Por Isadora de Andrade Guerreiro

O “Breque nacional dos apps” do último dia 11 de setembro teve seu ponto alto na cidade de São José dos Campos – SP, que permaneceu “brecada” por seis dias. Com muito menos visibilidade da mídia – e na esquerda – tradicional do que o primeiro Breque no ano passado, a mobilização deste mês se parece muito mais com os tais “caminhos de toupeira”: subterrâneos, invisíveis, mas que constroem as possibilidades de caminhar da classe. São em grande medida importantes momentos organizativos, em que se criam, trocam, testam e consolidam táticas, e onde também são identificados com mais precisão os desafios das lutas específicas. Este texto pretende pensar sobre alguns elementos que surgiram nesta mobilização, colaborando na formação de novos caminhos.

Antes de qualquer coisa, vale notar que São José dos Campos (SJC) é uma cidade bastante significativa para que isso tenha ocorrido, na conjuntura em que estamos. Localizada às margens da Rodovia Presidente Dutra, entre São Paulo e Rio de Janeiro, seu maior crescimento urbano se deu durante a última ditadura civil-militar, com investimento e olhar estratégico do regime. Pois ali se encontrava o Centro Técnico Aeroespacial (CTA) da Aeronáutica, com vários institutos de ensino e pesquisa em tecnologia militar, entre eles o ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica). Não foi sem razão que ali também se instalou a fábrica da Embraer (aviões) e, como não poderia deixar de ser, a Avibras (veículos e armamento militar e civil). Muitas indústrias se instalaram ali ao longo das décadas de 1960 e 1970, e a cidade cresceu dentro de um modelo de urbanização apoiada em grandes migrações – inclusive de profissionais qualificados na área de tecnologia. Cresceu também ali um importante Sindicato de Metalúrgicos, dada sua centralidade de polo industrial-tecnológico.

No entanto, com a reestruturação produtiva da década de 1980 e a posterior privatização da Embraer na década de 1990, a cidade passou a ter enormes contingentes de desempregados condenados ao trabalho informal, que hoje já estão na segunda geração. Uma das maiores expressões desse processo de crise e resistência foi a Ocupação Pinheirinho, com cerca de 1,8 mil famílias, em área bem localizada de expansão urbana. A organização foi feita de maneira inédita por uma confluência de organização trabalhista (Sindicato dos Metalúrgicos de SJC), junto com movimento popular (MUST – Movimento Urbano dos Sem Teto) e partido (PSTU), organizados inicialmente pela CSP-Conlutas. O imenso terreno servia (e continua servindo) apenas para lastrear créditos podres em negociatas financeiras de seu dono, o megaespeculador Naji Nahas – que voltou à cena na mesma semana do Breque sendo o anfitrião do jantar com Michel Temer onde os magnatas fizeram um escárnio de Bolsonaro. O Pinheirinho teve uma das maiores e mais violentas ações de reintegração de posse da história recente do Brasil, em 2012. Em 2017, foi entregue às famílias um grande conjunto habitacional na periferia distante de SJC, realizado pelo Programa Minha Casa Minha Vida, dentro de um processo de negociação com mediação direta com a Secretaria-Geral da Presidência da República (Secretaria Nacional de Articulação Social)[1], durante o governo Dilma Rousseff. A ambiguidade da conquista de casas com derrota da luta urbana – que manteve o terreno de especulação vazio e jogou a população para um péssimo conjunto, longe dos empregos e da cidade – também foi expressão do fim de linha das organizações de esquerda durante o lulismo.

O que tudo isso tem a ver com o Breque do dia 11 de setembro? Quis fazer essa retrospectiva para mostrar que SJC não se trata de uma cidade qualquer quando se trata de relações de trabalho (do assalariamento à sua crise), tecnologia e lutas urbanas – o caldo político responsável pelo Breque. Não é necessário que os envolvidos estejam diretamente relacionados a alguma dessas relações que tracei aqui para entendê-los como herdeiros de uma situação urbana e política historicamente determinada por elas. A história não começa com a gente, e a segunda (ou terceira) geração de trabalhadores urbanos precarizados em SJC, que hoje recorrem aos aplicativos, não surgiram do nada. Nem sua relação com a luta – legitimamente bem fundamentada nas críticas ao sindicalismo local.

Situação esta que é fundamental quando se trata de uma luta que integra as questões trabalhista e urbana – na medida em que os entregadores e os respectivos aplicativos não estão dentro de uma fábrica (projetada de acordo com sua produção), mas só fazem sentido pois estão inseridos numa dinâmica urbana, onde usuários/clientes não são entidades abstratas e estão dispersos de maneira não homogênea, onde as necessidades não são planejáveis, onde os conflitos conformam o espaço, onde fluxos não são gerenciados de maneira centralizada. Existem muito mais agentes envolvidos diretamente nessa dinâmica para além da dualidade empregado-patrão, ou da relação aplicativo-cliente. Os conflitos não são duais e as forças envolvidas são ambíguas e contraditórias.

Vejamos alguns elementos do Breque que têm a ver com isso. Um primeiro, que me parece constante na forma mesma do Breque existir nacionalmente: a mobilização se dá de maneira dispersa, em centros comerciais, grandes redes de restaurantes ou cozinhas centrais de delivery. Embora estes locais sejam locais de trabalho, não é sobre a relação específica de produção de mercadorias (perecíveis ou não) realizada ali de que trata o Breque. O Breque é sobre a relação entre todos estes locais, sobre o que os une com a cidade: a entrega, a circulação de mercadorias, onde reina o capital comercial. Ele era o patrão dos entregadores até a chegada dos aplicativos. Há aí um deslocamento relevante: a importância dos intermediários no mundo de crise das relações trabalhistas. Intermediários estes já bastante conhecidos no múltiplo mundo da informalidade urbana.

