Esmerado colecionador de abismos

Por Jr. Bellé

Nove anos após sua estreia na poesia com o livro Desistência (Patuá), Mateus Novaes retorna aos versos escritos, afinal os versos gritados ele jamais abandonou, ainda que o Krias de Kafka, histórica banda punk de Santo André-SP, em que é vocalista, letrista e bebedor tenha lá seus lapsos, como tudo na vida. Fato é que Um frio de hospício na espinha marca o retorno do poeta punk e rueiro para as esquinas do papel.

Antes de se enveredar pelos intestinos e interstícios do livro, é importante assinalar que seus 41 poemas, divididos ao meio pelo intertítulo Para meus Dreheres, são crus. Não que lhes falte fogo, ou que nasçam da impaciência de uma composição pouco refletida, e nada refinada, do que lhe é mais vital, a linguagem. Trata-se justamente do oposto: neste segundo livro, Novaes talha seus versos com esmero, pensa a forma e os significantes, mas o faz tentando esconder esse labor, parindo uma poesia que apenas parece espontânea: esse é um trabalho silencioso e profundo que nessa obra merece destaque. Significa dizer que a crueza da poesia se manifesta no seu caráter retilíneo, sem desvios ou subterfúgios, numa literatura franca e frontal, que não se furta ao choque e tampouco aos hematomas decorrentes dele. Mesmo suas metáforas, seus jogos de palavras e aliterações não omitem, mas transparecem, como se os poemas estivessem abertos, porém vivos, durante a autópsia que cada leitor faz deles com seus olhos.

Pois bem, muita coisa aconteceu nesses nove longos anos de (quase) hiato literário. Na poesia de Novaes, contudo, uma característica — ou melhor, uma cicatriz — sobreviveu ao tempo: a ironia. Às vezes ácida e outras apenas triste, ela atravessa a obra feito faca enferrujada nas mãos trêmulas de um velho. E digo isso, pois a velhice é a primeira recorrência notável de Um frio de hospício na espinha. As imagens sobre a passagem do tempo vão sendo empilhadas pelo autor como se fossem livros onde se lê, na geografia das lombadas, um novo e oculto poema. Isso salta aos olhos nos versos de 38: a barba quase toda branca / de um retrato para outro / poucos poemas completos sobraram. Também é sintomático em Som e Suporta quando Novaes exibe o reflexo dos cabelos grisalhos como evidência do rigor do tempo: Dá a impressão de que toda despedida sofrida / não deixou sequer um arranhão / todos os minutos entre  grisalho / queda e murchar de pálpebras; Grisalho e com nenhum juízo / sorrio aleatoriamente / aos pássaros imaginários / na praça dos meus miolos desnutridos.

Outra recorrência de Um frio de hospício na espinha é a oposição irônica à mercantilização e fetichização da existência, e especialmente à capitulação dos valores mais essenciais diante do capitalismo e suas máquinas e algoritmos de avacalhar sonhos e futuros. Essa capitulação quase voluntária de alguns, cuja rendição é publicizada e recompensada pelo sistema, que os alça a exemplos de conduta, é um dos mais frequentes e deliciosos alvos de Novaes neste livro. Isso o insere em discussões bastante contemporâneas que versam a respeito do endeusamento do indivíduo e a consequente destruição da coletividade. As redes sociais e seu individualismo, também os imparáveis e cruéis ataques a comunidades tradicionais, são sintomas explícitos dessa doença.

Nesse sentido, e já lançando uma ponte com a música, outra esfera imprescindível para quem deseja entender a se aprofundar no lirismo do poeta, é notável que Novaes esteja há tantos anos numa banda, ou seja, num coletivo de pessoas que tocam juntas e dividem as responsabilidades e delícias criativas, mormente numa época em que carreiras solo são hegemônicas no cenário artístico. Caminhar sozinho exige menos concessões e permite que a luz dos holofotes encontre o foco numa única pessoa, um único e soberano indivíduo. Felizmente, Novaes não é desses, e ele faz questão de nos lembrar disso no poema Ninguém: ninguém se importa / se meu filho de 3 anos / foi estuprado pelo tio da Van escolar / e toda vez que vê um embutido cai no choro.

