Por Louise Wooley, Michel Leme e Alex Buck
No dia 13 de agosto de 2021 o Movimento Transparência, composto por vários músicos da cena da música instrumental de São Paulo, lançou uma carta aberta chamando a atenção sobre a crescente precariedade da profissão e clamando por uma efetiva organização política dos músicos na busca por melhores condições de trabalho. A carta, que pode ser lida na íntegra nas redes sociais do movimento [1], lembra, por exemplo, que “o modelo instável de relação trabalhista dos músicos (gigs) serviu como inspiração para dar nome ao que hoje é conhecido como gig economy”. De maneira análoga à maioria da população brasileira, o problema central da vida do músico na sociedade capitalista é o trabalho. Sob essa perspectiva não deixa de ser curioso observar que historicamente as esquerdas brasileiras tem dado muito pouca atenção aos músicos trabalhadores. Músico, no Brasil, é um termo logo associado a grandes artistas e vedetes da engrenagem do espetáculo musical, e raramente aos trabalhadores desta arte. Tal distinção é necessária e talvez neste ponto se encontre uma das maiores contradições da esquerda em um país tão musical como o nosso. Em um mundo quase que integralmente dominado pela indústria cultural, uma faísca com novas ideias para lutas e para organizações a partir da arte musical parece cada vez menos possível de advir de artistas que, pouco importando o estilo, participem ativivamente, de maneira consciente ou não, da reprodução da ideologia dominante. Ideologia esta que, no mundo bolsonarista, sabemos bem qual é. Nada sairá das paradas de sucesso. É neste sentido que um movimento que se organiza em torno do trabalho musical e encabeçado por músicos instrumentistas no seu desejo de poder fazer música instrumental, música esta que se encontra às margens, praticamente fora do mercado, surge como uma novidade estimulante. Este são os músicos que se encontram, na maioria dos casos, na parte de baixo da reprodução social da música e, talvez, seja de lá que uma nova energia e novas ideais possam surgir para a ajudar a organizar a luta contra a situação precária da classe trabalhadora no Brasil afora. A esquerda deveria olhar mais para a classe social dos músicos que de fato trabalham.
A entrevista que segue foi respondida por Louise Wooley, Michel Leme e Alex Buck todos membros ativos do coletivo além de grandes músicos. Nela, entre outras coisas, eles explicam em maiores detalhes as iniciativas do movimento, discutem sobre a dificuldades para sua organização, tocam na situação dos músicos em São Paulo e tentar imaginar como esta arte e aqueles que dela vivem podem interferir na situação atual do país. Só nos resta torcer para que o movimento se amplifie e se fortaleça e que repercuta Brasil afora com, quem sabe, a emergência de coletivos semelhantes espalhados por todo o país na tentativa de organizar de fato a classe musical brasileira.
Frederico Lyra de Carvalho.
1) Como surgiu a ideia e a necessidade de se organizar coletivamente enquanto músicos trabalhadores?
A necessidade de nos organizarmos coletivamente antecede em muito os acontecimentos recentes. Existe um desejo latente por essa organização há muito tempo. Chegamos a fazer reuniões presenciais, ao longo dos últimos dez anos, mas entre o desejo de concretizar e a efetiva materialização de um movimento esbarrávamos sempre na dificuldade em transcender questões individuais, mostrando o quão difícil é organizar um movimento mesmo dentro de um nicho tão pequeno.
Em certa medida, a situação absolutamente vulnerável com que a classe musical enfrentou a pandemia—sem qualquer vínculo empregatício, direitos, ou garantias—, de alguma maneira forçou a articulação dos(as) musicistas. Soma-se a isso, o fato de que os músicos foram quase que obrigados a utilizar as mídias sociais como forma de interlocução com o público. A urgência provocada pela pandemia e a agilidade de comunicação propiciada pelas mídias sociais criaram as condições necessárias para transformar a indignação em ação. Conseguimos juntar as energias dos(as) musicistas num movimento, ainda em fase embrionária, que, futuramente, pretende ajudar a construir um cenário mais justo que permita não só a sobrevivência de nossa classe mas o seu desenvolvimento.
