Por Alan Fernandes, Juliana Antunes e Matheus Dias
O artigo publicado na semana passada por Matheus Dias é de leitura urgente. O mesmo identifica a subjetividade bolsonarista que justifica os protestos puxados para o dia 7 de Setembro, data em que é celebrada a Independência do Brasil, com o propósito de constranger representantes dos poderes Judicial e Legislativo, justificando o autogolpe de interesse dos militares ligados ao Governo Federal e do próprio chefe do poder Executivo.
Dentre as pautas articuladas pelos bolsonaristas para o 7 de Setembro, além do “Eu Autorizo, presidente!”, lema baseado na frase dita por Bolsonaro acerca do “aguardo” de um sinal do povo para que ele agisse contra “um golpe de Estado articulado pela CPI da COVID” e que serviu como pauta para outras ações dos apoiadores do presidente, lista-se também: a destituição dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE); a instauração do voto auditável e com contagem pública nas próximas eleições; a “criminalização do comunismo” e o fim de “perseguições contra conservadores, patriotas e cristãos”.
A observação de Dias deve ser entendida enquanto a forma como interagem os protagonistas de uma base ideológica já consolidada do bolsonarismo, que representa hoje 24% do eleitorado. Pesquisas demonstram que essa porcentagem é daqueles que consideram o governo “bom” ou “ótimo”. Se porventura o destino dos conflitos sociais fosse decidido por esse núcleo mais duro, eleitoral, poderíamos ficar mais tranquilos.
A força do bolsonarismo, porém, e esse é o dilema das lutas sociais nos tempos atuais, é a capacidade de captura das revoltas proletárias inalcançáveis pelo espectro progressista, geralmente assimilando formas de corporativismo ou posições destrutivas com relação ao restante da classe que vive do trabalho. Talvez o ponto que tenha faltado à reflexão anterior, e este é o propósito deste artigo, é pensar em como esses gritos da base ideológica do bolsonarismo conseguem alcançar, ou mesmo encontrar vida própria, nas lutas contemporâneas de trabalhadores e trabalhadoras cansados de “tudo isso que está aí”.
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Antes de seguirmos adiante é imprescindível para o nosso entendimento a leitura do artigo Olha como a coisa virou, publicado em pelo menos 6 línguas, logo em seguida à eleição de Jair Messias Bolsonaro. O texto é uma retrospectiva das últimas duas décadas de conflitos sociais que conta a experimentação fascista que toma corpo no Brasil. Se tomamos como pressuposto as teses deste artigo, tal como definições de fascismo como a de João Bernardo, devemos assumir que a ideologia toma corpo quando ela é uma força ativa. Não nos interessa, portanto, pensar nesses sujeitos como “massa de manobra”, pois este tipo de caracterização parece destituir estes de seu papel protagonista na conjuntura.
À medida em que as fissuras no consenso se transformam em um rombo, porém, o sentido dessas lutas se desloca e elas perdem seu poder contestatório. Os conflitos passam a estar na ordem do dia e a revolta conforma-se como um dispositivo do novo arranjo político. Nossa aposta na ruptura do consenso se esgotou junto com ele, desorientando as formulações que partiam dela.
Sérgio Reis, e mesmo figuras como o Zé Trovão — caminhoneiro assíduo nas redes sociais — ambos sob a mira da Polícia Federal (PF) por encabeçarem o “Acampa Brasil”, que reúne bolsonaristas para defender a invasão do STF e do Congresso Nacional, aparecem como fomentadores de massas e vozes ideológicas, mas o que nos deve interessar é sua capacidade em angariar consigo grupos dispostos a assegurar a escalada fascista. A ameaça que se avizinha começa mas não termina nos blogs bolsonaristas e nos chamados verticais. Essa cooptação está ocorrendo de forma mais orgânica em duas categorias centrais para o bolsonarismo: caminhoneiros e entregadores de aplicativo, mas de forma mais atípica do que possa parecer.
O bolsonarismo se projetou no plano político como uma recusa à política formal, ou à velha política. Isso se faz transparecer em diversas falas de Bolsonaro, que pregam um rompimento com a dita “política do toma-lá-da-cá”, baseada no oferecimento de recursos orçamentários e cargos públicos em troca de apoio político. Nesse contexto, Bolsonaro conseguiu expressivo apoio por se apresentar como político diferente, ausente de um discurso que até então era reproduzido tanto pela esquerda quanto pela direita. A diferença de Bolsonaro e os demais membros do ordenamento político é que Bolsonaro conseguiu concentrar em si a insatisfação que permeia a sociedade brasileira, em especial os trabalhadores.