É a ironia o que faz do poeta o opositor, aquele que lê o mundo e não gosta de nada, nem da prosa barata nem dos autores da distopia. E isso fica claro já nos três primeiros poemas do livro — Faz, 38 e Feita: escancarado, como um recado inicial, o poeta nos conta da sua decepção consigo mesmo, com os amigos e inimigos, em suma, com a humanidade e seus delírios absolutistas. Um exemplo é esta estrofe de Feita: solavancos, decepções já conhecidas / ignoradas / na minha mais alta complacência / comprometem a capacidade motriz / de me revoltar. Outro exemplo é este fragmento de Faz, poema que abre o livro: É muito duvidosa uma raça / que desperdiça um sol / reclamando incessantemente de calor / enclausurados em seus casulos / de concreto rumo à falta / total de oxigênio.

Esmerado colecionador de abismos

O poema inaugural condensa ainda outros dois temas que serão desenvolvidos ao longo da obra. O primeiro tema, e que é bem evidente no trecho citado, é a constatação de um engano (constatação essa que apenas a passagem do tempo poderia iluminar): a vida urbana não precisaria ter exilado a natureza, nem os poetas boêmios, os punks e os amantes da rua e da noite não precisariam ter rechaçado com tanta veemência as ideias solares. Abaixo do asfalto, afinal, há barro e nele raízes de árvores primordiais. Esse engano é gritado no poema Deserto: A vida sempre foi no mínimo / a cem quilômetros da praia / desobriguei meus pensamentos de sol / tudo quarto escuro / rodeado de pôsteres em língua estrangeira.

Em , um poema curto, Novaes comprime numa única imagem a oposição entre o asfalto, que à sua maneira é tão humano, e a natureza, que por conta de um longevo engano, foi tão extraterrestre: Há um atraso em tudo isso / uma planta insistente sob o asfalto / onde pousam distraídos pássaros / que não sabem nada de nós. Por fim, nas primeiras linhas de Sob, o poeta arremata essa questão, que aparecia e desaparecia por entre as linhas do poemário qual um vaga-lume soluçante: É a imensidão que isola / contas atrasadas não apagam as estrelas / tardios, elas e eu, habitamos a mesma mentira.

Todos estes temas são usados por Novaes para amadurecer sua linguagem poética. Ao mesmo tempo, ele usa essa mesma linguagem para amadurecer os temas que, poema a poema, serão processados por sua sensibilidade e sua crueza. E neste ponto surge uma novidade: diferente de seu livro anterior, Desistencia, neste há uma visualidade concreta. Ou seja, o aspecto formal da poesia deixa de ser totalmente submisso ao conteúdo e passa a protagonizar e redimensionar a mensagem. Creio que o exemplo mais lírico disso esteja no poema Mistura, em que a letra “e” emula a forma de uma gota e assim confere uma dimensão visual sutil e surpreendente para o desfecho do poema:

mixar-me ao som dos trovões
pousar na nuvem mais escura
me molhar por dentro
de uma única gota
e
cair

Por último e não menos importante, a linguagem deste livro continua fiel ao estilo de Novaes, mas um Novaes mais velho, ainda selvagem e desbocado, só quem com mais ressaca e uma leve dor no ciático. Esse passar do tempo não o tornou mais ou menos punk, mas agora ele é pai e punk, ele é uma Kria de Kafka que fez novos Krias de Kafka. Este Um frio de hospício na espinha exibe a pedagogia punk de Novaes, a paternidade punk e a sapiência punk de quem já tomou pancadas demais e sabe onde o couro calejou e o quanto ainda aguenta de trocação. Ele não é um desses poetas de classe que não podem manchar o traje. Ele é a própria mancha.

Serviço:

Para quem se interessar pelo livro, que é uma autopublicação, ele está em pré-venda na conta do Instagram do autor: @novaesmateus1981.

Jr. Bellé Filho da Dona Bete e do Seu Valcir. É poeta e jornalista, mestre em Estudos Culturais pela EACH-USP. Tem dois livros de poesia publicados, Trato de Levante e amorte chama semhora, ambos pela editora Patuá. Em 2021 venceu o Prêmio Flipoços de Poesia e o Prêmio Variações de Literatura.

Os quadros que ilustram este artigo são do pintor uruguaio Joaquín Torres García (1874 – 1949).

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