2) Vocês poderiam explicar um pouco como é o trabalho do músico no Brasil? Como a maioria dos leitores e dos não-músicos em geral tem contato ou presta atenção apenas nos grandes artistas, um esclarecimento mais ou menos detalhado do trabalho do músico pode ser de grande valia para situar a luta de vocês.
Em primeiro lugar, é preciso que se saiba que esse movimento partiu de músicos que compõem a cena da música instrumental paulistana, portanto, estamos tratando de um nicho que tem especificidades regionais e de gênero musical, e, por isso, não representa necessariamente a realidade “do músico no Brasil.”
O desenvolvimento de um(a) musicista desse meio exige anos de dedicação ao estudo do instrumento e dos fundamentos da linguagem (composição, improvisação e performance). Além disso, há que se investir dinheiro para compra e manutenção de instrumentos musicais, geralmente caros.
Fato é que, quando um(a) musicista desenvolve as habilidades necessárias para se tornar um profissional, ele(a) encontra um cenário bastante adverso. São raríssimos os casos de instrumentistas que conseguem encontrar na própria música instrumental seu meio de subsistência. O mais comum é que esses instrumentistas tenham que assumir outras funções para complementar renda, tais como, dar aulas, tocar em bandas de baile, casamentos, eventos corporativos, acompanhar artistas de grande projeção na mídia, entre muitas outras.
Essa realidade, no entanto, não foi dada, não foi sempre assim, pelo contrário, ela foi construída. Há relatos de músicos que atuaram na cena paulistana na década de 1960 que afirmavam ser possível viver confortavelmente apenas com a renda de apresentações em clubes de jazz localizados no centro da cidade. Isso dá a ideia do processo de sucateamento pelo qual a profissão de músicos vem passando no Brasil. Atualmente, temos músicos cujas qualidades são reconhecidas mundialmente, são verdadeiras referência em seus instrumentos, e, mesmo desempenhando as já mencionadas funções complementares, mal conseguem pagar o aluguel [2].
3) No que a pandemia interferiu no trabalho do músico?
Com a pandemia, as apresentações ao vivo foram interrompidas. Como se não bastasse, muitos cachês de apresentações que já haviam ocorrido, antes da pandemia, não foram pagos pelas casas, como descrevemos na carta aberta postada nas redes sociais do Movimento Transparência. O que restou aos músicos foi dar aulas online, participar de algumas lives e atividades do gênero, isso quando era uma opção. Muitos músicos chegaram a depender de ajuda financeira de colegas para conseguir sobreviver durante esse período. Agora os shows estão voltando aos poucos, embora não saibamos por quanto tempo devido às novas variantes do covid19.
4) Qual a dinâmica do movimento? O que vocês esperam conseguir com ele? Quais as principais demandas e pautas que vocês reivindicam?
Ainda estamos vivendo uma fase muito inicial do movimento para entendermos como se dará, de fato, sua dinâmica. Após o lançamento do movimento online, com a postagem da carta aberta, vários(as) instrumentistas entraram em contato conosco desejando contribuir com a nossa causa. Disponibilizamos, então, um formulário online de adesão no qual o(a) instrumentista pode escolher entre ser um(a) apoiador(a) ou um membro. Apoiadores recebem informativos e participam das discussões do grupo no Telegram. Já os Membros trabalham diretamente nos grupos de trabalho que atualmente cuidam de diferentes demandas, tais como, setor de comunicação (mídias sociais principalmente), jurídico, propostas de ações, entre outros.
Entre as principais pautas dessas frentes de trabalho estão:
– Criação de um setor jurídico para auxiliar as(os) instrumentistas que, eventualmente, tenham seus combinados rompidos ou sejam de alguma forma seus direitos lesados.
