wildcat sobre a China em 2020 (IV)

Por Wildcat

Este artigo foi publicado originalmente na revista Alemã Wildcat e traduzida para o inglês no blog Chuang. A tradução em português é de Marco Túlio. Leia também a primeira, a segunda e a terceira parte.

A Grande Divisão

Há razões políticas para os altos níveis de desigualdade social na China. Na era Mao, o PCC dividiu a crescente classe trabalhadora em empregados do Estado privilegiados e trabalhadores precários. Quando cerca de 50 milhões foram despedidos das empresas estatais no final dos anos 1990, uma nova camada local de proprietários e patrões privilegiados já tinha surgido nas regiões costeiras. Isto ocorreu porque na mesma década aconteceu a maior privatização de todos os tempos: a do mercado imobiliário da China.

Grupos sociais na China podem ser descritos em termos de sua proximidade ou distância dos centros de poder. O acesso aos recursos sociais e ao poder depende das relações (quadros do partido), dos privilégios locais (Hukou, propriedade da casa) e da proximidade com as áreas metropolitanas ricas. As cidades são oficialmente divididas em graus de 1 a 4, de acordo com o tamanho, desempenho econômico e importância política; Pequim, Xangai, Shenzhen, e Guangzhou são cidades de primeiro nível, outras capitais provinciais são classificadas como de 2º nível, outras cidades importantes são de 3º nível, e assim por diante. [1] O poder e a riqueza estão concentrados nas cidades de 1ª e 2ª grau, onde estão localizados a classe alta (elite do Estado, bilionários) e uma rica camada de funcionários administrativos, proprietários imobiliárias, empresários, gestores comparáveis aos de países industrializados… Mas os professores universitários, os médicos, os professores, trabalhadores (não permanentes) em empresas estatais, bem como a classe trabalhadora local estão em uma situação bem melhor aqui do que em outras cidades. As cidades do 4º nível e abaixo fazem parte da periferia; as cidades do 3º nível podem ser vistas com estando parte no primeiro e parte no segundo grupo. Mais uma vez, há uma classe média e alta local que possui imóveis ou empresas e explora o trabalho local com baixos salários. Nas quatro décadas que se seguiram à “abertura”, a classe operária cresceu enormemente. Centenas de milhões de trabalhadores migrantes vieram do campo ou de cidades sem oportunidades de rendimento suficiente para as metrópoles industriais costeiras. Foram eles que levaram o chinês mandarim para todas as partes do país e o tornaram a língua franca universal (enquanto as elites locais em Guangdong, por exemplo, continuam a se apegar ao seu dialeto cantonês como um sinal de distinção). E só eles têm um interesse material em desmantelar o sistema Hukou e seus privilégios locais, o que lhes nega (cerca de 40% da força de trabalho) e a seus filhos acesso ao sistema de saúde pública e educação no local de trabalho e é diametralmente oposto aos valores igualitários (salário igual) e universalistas (acesso igual à justiça). A maioria dos trabalhadores migrantes não possui nenhum contrato de trabalho. Quando existem contratos de trabalho, estes são frequentemente inválidos ou praticamente inaplicáveis em caso de litígio. O seu contrato de trabalho não vale nada sem o consentimento do patrão, nem o seu contrato de aluguel. Não há normas e leis universalmente aplicáveis para se confiar ao invés da palavra dos seus superiores.

Involução: Wildcat sobre a China em 2020 (IV)

Devido a essas múltiplas divisões, não é nada fácil descrever a classe operária industrial chinesa, pelo menos sociologicamente; aqui estão apenas alguns pontos para tornar a imagem mais clara.

