Por José Abrahão Castillero

Para discutir o filme Marighella pelo seu reflexo político e estético, é preciso lembrar que não basta se ater ao debate sobre o programa tático e estratégico da ALN (Aliança Libertadora Nacional). Isso no que se refere ao “foquismo” da guerrilha rural aliado à guerrilha urbana como tática para derrubar a ditadura civil-militar. Mesmo que venha a tentação de entrar nesse assunto, o debate mais frutífero parece ser sobre as questões políticas e sociais que refletem esse filme na cultura popular. A questão estética em que ele está colocado, mesmo com o debate interno que ele traz sobre a “luta armada” sendo bem relevante, tem um aspecto mais revelador sobre como anda a esquerda e a sociedade brasileira atualmente diante da extrema-direita, instalada no poder legislativo e executivo. Exatamente por isso que a forma como o debate, ou a falta deste, sobre a tática da ALN e seus resultados históricos é feita. Faz parte dos reflexos políticos que as escolhas estéticas do filme estão vinculadas.

É importante perceber que a falta de profundidade sobre aspectos históricos no filme foi recebida por muitos militantes de esquerda como uma redução do debate político à dualidade “democracia x ditadura”. Porém, se fosse esse o caso, o filme não omitiria nomes de torturadores e contaria mais detalhes sobre as ações realizadas pelos militantes. Por exemplo, o nome de Sérgio Paranhos Fleury, representado pelo vilão Lúcio, torturador do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social). Ou o debate programático da ALN na tomada da rádio e as divergências sobre o sequestro do embaixador estadunidense, Charles Elbrick. Essa escolha poderia se explicar por escolhas narrativas, que realmente não obriga maiores explicações. Inclusive o diretor Wagner Moura declara repetidamente que pretendeu realizar um filme popular, que chegasse ao grande público. Porém, parece que isso virou uma máxima para abafar um problema: o que é um filme popular? Não é a simples redução do debate político que trouxe isso, mas sim a intenção de promover uma obra que seja sensível aos olhos da classe trabalhadora. É possível fazer um debate político e profundo com narrativas simples, porém intensas.

 

É interessante perceber que Wagner Moura relata numa entrevista que busca uma ambivalência em seus personagens, seja agora com Marighella, ou julga ter ocorrido com Capitão Nascimento, com Pablo Escobar ou com o diplomata Sérgio de Mello. Assim, é possível perceber que o diretor busca imprimir a profundidade de sua obra num questionamento de seu personagem. Aqui, o fundador da ALN é colocado em xeque diante da repressão, cada vez mais recrudescida. O antagonista Lúcio, é colocado em xeque pela interferência estadunidense. No entanto, é curioso como o autor considera isso como uma complexidade diante de um filme que busca ser mais simples e popular, enquanto não aprofunda em assuntos que toca. É notável que sua posição diante do filme Tropa de Elite sobre ele não ser um filme que incita ao fascismo, baseia-se na visão que o debate é “inimigo do fascismo”. Apesar de estar meio certo, pois não recai sobre esse filme a culpa sobra a ascensão bolsonarista, há uma ingenuidade em pensar que o fascismo nasce negando o debate. A pergunta a ser feita aqui é: onde está sendo feito o debate sobre o fascismo e por que não alcançamos ele? Não alcançamos, fato real, dada a derrota política reconhecida por ele próprio na entrevista. E nessa pergunta, podemos lembrar que é no debate e na mobilização que o fascismo cresce. E nesse debate, a esquerda perdeu a razão. Isso não se resolve em obras de arte, mas é possível pensar em como através dos filmes seria possível ganhar um debate contra o fascismo.