O crescimento e ampliação do setor de serviços, somado à crescente informalização potencializada pela reforma trabalhista, possibilitou criar uma massa de trabalhadores tanto mais precarizados quanto mais ausentes das decisões e da política institucional. O efeito disso pode ser compreendido, por sua vez, ao observar os grupos sociais que foram diretamente ativos na campanha eleitoral. Grande parte do eleitorado bolsonarista era composta por homens com cerca de 50 anos, com escolaridade até o ensino médio e com renda familiar de cerca de dois salários mínimos, logo, o perfil de grande parte dos trabalhadores brasileiros.
Nesse contexto, a greve dos caminhoneiros apresenta aspectos demasiadamente importantes e que nos possibilitam compreender de maneira inicial a relação dessa categoria com Bolsonaro e o bolsonarismo. No editorial publicado pelo Passa Palavra em 2018, intitulado A greve dos caminhoneiros no emaranhado dos conflitos sociais podemos observar que:
Dada essa configuração de condições de vida e possibilidades de atuação política visando melhorias nas condições de trabalho, a greve “selvagem” dos caminhoneiros deve ser apoiada pelas forças de esquerda. Seus elementos conservadores e mesmo reacionários, como o propalado apelo por uma intervenção militar e apoio ao candidato fascista à presidência da república, não devem ser vistos por uma ótica rígida, típica de certo marxismo brucutu que torce o nariz para tudo que não encaixa em seus modelos puros. Muito menos devemos cair nas acusações fáceis do identitarismo. Todo movimento de massas é cortado por contradições internas, que devem ser analisadas de perto (se possível ombro a ombro) e não descartadas.
A greve de 2018 criou um estranhamento, sobretudo pelo momento político e maior visibilidade que as pautas divisionistas tomaram em detrimento de suas pautas progressistas. O Passa Palavra já nos apresentava esses elementos, destacando que:
Um elemento dessa greve que precisa ser observado é a articulação entre uma pauta econômica bem delimitada e progressista e uma pauta política difusa, conservadora e protofascista, que associa bandeiras como “Fora Temer” e tomada do poder via intervenção militar. Ora, quanto a essa pauta política, há que se ponderar a atuaçāo da direita e extrema direita fazendo o que a esquerda e extrema esquerda não fizeram: se aproximando e construindo a necessária rede de solidariedade à greve.
De forma clara, é possível distinguir as relações entre os entregadores e o bolsonarismo, sendo necessário destacar que embora ocorra um certo apoio a Bolsonaro e suas propostas extralegais, verifica-se também que parte significativa da categoria se mantém à margem desse processo, lutando por suas pautas e reivindicações, e deixando a política partidária em segundo plano. Talvez, a exceção desse processo seja o movimento Entregadores Antifascistas, que possuem direta relação com os sindicatos e partidos políticos. Porém, não importa aqui afirmar o óbvio, mas observar que os entregadores de maneira geral não estão associados a esses programas políticos.
A grosso modo, é possível destacar que ocorre nesse movimento uma recusa às organizações, tanto da esquerda tradicional, quanto da extrema-direita, prevalecendo formas de organização mais autônomas e com pautas progressistas. Dito isso, o trecho supracitado refere-se à greve dos caminhoneiros e por isso é importante destacá-lo. Ao contrário do que ocorre no movimento dos entregadores, a luta dos caminheiros não é tão perceptível, sobretudo pela esquerda.
A disputa da extrema-direita no movimento dos caminhoneiros alterou-se significativamente, sendo necessário observar como as ações do governo reverberam na categoria. O grupo de apoio às propostas simbólicas do governo foi largamente afetado, criando rupturas inteiras e dando origem a um núcleo mais duro e radical. Do outro lado, encontram-se os caminhoneiros que lutam por suas pautas específicas, mantendo-se distantes dessa posição política.
Quando questiona-se sobre a possível adesão dos caminhoneiros às mobilizações datadas ao 7 de Setembro, os posicionamentos elencados são mútuos. Há quem poste-se em prol de uma paralisação, não unida às reivindicações elencadas pelos bolsonaristas, mas visando um destaque às pautas da categoria, sobretudo a alta dos combustíveis e a tabela do frete; há quem se manifeste contrário a unir-se nas mobilizações em virtude do posicionamento dos grupos atrelados ao agronegócio — fortes apoiadores das mobilizações bolsonaristas — em 2018, denunciando-os como “traidores”; há caminhoneiros que enxergam a adesão a tais movimentações como uma “perda de foco” acerca de suas pautas; e, por fim, existe uma pequena parcela de quem acredite que a adesão é positiva tanto para a defesa das pautas da categoria, quanto para apoiar o presidente e manifestar-se contra o STF.