No delta do Rio das Pérolas, os salários dos jovens trabalhadores nas fábricas mais simples começam em 3000 RMB (pouco menos de 400 euros), que sobem depois para 4-5000 ou mesmo 6000 RMB. Os trabalhadores automotivos na ultramoderna fábrica da BMW em Shenyang também ganham apenas 4500, porque a fábrica está situada na antiga zona industrial (rust belt). (Para comparação: assistentes sociais com um diploma de bacharel no delta do Rio das Pérolas às vezes ganham salários iniciais de apenas 4-5000; programadores com um diploma de bacharel em uma empresa de TI alemã também foram contratados por 4500 em 2017). Os salários mais altos são pagos pela VW em Foshan, onde se ganha cerca de 7000 na linha de montagem, técnicos chegam até 10.000 – mas os requisitos de contratação são um grau de faculdade técnica e um Hukou municipal! E ainda assim, a maioria dos trabalhadores da VW dormem dois em um quarto e não podem comprar um apartamento que lhes permitiria viver com sua família. Trabalhadores têxteis experientes podem ganhar até 5000-8000 no delta do Rio das Pérolas ou em Jiangtse (nos últimos anos, muitas fábricas mudaram para o Camboja e Vietnã, onde os salários são muito mais baixos). Alguns salários em empresas estatais são melhores, e você também não pode ser demitido tão facilmente. Mas você só entra através de conexões e tem que pagar vários meses de salário em subornos para ser contratado. No interior do país, os salários são mais baixos.

O trabalho na fábrica ainda é caracterizado por longos dias de trabalho, regimes autoritários com todos os tipos de punições, e o sistema Hukou que torna impossível para os trabalhadores viverem com suas famílias perto de seu local de trabalho. Nenhuma destas três questões foi melhorada. Os trabalhadores da Foxconn que conheci através de aulas de inglês estavam fazendo todos os tipos de coisas para sair da fábrica: além de aprender inglês (para trabalhar com marketing ou vendas), eles estavam tirando carteira de motorista (motoristas de táxi), ou tentando obter empregos como agentes imobiliários.

Nas antigas fábricas estatais, estas três questões eram ou são melhores. Mas aqui os gestores falharam completamente em aumentar a produtividade. As novas fábricas capitalistas privadas na costa foram a resposta à crise de produtividade. Já faz alguns anos, os salários dos trabalhadores migrantes vêm crescendo muito mais lentamente do que os das profissões formais e especialmente das (altamente) qualificadas. Os salários dos serviços semiqualificados, como garçons, caixas e faxineiros, mal estão acompanhando a inflação e, de acordo com as minhas observações, diminuíram desde o coronavírus. As desigualdades regionais também continuam a crescer; a renda média em Xangai é dez a doze vezes a renda média em partes mais pobres do país.

Involução: Wildcat sobre a China em 2020 (IV)

Para voltar à minha empresa: aqui, as pessoas com bacharelado em assuntos técnicos começam com 5-6000. Nas unidades infernais de TI na Pindoudou ou na Huawei, eles podem começar com salários acima de 10.000. Os meus colegas compram um apartamento nos arredores da cidade depois de se casarem com uma entrada de 30%, o resto como um financiamento que pagam por mais de 30 anos. Taxas de juros de 4,8% significam que, para muitos deles, todo salário de um cônjuge vai para os pagamentos de hipoteca. Este tipo de ensino técnico ou universitário também faz parte da força de trabalho migrante. Ao contrário dos trabalhadores, eles têm a esperança de adquirir um apartamento e o Hukou nos arredores da cidade. Esta esperança persiste porque milhões conseguiram. Eles trabalham 996 para isso, mas as oportunidades diminuíram nos últimos dez anos. A campanha nacionalista de Xi e o exagero das suas próprias conquistas parece ser particularmente eficaz entre estes assalariados com elevada educação formal e a esperança de subir para a classe média.

A crise demográfica

Em 2008, Giovanni Arrighi justificou sua crença no contínuo crescimento econômico da China destacando que a população tinha um alto nível de educação e boa saúde. Hoje, nenhum dos dois é verdade. Entre os países de renda média, a China tem o menor nível de educação (pouco mais de 30% da população tem o ensino secundário); uma média de idade relativamente alta (além da Tailândia e Cuba, apenas os países do antigo bloco soviético têm uma média de idade maior entre os países de renda média); mais de 70% das crianças são míopes, mais de 50% dos adultos estão acima do peso, mais de 15% dos casais são inférteis. De acordo com estatísticas recém-publicadas, o número de nascimentos em 2020 caiu 15% em comparação com 2019, para cerca de 12,5 milhões. Na geração dos pais destes recém-nascidos, o número de nascimentos era quase o dobro (entre 1985 e 2000, uma média de 21,7 milhões de crianças nasceram anualmente; na geração dos avós, o número era de 24,8 milhões). A sociedade está envelhecendo rapidamente; a crise demográfica está acelerando.