Uma impressão que dá é que quando Wagner Moura defendeu Capitão Nascimento como um personagem que não incita o fascismo ao questionar “será que o fascismo está em nós?”, ele com certeza constatou o óbvio. Algo que podemos perceber numa análise privilegiada, quase quinze anos depois do sucesso comercial de Tropa de Elite. Porém, é preciso analisar com cuidado: como ele já estava em nós? O mesmo otimismo do diretor pelo filme Marighella ser bem recebido por movimentos sociais, talvez reflita numa falta de perspectiva sobre como discutir com a classe trabalhadora para além da burocracia e do nicho social desses espaços. E tratando desse campo da arte, talvez seja resultado de uma falta de compreensão sobre como discutir e derrubar o fascismo nascente desde 2005. Isso, entendendo o fascismo como um movimento social que conseguiu uma importante alavanca cultural: a narrativa do herói na violência como alegoria. E dado isso, é incrível a ingenuidade de quem considera a continuação, Tropa de Elite 2, como um antídoto para os resultados do original. Outra confirmação que Moura faz, considera esse como uma denúncia das milícias, sem comentar que a resolução apresentada nesse filme funcionou como um incentivo para a mesma mobilização fascista: o ex-policial contra o sistema. Essa é a própria mística do miliciano e de algo mais importante: um especialista em violência lidera o povo contra a corrupção de um sistema político, que deve ser corrigido. E como nem interessa explicá-lo, não interessa derrubá-lo. Assim, é notável que a proposta do filme Marighella ser um filme popular, não seja simplesmente por não entrar nos pormenores da política nos conflitos sociais dos anos 60/70, mas principalmente pela escolha estética dele. E essa reproduz a mesma dinâmica que mal debateu o fascismo no século XXI. Mesmo com as ambivalências, Marighella é um herói passando por sua jornada, que faz seu sacrifício final. Com antagonistas claros, ele precisa da violência atraindo os olhos do público, para justificar feitos extraordinários, diferenciando-se das massas e apresentando algo diferente do que um trabalhador comum pode realizar. A empolgação de Moura parece ser tanta com essa perspectiva, que fica explícito que ele busca uma redenção sobre os resultados do Tropa de Elite ao enfatizar o antagonista como um policial torturador do DOPS, que faz claras referências ao Capitão Nascimento. Lúcio fala “Eu não trabalho para vocês” para o agente estadunidense em Marighella, da mesma forma que Nascimento fala “Manda a conta para o Papa”, ao mandar executar um familiar de um traficante, depois de uma sessão de tortura. Esse último, um herói, mostrou sua arrogância com a opinião pública, assim como o vilão do filme atual.

 

O problema do herói, não importando a vertente política que ele traga, é que ele não oferece um debate concreto sobre os problemas cotidianos dos trabalhadores. Traz uma fuga deles, bastante prazerosa inclusive. Logo, se alguns setores da esquerda pensam que podem usar essa alegoria como meio de transmissão de propostas políticas, isso mostra a ilusão com a mobilização social que pretende levar debates supostamente maiores para os menores, que afligem a massa do público espectador. Podem trazer uma tendência de verticalização que existe nesse setor, porém o apelo popular é forte, pelo sucesso que essas narrativas trazem. Há formas de trabalhar narrativas que superem essa lógica? Já houve o “herói multidão” de Sergei Eisenstein, quando se trata de narrativa rápida numa mensagem política. Porém, há muitos filmes que trazem adaptações dessa jornada, mesmo com foco em protagonistas individuais, mas que trabalham uma questão rica e criativa da nossa realidade social. Em termos de entrar no debate com o fascismo, podemos lembrar de Eles não usam Black Tie de Gianfrancesco Guarnieri no roteiro, que mostra um grupo de famílias de operários, cujo drama é a tensão econômica de criar filhos, sustentar a vida, com a exploração de uma fábrica, debates entre sindicalistas e mobilizações grevistas. A prática da delação de alguns deles, trazida aqui como um elemento ambíguo e real, com a repressão de uma greve, mobilizada com dificuldade, pela conciliação do sindicato e pouca adesão da categoria, é um ambiente muito rico para debater as bases do fascismo durante a ditadura civil-militar. Isso é a dificuldade de mobilização diante de narrativas concretas, onde os protagonistas contam com suas próprias vidas para resolver. Outros que trazem boas discussões são A Queda e Os Fuzis, de Ruy Guerra, onde a violência e relações de classe são presentes. O Homem que virou suco também traz uma boa discussão sobre o trabalhador precarizado sendo moído pela sociedade ao ser confundido com um homem rico e bem-sucedido. Obras recentes, como Que horas ela volta?, Campo Grande e o Central do Brasil. Ou até o enigmático Manelão, Caçador de orelhas, de Ozualdo Candeias, um dos fundadores do movimento Cinema Marginal. Esses exemplos podem servir como narrativas simples, que debatem o fascismo no sentido de um movimento de capitulação da classe trabalhadora diante da exploração capitalista, que pode tomar proporções de paixão e apoio à repressão social.