Embora o apoio político-partidário não seja o objetivo central desse movimento, observa-se que a intervenção bolsonarista está diretamente ligada ao que se pretende afirmar como um “apoio dos caminhoneiros” ao ato do dia 7 e ao governo. É nesse contexto que se encaixam as ações de Zé Trovão e Sérgio Reis.
A recusa de uma adesão ativa e geral nas mobilizações do dia 7 precisam ser canalizadas e transformadas. Embora parte significativa da categoria não compreenda a invasão ao STF ou a Intervenção Militar como uma forma de pressionar pela diminuição do preço dos combustíveis ou por um aumento no frete, observa-se que essa categoria tem sido pressionada a participar do dia 7, pois seria necessário deixar o recado ou, na melhor das hipóteses, lutar por melhores condições de trabalho.
A atuação de Zé Trovão e Sérgio Reis aparece muito mais como uma campanha de agitação do que de organização política propriamente dita. Por causa disso, é imprescindível destacar que a mobilização dos caminhoneiros programada para o dia 7 não será geral e tampouco contará com a participação massiva de trabalhadores.
No dia 3 de Setembro, o Ministro do STF Alexandre de Moraes decretou a prisão de Zé Trovão por descumprimento de ordens cautelares que incluíam a não divulgação de conteúdo que incitasse a violência. Porém, em vídeo divulgado no dia 4 de Setembro, Zé Trovão afirmou em suas redes que “Até dia 7 de Setembro eu vou continuar fazendo vídeo igualzinho, vou parar não. Sabe por quê? Porque eu não cumpro ordem ilegal”. O que parece é que este fato tem sido utilizado como forma de incitar a participação dos caminhoneiros nos protestos do dia 7. No entanto, como afirmarmos até aqui, parte significativa desses trabalhadores olham com desconfiança essas ações.
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Em grupos de WhatsApp de entregadores de aplicativo e caminhoneiros nota-se que muitos deles vão aderir ao dia 7 de Setembro, curiosamente não para fechar o STF, mas para recorrer a mais direitos para suas respectivas categorias. Ao contrário do que desejam seus articuladores, a maioria desses trabalhadores quer aproveitar o dia para angariar visibilidade para si próprios, não para Bolsonaro, ou pelo menos é isso que pensam.
Muitos desses trabalhadores são de direita ou – como é o caso da maioria – foram eleitores do Bolsonaro, e eles vêem momentos como esse cruciais para elevar suas pautas, sem se aperceberem de que estão sendo tratorados pela articulação político-ideológica que dá caldo para o Governo Federal (apesar de muitos desses serem assumidamente de direita). Sérgio Reis entrou em evidência devido às suas declarações e por ser um cantor famoso, além de apoiar Bolsonaro. Zé Trovão, por outro lado, é outro bolsonarista cuja vantagem especial é ser caminhoneiro, o que o dá mais visibilidade no interior da categoria, apesar de não concordar com os primeiros quanto ao desvio de foco da pauta, já que o objetivo é precisamente “autorizar” o presidente. Mas nem Sérgio Reis nem Zé Trovão têm controle pleno sobre a forma com que os trabalhadores de logística/entregas estão acostumados a se organizar.
Existe resistência por parte de muitos caminhoneiros em participar dessas aventuras políticas da extrema-direita apesar de serem também muitos os que, ao contrário, pretendem aderir. Mas dentre os entregadores essa resistência é mais fraca ainda, não à toa eles aderirem a qualquer chamado que por bem ou por mal dê-lhes visibilidade, mesmo que seja uma motociata com o próprio Bolsonaro. Isso ocorre porque a forma-motociata é esteticamente idêntica às mobilizações que a categoria faz para conseguir visibilidade quando não tem força para interromper pedidos em estabelecimentos. Nos grupos de entregadores muito se discute sobre fazer o Breque dos Apps dia 11 de Setembro, em prol de pautas como o fim da política de sub-praças, o fim do agendamento e o aumento da taxa mínima, mas fazer também uma prévia no dia 7.
Dentre os entregadores, na maioria dos grupos, há uma máxima de que “não se deve discutir política para não ofuscar as mobilizações da categoria”. Essa é uma ideia que se compraria, não fosse tão difícil admitir que a adesão ao bolsonarismo é também uma forma de mobilização política e eleitoral. Quem acaba sendo ofuscado são, na verdade, as pessoas mais à esquerda. Apesar de os entregadores serem unânimes na crítica aos seus patrões, são muito ressentidos — com certa razão — com grupos de esquerda que procuram representar os entregadores sem ao menos se dar ao trabalho de dialogar com a categoria.