– Reivindicar a total independência e controle sobre o repasse de couvert artístico e/ou bilheteria. Atualmente, dispomos de tecnologia (Pix, máquinas de cartão, plataformas online) para que possamos receber diretamente do público sem que esses valores entrem no fluxo de caixa dos contratantes.
– Busca por novos espaços de apresentação visando a criação de um circuito descentralizado e mais democrático, integrando áreas periféricas e facilitando o acesso à música instrumental.
5) Organizações de músicos semelhantes ao vosso não parece ser a regra. Vocês teriam alguma hipótese do porquê da classe dos músicos não se organizam em um país onde a música ocupa um lugar tão central como é o caso do Brasil? Vocês conhecem e se inspiram em algum outro movimento?
Primeiramente, as hipóteses que levantamos aqui são meras especulações e não representam a visão do movimento como um todo. A primeira hipótese diz respeito principalmente à falta de consciência política de parte dos músicos. O lema “meu negócio é música, não falo sobre política,” é frequentemente reproduzido por musicistas, em geral. Isso mostra a total alienação e falta de consciência de classe. Um músico que toca Jazz no Brasil, por exemplo, e não entende a função política da música, está ignorando a própria história do jazz, que é de resistência.
Outro fator que pode ter contribuído para a não formação de uma classe musical forte é o crescente processo de individualização e influência de um modo de ser emprestado do mundo corporativo. A ideologia do empreendedorismo vem assumindo relevância cada vez maior na nossa sociedade, e não é diferente entre os músicos. As “novas regras do jogo”, nos moldes do marketing digital, muitas vezes idiotizantes, exigem que artistas sejam também vendedores e animadores de audiências.
Soma-se a isso uma dinâmica ancorada na competitividade e disputa por espaços. O “cada um por si” muitas vezes parece ser a regra dentro de nossa classe e, obviamente, do sistema capitalista ao qual estamos sujeitos. Medidas coletivas que seriam efetivas para conquistas no âmbito trabalhista, tais como, boicotes coletivos a estabelecimentos que quebram combinados e/ou precarizam nosso trabalho, são simples só no papel. Ao longo dos últimos dez anos, ocorreram tentativas nesse sentido. Invariavelmente fracassaram por conta de uma representatividade diminuta, enquanto meia dúzia de pessoas mantinham o combinado, a maioria continuava a tocar normalmente nesses espaços.
Não podemos ignorar, também nesse contexto, o recorte de classe social. Por um lado, os(as) instrumentistas mais vulneráveis financeiramente não se sentem confortáveis de enfrentar pessoalmente as casas com medo de perder uma fonte de renda importante, o que é totalmente compreensível e justificável. Por outro lado, há aqueles que não dependem financeiramente desses trabalhos e ainda assim aceitam trabalhar sob essas condições precárias e acabam por inviabilizar o sucesso desse tipo de ação, além de servir como um exemplo negativo para as gerações mais novas.
Essa cultura do “faça você mesmo,” “seja o gestor de sua própria carreira,” e tantas outras variáveis desse pensamento individualista, dificulta a formação de uma consciência coletiva de classe tornando quase impossível qualquer mudança para o setor. Esperamos que, por meio do Movimento Transparência, essa união entre membros e apoiadores se fortaleça, se estenda para fora do próprio movimento e contamine outros músicos espalhados pelo Brasil.
Já com relação a se houve ou não um movimento que nos inspirou, diríamos que não há inspiração direta. Sobretudo porque as pautas comuns que nos fizeram organizar esse movimento são muito específicas e atreladas ao contexto da música instrumental paulista. Já vem de um tempo que estamos à mercê de mudanças de regras do jogo unilaterais, que são impostas por parte de quem detém os meios. A sensação, atualmente, é a de que encostamos no fundo do poço, resultado da precarização ímpar a que fomos submetidos nessa pandemia. Para se ter uma ideia, no início do confinamento coletivo algumas casas (entre elas algumas renomadas) sugeriram pagar os valores que os músicos teriam a receber — entre cachês e vendas de discos — em bebidas! Isso é ou não é o fundo do poço?