Trabalhadores de aplicativos conhecem o mundo dos intermediários – os “passadores” –, seus códigos e lógica, pois sua vida é atravessada por eles, no trabalho e na reprodução. O aplicativo é mais do que o “passador” travestido de tecnologia, pois ele controla o trabalho de cima para baixo, das necessidades da circulação para dentro da produção: não é a equipe da cozinha que define o ritmo de trabalho do entregador, mas o contrário, a demanda de entregas que define o ritmo de trabalho da cozinha. E, como eu adiantei na coluna passada, é o capital financeiro – rei da esfera da circulação – que determina o ritmo e o valor das entregas, pois altera e controla a sua escala – e não os clientes.

Essas relações ficaram muito evidentes na luta de SJC e ter capacidade de manuseá-las talvez tenha sido seu trunfo e, ao mesmo tempo, seu maior desafio. Primeiro: a relação com os comerciantes como parte na disputa; Segundo: o trânsito com intermediários variados, dos líderes de OL a negociador da IFood; Terceiro: redes territoriais de sociabilidade que permitem tal organização. Em todos os três pontos são fundamentais as relações urbanas típicas de quem conhece a periferia e sua forma de reprodução, atravessada pelas negociações locais e pela fluidez entre formalidade e informalidade. Algo que carrega elementos da luta de fábrica, mas que não se limitam a ela. Há certo caráter urbano nas lutas trabalhistas na era da uberização.

No primeiro ponto, os relatos dão conta da importância de trazer o apoio dos comerciantes na pressão contra os aplicativos. No território, comerciantes são sujeitos geralmente híbridos: são parte da comunidade, se apoiam da sua existência e nas suas redes, precisando mantê-las e incentivá-las; no entanto, seus interesses comerciais colocam claros limites a esta parceria e, além disso, por ter algum capital, eles têm outra capacidade de se rearticular, buscar alternativas no caso de necessidade. Na prática, o comércio popular (legal ou ilegal) é um dos grandes dinamizadores dos fluxos cotidianos de dinheiro no território, e não de distribuição. Sua presença é acompanhada da formação de redes de proteção privadas, que controlam o grau de autonomia de cada morador de acordo com seu endividamento. Não surpreende que, nos relatos do Breque de SJC, os comerciantes apareçam primeiramente como apoiadores e, depois, como deflagradores de uma provável violência se não houver negociação.

No segundo ponto, chamou a atenção em SJC a presença e participação não apenas de entregadores OL, mas a inicial colaboração de alguns líderes de praça – que não logaram os grevistas, dando cobertura para eles em relação ao aplicativo, intermediando o conflito (ainda que por omissão). Quando olhamos para os territórios populares, lideranças locais se transformam em intermediários de uma enorme quantidade de relações, regulando desde questões comerciais, domésticas, comunitárias, políticas etc. e sendo, principalmente, centralizadores de demandas e articuladores da comunidade com agentes externos. Sua participação nas lutas é fundamental – principalmente por sua legitimidade por mérito ou por coerção –, porém seu caráter centralizador muitas vezes o faz intermediário de transações pouco claras. Em SJC, também chama a atenção a presença de um negociador profissional, intermediário da IFood que, no entanto, não pode se apresentar oficialmente enquanto tal na medida em que, acredito eu, os aplicativos baseiam juridicamente seu negócio na não existência de relações empregatícias – e, portanto, não poderiam negociar relações de trabalho de pessoas que não são seus empregados à luz da Justiça do Trabalho. A falta de transparência e clareza da sua posição atravessa a negociação, sem que se possa pressioná-lo ou saber se o que ele diz acontecerá ou não (por exemplo, a reunião de negociação dia 28) – pois ele é e não é legítimo negociador ao mesmo tempo. Enfim, tais intermediários são sujeitos centrais para se entender as dinâmicas de poder e dinheiro que caracterizam a fronteira entre formalidade e informalidade, tanto no território, quanto cada vez mais no mundo do trabalho.

Por fim, o terceiro ponto articula os anteriores: é notável que a mobilização do Breque se dá de maneira mais intensa nas periferias e seus centros regionais (particularmente shoppings periféricos) do que nas regiões centrais e ricas das cidades. SJC, por sua escala reduzida em relação a São Paulo, também apresentou fortes características de articulação comunitária, com dinâmicas anteriormente consolidadas entre entregadores. Mobilizar nos centros econômicos das cidades, onde o valor da terra e das corridas é mais alto e mais disputado, é sempre mais difícil. No entanto, é o breque desses locais que faz com que a luta pareça sair para a superfície, aparecer de forma pública para a sociedade[2] como questão que extrapola as relações trabalhistas imediatas – sem a qual permanece na invisibilidade dos subterrâneos, fundamental, porém não suficiente.

Chegar ao centro não significa chegar aos clientes. Significa amplificar a luta para além do imediatismo da pauta, sem o quê nem ela mesma se resolve. As lutas urbanas, quando são relevantes, são aquelas que conseguem extrapolar a pauta – sem prescindir dela, fundamentais para a criação dos caminhos. O Breque tem toda a potencialidade de articular novas lutas, recolocar o problema urbano para além das eternas “faltas” e virar do avesso as questões do trabalho em meio à sua crise – relembrando suas potencialidades de organização para a classe. Criemos e pensemos nos caminhos para tanto, que estão amadurecendo.

Notas:

[1] Fiz uma descrição desse processo aqui.

[2] Já falei também sobre a importância da disputa do MASP nas manifestações de rua em São Paulo.

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