Como já foi dito, aqui não se pretende trazer uma fórmula para corrigir o filme Marighella. É um bom filme e isso é difícil negar. É belo e se percebe a tentativa do autor em trazer planos sequenciais e abertos. Mostra famílias, profissões e dilemas para buscar a humanização dos personagens. Esse momento histórico deve ser retratado nos cinemas da forma mais bonita e atrativa. Porém, já que ele se propõe a ser um mobilizador político, é preciso problematizar mais aspectos da escolha estética. Além da narrativa do herói, aqui é preciso pensar em como a alegoria da violência tem tido um caráter provavelmente particular no Brasil. Se ainda colhemos os resultados de Tropa de Elite, é preciso pensar como a violência se balanceou entre um problema social concreto, cujo tratamento é do ponto de vista da classe dominante, para se tornar um produto. E para comercializar, a narrativa precisa adquirir uma aceleração que talvez ande na contramão do debate que se quer realizar. Vou partir aqui de um suposto “subgênero” que fez muito sucesso no cinema brasileiro: o “favela-movie”. Desde curtas aproveitando os equipamentos da instituição “Nós do Morro”, até obras de sucesso como Cidade de Deus e Carandiru, fez-se muito com as histórias de violência, realismo e estética usando cenas de ação para retratá-las. É notável o sucesso que fez, onde a violência como produto atrativo vinha somente de Hollywood, agora vir com histórias da nossa esquina. Então vimos a história da disputa entre o bando de Zé Pequeno contra a de Mané Galinha e Cenoura sendo narrada pelo olhar de Buscapé no Rio de Janeiro. Inspirado num livro que daria uma trilogia por seus grandes três capítulos, resumida numa narrativa rápida, atraente e emocionante, a favela Cidade de Deus passou de problema social/segurança pública para produto cultural. É importante lembrar esse acontecimento como algo que viria se aprofundar. Nessa época, em 2001, era possível questionar por que não existia um “Tarantino brasileiro”, no sentido de um filme bonito, com extrema violência e bastante atrativo, mas com uma dose de comédia e reflexão metalinguística sobre a própria violência como um produto. O Brasil, por sua condição, havia já ultrapassado qualquer possibilidade de isto acontecer? A resposta estava na obra mais famosa, que não precisava forçar narrativas para tornar a violência um produto e manter seu debate sociopolítico. O filme Cidade de Deus, pela própria realidade social em que estava inserido, arrancava risadas quando era exibido em bairros do subúrbio carioca e olhares horrorizados em qualquer lugar. O fato é que apesar da maturidade de seu conteúdo, a estética da violência não permitiu à favela avançar além de ser um problema social de segurança pública. Quase que profético, Buscapé relata numa fala do filme “Para a polícia, morador de favela virou sinônimo de bandido. E a gente se acostumou a viver no Vietnã”. Não pelos fatos históricos, mas por como a estética foi recebida como forma de tratar esse problema social. Se esse filme tem o mérito de trazer o histórico de como os conflitos sociais podem tomar proporções desastrosas de escalada de militarização e guerra, caso não tenham um conteúdo coletivo e revolucionário, ele também trouxe o desdobramento dessa tragédia: a indústria cultural engolindo qualquer debate sobre os problemas sociais ao transformar essas mazelas em produto. E para além disso, o “Vietnã” da guerra às drogas já era uma economia pulsante, agora o cinema brasileiro trataria disso. E aqui, na sua falsa neutralidade, reduz o debate enquanto aparenta fazer “denúncia social”.