6) Quais providências vocês imaginam que possam ser tomadas para que as condições de trabalho do músico sejam ao menos corretas no âmbito de uma sociedade capitalista?
Depois de muita discussão interna no movimento, um problema que parece ser constante diz respeito aos agentes que mediam a relação dos músicos com o público. Seja pelas mãos dos donos de casas de shows, que fornecem o espaço físico para apresentações de música ao vivo; seja pelas mãos dos donos de plataforma de streaming, que disponibilizam espaços virtuais para a difusão de músicas gravadas, o dinheiro que sai dos ouvintes para os artistas fica pelo caminho. Nosso maior problema está nessa relação com os intermediários.
Por isso, uma das questões que vem assumindo centralidade dentro de nossas discussões é justamente encontrar uma saída para essa questão. Evidentemente que nós não temos como negociar parcelas de participação maiores com as gigantes multinacionais detentoras das plataformas de streaming. Mas renegociar os valores e combinados entre nós e donos dos espaços de show, isso sim está a nosso alcance. Nosso movimento ruma para exigir uma relação de total independência na administração do capital que é dirigido aos músicos. Os dois lados, casa e musicistas, trabalham por objetivos comuns, neste caso, casa cheia. As casas recebem sua recompensa por meio de venda de comidas e bebidas, os músicos deveriam ganhar integralmente o couvert artístico. Não podemos mais aceitar que as casas retirem para si um dinheiro que é nosso.
7) Como o público que não é músico pode colaborar com a luta de vocês?
Para que efetivamente consigamos atingir os objetivos da questão anterior, será fundamental que os frequentadores dessas casas fiscalizem o comportamento das casas de show. O mesmo vale para plataformas de streaming. Por exemplo, pesquisando quais plataformas fazem repasses mais justos; preferencialmente, consumir os trabalhos diretamente com os artistas; ao assistir um show, perguntar se o pagamento está de fato sendo destinado aos músicos; perguntar aos músicos sobre como a casa trata essas questões.
Outras maneiras de colaborar com nossa luta é seguindo os canais de mídia social do movimento e dos artistas que são membros. Nós pretendemos divulgar as pautas pelas mídias sociais.
8) Como vocês situariam o papel do músico e da música na luta contra o autoritarismo do governo Bolsonaro e a situação de crise permanente na qual se encontra o Brasil?
O autoritarismo bufão de Bolsonaro, o ultra liberalismo de Paulo Guedes, o crescimento da bancada evangélica, com a visão de que a arte deve servir a religião (visão esta compartilhada pelo secretário de cultura de Bolsonaro, como pudemos ver em declarações recentes), entre outros, só tem agravado uma situação que já vinha de muito antes. Aqui no estado de São Paulo somos governados por um partido que só fez desmontes.
Por exemplo, a EMESP (Escola de Música do Estado de São Paulo), que forma músicos de todas as classes sociais, gratuitamente, vem sofrendo cortes de verbas públicas sucessivamente ao longo dos anos. Uma escola modelo, que deveria ser ampliada e replicada em cada bairro de São Paulo, já teve dois pólos que atendiam um efetivo de cinco mil alunos, hoje tem apenas um pólo que atende menos de mil e quinhentos estudantes. Na maior cidade da América Latina esse número chega a ser vergonhoso.
Outro exemplo da tentativa de desmonte, devido à ótica capitalista de privatizações e concessões, acontece nesse momento. Recentemente, as aulas da Escola de Música do Auditório (auditório Ibirapuera- São Paulo) foram suspensas indefinidamente. A Escola, há mais de uma década, forma músicos gratuitamente e tem em seu corpo docente alguns dos grandes nomes da cena musical brasileira. Com a concessão do parque Ibirapuera à empresa Urbia Parques, esta simplesmente resolveu encerrar as atividades da escola. Por meio de protestos nas redes sociais, músicos e alunos tentam reverter esse quadro. Uma pressão a mais de cidadãos não-músicos seria de fundamental importância.