Nesse contexto existem outras apostas ainda dentro da esquerda, como é o caso dos “Entregadores Antifascistas”, onde tende a prevalecer a identidade do grupo – ou de determinadas personalidades – em detrimento da construção coletiva com a ampla categoria de entregadores. Se é verdade que a cultura bolsonarista força os entregadores de esquerda ao isolamento, o inverso também é verdade, que é quando, acostumados com o isolamento, são incapazes de estimular ações coletivas.
As imagens que ilustram o texto são de ValeTer_, Flavinho batera, Cleidiomar Fagundes, Thayse Tesch Moreira e Leandro Bierhals.
Em relação ao apoio de entregadores de aplicativo a alguma forma de bolsonarismo, acho que alguns exemplos vindos de conversas com motoristas de Uber dão uma ideia. Em 2018 e principalmente nas eleições, muitos no meu grupo apoiavam o voto em Bolsonaro devido às promessas de diminuir o número de radares, aumentar o número de pontos na carteira e mesmo mudar regras e valores de multas. Afinal, a fiscalização no trânsito podia literalmente acabar com todo um dia de trabalho. Outro fator muito importante era a questão da segurança, com muitos motoristas achando que um aumento da repressão policial iria diminuir o número de “vagabundos” (o número de assaltos, roubo de carro e ouros estava crescendo, inclusive com assassinatos de motoristas – tem no relato aqui no passa), com os mais radicais defendendo o armamento dos motoristas. As empresas não estavam e não estão nem aí para esse aspecto do trabalho dos entregadores/motoristas. E a dita esquerda não conseguia dialogar com esses trabalhadores porque não lhes interessava muito a carteira assinada, mas sim o valor das corridas, o valor da taxa abocanhada pelas empresas e principalmente o preço dos combustíveis. Talvez muito disso se repita entre caminhoneiros também.
Panfletando para a paralisação do dia 11 em São Paulo, encontrei mais entregadores falando que iam no protesto contra Bolsonaro do dia 12 (chamado pelo MBL, que está fazendo uma campanha bem intensa de adesivos e panfletos nas ruas) do que ao ato do dia 7. Nos grupos de WhatsApp, não vi nada sobre entregadores se organizando para ir ao ato de hoje aqui. E também não tive notícias de “esquentas” para a greve hoje em nenhuma cidade. É verdade que, quando a convocatória do 7 de setembro apareceu — inicialmente, como uma “greve de caminhoneiros” —, a ideia de unir as lutas ganhou eco entre os entregadores que preparam o dia 11. Nesse caso, expressava até um bom sinal: juntar com a greve de outra categoria, uma união não corporativista. Conforme foi ficando claro que o dia 7 era simplesmente uma data política do Bolsonaro, a conversa foi sumindo. Tem a ver com o princípio de “não envolver política”, mas ainda mais com a falta de apelo de um chamado para defender esse governo.
Nesse sentido, acho que o texto se baseia em boa parte numa impressão apressada. Que os debates e a linguagem dessa categoria estejam mais próximos das discussões traduzidas pelo campo da direita (isso sim um fato) não quer dizer que os entregadores apoiem ativamente o Bolsonaro. O comentário do colega motorista acima ajuda a pensar esses nexos mais complexos, que vem da própria forma de trabalho. Essa análise do processo de trabalho é fundamental também para entender porque o quadro de propostas da esquerda dificilmente consegue penetração nesses setores — seria mais simples se fosse simplesmente um problema de ressentimento, personalismo dos militantes, falta de diálogo, como sugere o texto. O risco aí é apostar que uma versão dos Entregadores Antifascistas que fizesse “trabalho de base” direito daria conta do recado. O problema contudo não está tanto na pessoa Galo, mas nos próprios pressupostos — como o motorista comentou acima, seus colegas não estavam muito interessados na CLT.
Abraço aos autores,
C.
O bolsonarismo cria sua parada do orgulho conservador na Paulista,
A esquerda “oldschool” reforça sua identidade no Anhangaba,
A esquerda “alterna” elege o novo centro da treta: os entregadores
Só para poderem esquecer das suas próprias tretas…
A socióloga faz o nome por ter cunhado um novo termo: viração
E o povo vai se virando no front
Bom mesmo sou eu, que faço poeminha blasè nos comentários do pepê
E o front está tão pesado que só da gente na viração, ora se matando de trabalhar, sem tempo ou força para mais nada, ora se matando para encontrar um trabalho, e também sem tempo ou força para mais nada… Todos na mesma canoa, ninguém aguenta mais, só que ninguém pode parar de remar.