Nas décadas de 1990 e 2000, as fábricas em expansão ainda eram capazes de escolher entre as grandes massas de homens jovens e, especialmente, mulheres na casa dos 20 anos que migravam para as cidades industriais. Nos anos após a adesão da China à OMS, no início da década de 2000, cerca de 25 milhões de jovens entraram no mercado de trabalho todos os anos, e apenas cerca de um milhão tinha diploma universitário ou técnico. Estes trabalhadores migrantes tinham certeza de que, após cinco ou dez anos de trabalho nas fábricas, eles iriam para casa no campo e abririam uma loja, restaurante ou pequena empresa. Muitos, se não a maioria, desses empreendimentos foram a falência e os trabalhadores tiveram que voltar a buscar trabalho nas áreas industriais metropolitanas. No entanto, agora eles já eram demasiado velhos para os trabalhos difíceis e que nunca foram concebidos para serem feitos por toda uma vida. As perspectivas de possuir sua própria pequena loja também estão encolhendo, à medida que grandes empresas estão entrando para o negócio de quiosques e transformando quase todos as pequenas lojas e muitos restaurantes em franquias. Muitos conflitos começam devido às expectativas frustradas em relação à suposta natureza temporária do trabalho duro e suas consequências danosas para a saúde!

Involução: Wildcat sobre a China em 2020 (IV)

Paralelamente, o fluxo de jovens trabalhadores migrantes está se esgotando. Em 2010, cerca de 21 milhões haviam migrado, dos quais 2,5 milhões tinham um diploma universitário ou técnico. Nesse ano, 15 milhões de jovens continuam a entrar no mercado de trabalho, dos quais nove milhões possuem diploma universitário ou técnico – e muitos dos outros seis milhões prefeririam fazer serviços mal remunerados do que entrar nas fábricas! Em 20 anos, aproximadamente, a proporção de trabalhadores de colarinho azul em relação aos colarinhos brancos caiu de 24:1 para 2:3. Há um aumento no “trabalho qualificado”, mas já em 2011, a oferta de recém-graduados superou a demanda em 15%! [2]

O único grupo etário na força de trabalho ativa que continuará a crescer nos próximos 20 anos é o grupo dos trabalhadores com mais de 50 anos. As centenas de milhões de trabalhadores que foram arrancados do campo ainda lá estão, mas estão mais envelhecidos. O limite de idade para a contratação em muitas fábricas foi aumentado para 40 anos, mas não houve nenhuma mudança qualitativa nos processos de trabalho que permitiria aos operários trabalhar até a aposentadoria. Trabalhadores mais velhos enfrentam a pobreza, e até mesmo o alegre anúncio do “fim da pobreza absoluta” (definido como uma renda anual de menos de 4.000 RMB = 519 euros por pessoa, ou de 1,42 euros por dia; o Banco Mundial define o limite para a pobreza extrema em 1,59 euros por dia e o limite em países de rendimento médio alto, como a China, em 4,60 de euros) não altera em nada essa situação. Mesmo a propaganda oficial revela que a redução da pobreza está mais relacionada com programas de auxílio do que com empregos que pagam bem. A propósito, o PCC já havia celebrado a vitória contra a pobreza absoluta em 2000. [3]

Notas

[1] Dorcas Wong: China’s City-Tier Classification: How Does it Work? Chinabriefing, 27 de fevereiro, 2019

[2] sobre as lutas dos trabalhadores que sofrem de pneumoconiose, veja Wildcat 103: 6 milhões de trabalhadores que sofrem de pneumoconiose vivem em média com apenas 51 euros por mês. Fonte : Sidney Leng: China’s 6 million ‘black lung’ workers living on just US$61 a month, with most struggling to survive. www.scmp.com, 3.5.21. sobre o excesso de universitários, ver Vivian Wang: China’s College Graduates Can’t Find Jobs. A Solução: Pós-Graduação. NYT, 18/01/2021.

[3] Ver o documentário de 2019 ” China’s Unstoppable Rise: the World of Xi Jinping“

 

As imagens que ilustram o texto são da autoria de Chaokun Wang (1992 – )

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here