Dando um salto no tempo, mas lembrando da narrativa dos “favela-movie” transformada pela jornada do herói em Tropa de Elite, podemos ver uma tentativa de apropriação da esquerda sobre essa perspectiva. Aqui lembramos de Bacurau, em 2019, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Esse também carrega sua ambiguidade, pois o primeiro diretor vinha de obras mais reduzidas ao ambiente de uma vizinhança, com uma narrativa mais lenta e intimista. Porém, já tratava de problemas sociais latentes com um medo e violência de classe. Estes são O Som ao Redor e Aquarius, que são tratados pelo próprio autor como tendo sutis referências a filmes de suspense estadunidense dos anos 50 e 60. Ou seja, trata-se novamente de fazer uma tensão e horror cinematográfico com problemas sociais. O interessante foi em Bacurau, por ser uma ficção científica, que trouxe a tensão de um povoado pobre diante de uma suposta invasão inidentificável, até sugestão de alienígena teve, que passou a um conflito de invasão estrangeira por “gringos” pistoleiros que querem diversão matando essas pessoas. O curioso é que rapidamente o filme apresenta heróis, levando a uma catarse de vingança, que lembra muito os filmes Bastardos Inglórios, Kill Bill e Django de Tarantino. Porém, pode-se pensar que o filme busca uma visão mais serena da violência, como algo que pertence a um povo trabalhador e empobrecido, mas rico em sua cultura local formada nesse contexto. Essa inclusive tem seu entorpecente, consumido pelos moradores da comunidade, como algo persistente no filme, que é a semente comida por eles. Essa, parece ser uma alegoria que referencia os superpoderes dos heróis norte-americanos, ou a metanfetamina utilizada pelos soldados alemães na segunda guerra mundial. A beleza desse filme traz sua ambiguidade, se é uma metalinguagem sobre o uso da violência e como ela, amplamente difundida entre um povo pobre, pode fazer dele um oponente perigoso. Ou se é a construção de heróis, buscando simplesmente a catarse pela vingança histórica, trazendo uma solução fácil para problemas sociais complexos. Parece que prevaleceu o último, ao olhar o debate de pessoas de esquerda, que vibraram o filme ao verem as cenas aceleradas e de ação, como uma vitória que não se concretiza na vida real.

Novamente, não se trata de uma opção política que reduz essas obras ao debate “democracia x ditadura” ou “nacionalismo x imperialismo”. Trata-se aqui da alegoria da violência como produto, que parece ser obra de um uso banalizado da indústria cultural, tratada como neutra aos olhos de quem pretende fazer filmes supostamente “populares”. Existe somente esse meio de se chegar ao grande público? Wagner Moura pode ter sua legitimidade ao defender que as pessoas venham ao cinema, alegando que Marighella é um “filme de cinema, feito para o cinema”. Mas será que cinema popular é simplesmente a aceleração e redução dos conflitos sociais a soluções rápidas? A mensagem política certamente não chega com discursos eloquentes e elaborados intelectualmente, mas também o uso das alegorias e narrativas repetitivas talvez não tragam uma atração mais efetiva. Talvez seja preciso resgatar formas de filmes que tragam a desaceleração, que pode ser sentida nas cenas entre Marighella e seu filho, mas atropelada pela pressa em mostrar a ação como único atrativo. Se Tarkovsky disse que o cinema e o trabalho do diretor são a atividade de esculpir o tempo, a tensão entre o estático e o movimento, talvez a disputa política para debater e mobilizar nessa arte seja a busca por uma estética que luta contra a compressão desse tempo. Contra a redução, que obriga um dilema concreto como uma tarde que se torna uma eternidade em nossas emoções diante do cotidiano, a se tornar uma obrigação de atrações e ações para fissurar o público. Talvez, Marighella possa ser uma lição sobre o cinema sem tempo, que nos impede de passar boas mensagens de forma simples, em três minutos ou duas horas.

 

Ilustram este artigo fotografias de alguns dos filmes aqui mencionados, a saber, “Marighella”, “Tropa de Elite”, “Eles não usam Black Tie” e “Cidade de Deus”.

2 COMENTÁRIOS

  1. Muitos pontos interessantes pra se pensar. Gostaria de articular os dois trechos abaixo:

    “podemos lembrar que é no debate e na mobilização que o fascismo cresce. E nesse debate, a esquerda perdeu a razão. Isso não se resolve em obras de arte, mas é possível pensar em como através dos filmes seria possível ganhar um debate contra o fascismo.”

    “talvez a disputa política para debater e mobilizar nessa arte seja a busca por uma estética que luta contra a compressão desse tempo”

