Por Antônio Celso
Faltando dois meses para completar 5 anos, a PEC do Teto dos Gastos vê o seu fim a dois palmos de distância. Eivada de polêmicas desde sua concepção, a medida impôs um congelamento no total dos gastos, que dali em diante cresceria apenas pela correção inflacionária. À guisa de obituário, faz-se oportuno uma ponderação crítica sobre sua breve passagem pelo regime jurídico brasileiro. Um possível epitáfio: “Viveu menos do que se pretendeu, mas mobilizou paixões. Deixa nada além de rusgas e confusão orçamentária”.
À época de seu nascimento, o que não faltou foi bons agouros. O Presidente Temer afirmava que após 6 meses o emprego se recuperaria em função das reformas econômicas, num claro argumento do que é conhecido como “tickle down economics”: melhora-se as condições de investimento (no caso, reduzindo juros ao se ancorar o gasto público futuro), e crescimento econômico e emprego disso fluem automática e naturalmente.
Os que deram luz à peça constitucional também visavam fazer um robusto aceno às demandas do mercado. Naquela época, a economia brasileira estava no vale da recessão econômica (ou pelo menos assim se achava). Isso significa que todas as projeções apontavam para uma recuperação da atividade econômica e, por tabela, da arrecadação. Limitar o gasto nessas condições significava, portanto, que toda a arrecadação adicional advinda da recuperação cíclica ficaria livre para ser usada como o governo bem quisesse – idealmente aumentando a poupança pública para pagamento de juros e valorização dos títulos públicos. A este propósito, a proposta alternativa do economista Nelson Barbosa geraria um espaço fiscal substancialmente maior, pois usava como indexador de gastos o PIB.
Finalmente, diversos arautos, possivelmente embriagados pelo controle político associado à aprovação de uma emenda à constituição, soavam as trombetas para o que se pretendia ser a instauração do iluminismo nas terras brasilienses. Afirmava-se que a medida iria imbuir o sistema político brasileiro de racionalidade. A PEC, neste sentido, seria uma camisa de força imposta a um sistema político viciado em gastos que não cabem na economia brasileira. A metáfora típica era a do viciado obrigado a largar seu vício (por exemplo, Marcio Garcia). Seria, portanto, uma política de tolerância zero que limitaria os gastos totais.
Mas não só, argumentava-se também que a racionalidade se embrenharia por dentro do processo político, na determinação do tipo e da qualidade do gasto. Primeiramente, porque alguns subcomponentes de forte crescimento teriam que necessariamente ser revistos. Assim aconteceu com a Reforma da Previdência, por exemplo, e assim se quer na Reforma Administrativa. A PEC dos Gastos então seria uma reforma mãe, uma reforma que pariria uma série de outras reformas em seu ventre. Além disso, esperava-se que os gestores de programas públicos – dos servidores nas atividades-fim até ministros setoriais – respondessem ao orçamento limitado aumentando sua produtividade e qualidade: se reinventando, fazendo mais com menos e, inclusive, coibindo a corrupção.
Nos seus três objetivos, o Teto falhou em entregar o que prometera. Em relação à promessa de trazer crescimento, ainda que baseada numa fórmula popular em alguns países desenvolvidos (notadamente, Trump utilizou da mesma lógica para justificar a redução de impostos corporativos), ela está cada vez mais em desuso na academia e nos gabinetes. Ao invés de dar as condições e esperar o mercado agir, diversos autores argumentam que é mais efetivo o Estado desempenhar o papel de liderança – ao promover investimentos ou aumento de consumo – do que o de expectador.
Quanto o aceno ao mercado, ele funcionou enquanto durou. Ainda se debate quanto da queda das taxas de juros às mínimas históricas se deveu a essa medida ou ao cenário internacional, mas sem dúvida a peça legislativa foi instrumental em dar confiança ao mercado, sobretudo a confiança no alinhamento da agenda do governo e a da Faria Lima. Mas tudo isso desapareceu da noite pro dia quando os analistas se deram conta que mesmo uma Emenda Constitucional se provou fraca frente às necessidades do populismo fiscal-eleitoral de Bolsonaro.
Por fim, a mais espetacular das falhas foi que, ao invés de submeter a política a uma lógica econômica (e pretensamente racional), o que se viu durante a vida do Teto foi antes o inverso. Tendo o governo Temer abusado das emendas parlamentares para sua aprovação, também para sua supressão com Bolsonaro o custo se contabiliza em emendas cujos montante e destinação são determinados pelos atores do Congresso. Também a razão do furo do Teto não é outra senão viabilizar aumento de gastos às portas da eleição.
De fato, política fiscal, que se esperava ser regida pelos princípios de racionalidade e pelas recomendações do mercado, é, à época do enterro da PEC do Teto, inteiramente determinada pelo Congresso. Cada vez mais dependente do ciclo político, cada vez mais determinada por emendas parlamentares. Se o Brasil vive um semi-presidencialismo, então é evidente que este começou pela transferência da responsabilidade pelo gasto ao Congresso. Este, portanto, é o legado da PEC.
A SEGUIR: ESTAGFLAÇÃO & FASCISMO SEM MÁSCARA
A contrarreforma cleptofiscal foi deletada pela cleptorreforma constitucional…