É sempre bom lembrar que a formação musical é muito importante no desenvolvimento do ser humano. Por meio do estudo da música é possível conhecer nossa história, é possível desenvolver indivíduos sensíveis e críticos, e isso claramente não é interessante sob a ótica capitalista. Parafraseando Darcy Ribeiro, a crise que vivemos na educação e na cultura não é crise, é um projeto. E esse projeto vem realizando o desmonte da cultura desde a sua base.
Nesse contexto, a música independente, produzida sem interesses para além do próprio fazer musical, poderia, por si só, ser vista como um ato de resistência. Como outras artes, a música tem a capacidade de empoderar o ser humano e um governo autoritário obviamente teme seres pensantes, capazes de perceber o modo como opera o sistema e, eventualmente, se rebelar contra o mesmo.
Talvez o primeiro papel para o/a musicista, em meio a uma pandemia e governo Bolsonaro, seja sobreviver! Junto a isso, vamos tentando nos organizar como classe para atingirmos nossos objetivos mais urgentes.
Notas
[1] O contato para maiores informações ou mesmo no intuito de participar do Movimento Transparência pode ser feito pelo facebook (https://www.facebook.com/Movimento-Transpar%C3%Aancia-104845758574358), instagram (https://www.instagram.com/movimentotransparencia/) ou e-mail do movimento: [email protected].
[2] Mariana Beraldo Bastos e Acácio Piedade oferecem uma explicação sucinta sobre o que se deve entender como música instrumental: “A designação ‘música instrumental’ é ambígua, pois há diversas outras músicas instrumentais no Brasil, e apesar disto os músicos e ouvintes deste repertório não têm dificuldade no reconhecimento do gênero musical que leva o nome de música instrumental. Algumas de suas marcas são claras: o destaque para os instrumentistas (improvisações, valorização do virtuosismo), a concepção harmônico-melódica e os arranjos que empregam técnicas e formas jazzísticas, entre outras. Há outras designações, como, por exemplo, ‘música universal’ (conforme Hermeto Pascoal), ‘música brasileira contemporânea’ (conforme Arismar do Espírito Santo), ou ainda ‘jazz brasileiro’, principalmente no exterior (Brazilian Jazz)”. In: “Análise de improvisações na música instrumental: em busca da retórica do jazz brasileiro”, Revista Eletrônica de Musicologia, XI, setembro 2007, disponível em: http://www.rem.ufpr.br/_REM/REMv11/04/04-bastos-jazz.html Data de acesso: 29/08/2021.
As artes que ilutram o texto são da autoria de Caravaggio (1571-1610).
A iniciativa de movimentação coletiva dos trabalhadores músicos e a entrevista com eles são muito pertinentes, entre vários outros pontos porque se insere numa das linhas dos melhores textos, análises e intervenções do Passa Palavra, a meu ver, mais coladas no deserto do real, ressaltando a própria responsabilidade das esquerdas e das próprias formas de organização (que pressupõe a sobrevivência e a autodefesa), de uma perspectiva de dentro, autocrítica tb, num mar de contradições ou antagonismos limites, incontornáveis, no qual estamos todos jogados, via de regra à deriva, sujeitados às marés. Tudo menos autonomia. O recente artigo de Pablo Polese sobre a “política identitária da empresa IFood”, um dos melhores publicados nos últimos meses por aqui, vai nessa mesma linha. Não cede ao apontamento de dedo e fiscalização de terceiros, mesmo quando apontando a fiscalização alheia. Se auto reconhece.
No caso dessa entrevista, o pano de fundo é a maior crise para o setor cultural em décadas aqui no Brasil, pela sobreposição de todas as crises que se pode imaginar: da guerra aberta do fascismo à brasileira contra a categoria dos trabalhadores da cultura em especial, à crise sanitária e socioeconômica decorrente da pandemia, tornada sindemia, da Covid-19, que paralisou boa parte do setor por 20 longos meses, forçando em parte uma ultradigitalizacao e virtualização de algumas atividades/alternativas de sobrevivência, hiper precarizadas e instáveis, em ambientes controlados/administrados, somente para uma parte dos trabalhadores (linguagens e segmentos) que conseguiram acessá-las. E aqui há segmentos e linguagens dentro do setor, como a cultura de rua ou o circo, para ficar em dois exemplos, que sofreram e seguem sofrendo ainda mais os efeitos desta crise, do que a música e os trabalhadores músicos. As alternativas, quando elas existem, são os UBERs ou IFoods da vida, ou a morte em vida: o abandono de seus ofícios nas artes, fechamento de espaços culturais, para não morrer de fome, adoecimentos diversos, depressão, desespero, não raro suicídio…
Desde o início desta pandemia têm sido inumeráveis os casos e as circunstâncias limites que temos acompanhado de muito perto, daqueles e daquelas que não suportaram essas várias ondas e se foram, e daqueles familiares, amigos e tb os ex-companheiros de trabalho nas artes, que ficamos, esfrangalhadas. Centenas e centenas…
Está semana, aqui em SP, se foi mais um performer autônomo, popular; 2 semanas atrás foi Jaider Esbell; há exato um mês atrás o escritor e capoeirista Lewis, biógrafo tb de Marielle Franco – sobre cuja morte, tb assassinado, pouco ou quase nada as ditas esquerdas escreveram ou debateram a respeito, menos ainda qualquer atitude prática efetiva, pra tentar evitar novas mortes afins, e estar junto de fato das pessoas próximas a esses muitos, trabalhadores artistas com destaque, que estão simplesmente sumindo deste mundo… Sejam grandes mestres da cultura popular, vulneráveis por N razões, sejam muitos e muitos bem jovens: não suportando as ondas.
No início de 2018 o Passa Palavra escreveu outro artigo, logo após a morte de Marielle, cujo texto abria dizendo: “O assassinato de uma militante por sua atuação política é sempre uma derrota coletiva. Falhamos em não construir as redes de solidariedade e resistência fortes o suficiente para proteger uma das nossas, para garantir que ela continuasse pautando suas ideias e construindo práticas, seja na cidade em que nasceu ou em outra qualquer. Essa falha não é de tal ou qual grupo político, mas do conjunto dos trabalhadores que, em suas lutas sociais, não conseguiram assegurar as condições de segurança, necessidade prévia para que qualquer embate político e ideológico transcorra.”
Reler tais palavras cerca de três anos e meio depois, ainda numa sindemia e um Genocídio múltiplo que já nos tirou mais de 600 mil pessoas só diretamente pela Covid e, no caso do setor cultural e dos trabalhadores das artes e cultura em geral, dos mais atingidos, sob todos os aspectos (da paralisação do trabalho aos adoecimentos diversos), pela crise que persiste…
Relembrar aqui agora, de forma vertiginosa, quantos e quantas temos perdido ao longo desses últimos meses: toda semana um novo caso terrível, como o desaparecimento do Macalé aqui em SP, há cerca de 3 meses, reforça o diagnóstico do quanto seguimos falhando, a começar por aquele que é de fato o desafio primeiro: garantir a sobrevivência (autodefesas e a sanidade) dos nossos e nossas camaradas.
Eu acredito que este tipo de análise e contribuição, como as presentes nesta entrevista, noticiam e nos apontam e apoiam de fato muito mais as nossas lutas cotidianas, aquelas mais chãs, do que uma série de outras abordagens que, num próximo comentário, assim que tiver um tempinho a mais, retomo e tento desenrolar melhor. Valeu.
Na nota 2, quem escreveu “sussinta” queria dizer “sucinta”: https://www.aulete.com.br/sucinto
Prezado Aulete,
Agradecemos pelo comentário. Fizemos a correção.
Cordialmente,
Coletivo Passa Palavra.