    Só é possível com muitas reservas dizer que a esquerda perdeu a razão e que o fascismo cresce no debate e mobilização. O fascismo mobiliza, e dá foco à ação justamente obstruindo e fetichizando os debates, colocando-os de modo torto e superficial, imediatista e, negando a profundidade real das coisas, falso. Quando o fascismo cresce a esquerda não deixa de ter razão, apenas deixa de ter força material para ancorar sua razão em processos práticos, históricos e reais. Fica, então, com uma razão oca, abstrata, inerte e pouco atraente. A classe trabalhadora é pragmática, quer saber como vai comer, beber, dormir e sonhar (cultura e satisfação de desejos etc). Só deixa as necessidades em um plano de longo prazo após muita experimentação e trabalho político, e mesmo assim desde que o básico lhe esteja assegurado. Quando a política de esquerda não consegue assegurar essas necessidades, e a política fascista, sempre pragmática e imediatista, consegue, demonstra aptidão prática e força, por isso há a debandada para o fascismo. Quando a política de esquerda deixa de se ancorar em discursos pedindo sacrifícios e consegue se ancorar em práticas e processos de solidariedade real, apontando alternativas concretas que respondem a demandas imediatas (e não necessariamente as de longo prazo), há fortalecimento e maior apoio – e o fascismo perde seu lugar. Aqui podemos articular, então, o trecho sobre a disputa racional com o fascismo e o trecho sobre a arte lutar contra a compressão do tempo. Para entendermos isso é preciso trazer para a conversa a questão da crise capitalista ou, se não se quiser falar em crise, a questão das formas atuais de organização econômica e política do trabalho: trata-se de formas sociais que reforçam o individualismo em um cenário de expectativas políticas decrescentes, ou seja, se sonha menos e se quer menos (nada de narrativas épicas), pois o foco passa a estar na própria sobrevivência diante da barbárie. A compressão aqui é não apenas do tempo, mas também do espaço, um processo inerente ao desenvolvimento capitalista e que se reforça com a reestruturação produtiva toyotista e, depois, com a uberização e a gig economy. Qual resposta o fascismo nos dá a esse estado terrível de coisas? Fortalecimento de ferramentas práticas e imediatas para cada um lutar pelo que é ou deveria ser seu (imagem catalizadora: ter uma arma). Qual resposta a esquerda nos dá? Retorno a formas carcomidas de mediação de conflitos e negociações com base num aparato estatal repressivo e em colapso financeiro (imagem catalizadora: corrupção estatal e mimimis para quem quer facilidades em vez de ir à luta). A falência do sistema capitalista, no sentido de sua incapacidade de se colocar como processo civilizado e civilizatório, é percebida diariamente pela classe trabalhadora. Qual resposta o fascismo dá a isso? Abaixo o sistema, vamos quebrar tudo. E a esquerda? Vamos restaurar, vamos reformar o sistema e deixar tudo bonitinho. Há um sequestro da radicalidade antissistêmica pelo fascismo. A esquerda não perde a razão, ela deixa de ser esquerda e se torna uma esquerda moderada em tempos em que não cabe mais a moderação, uma esquerda que não é anticapitalista porque não constrói alternativas teóricas e práticas para os problemas vividos pela classe trabalhadora (quando constrói, o fascismo perde espaço, como vimos em recentes mobilização de entregadores etc). Mas tudo isso são questões políticas em sentido estrito, que não tocam na questão da estética e da capacidade da arte enfrentar o fascismo (ou “vencer um debate” com o fascismo). O autor focou no tema da estética “que luta contra a compressão do tempo”, o que imagino que esteja focado na questão da narrativa histórica e da arte engajada, conectada com o cotidiano da classe e capaz de expressá-lo esteticamente, pela mimesis. Mas me parece que a arte tem o poder de intervir de forma menos direta e menos “científica”, lutando contra o fascismo sempre que apresenta a beleza (e a vida) em sua multiplicidade e multiversalidade. O fascismo é inimigo da diversidade, da sensibilidade, da coletividade não-hierarquizada e do contraditório (apresentado sempre como um dualismo pobre e de solução simples), e eu arriscaria dizer que o fascismo é inimigo até mesma da “complexidade”, devido ao peso que a simplificação e “redução” (teórica e prática) ali assume, seja na política ou na estética. Me parece que a arte, sempre que potencializa valores antagônicos aos valores fascistas, combate o fascismo: à medida em que atua humanizando os homens, de modo a torná-los aptos a exercer os dois principais valores antifascistas: a alteridade e a solidariedade.

  2. Pablo. A esquerda poderia manter a razão? Poderia. Pelos mesmos motivos que você colocou no seu comentário. Mas nesse parágrafo aqui embaixo, acho que fui feliz explicando que ela perdeu o debate com o fascismo ao pensar que combater isso significa repetir os mesmos apelos estéticos e narrativos. talvez por que essa mesma esquerda se contenta em ser gestora do capital ao invés de transformar as relações sociais de produção. Acho que nem se trata de transmitir valores de solidariedade e contestação, mas de colocar o problemas prático de forma sensível e concreta. Talvez uma situação de amor, família ou até um passeio com o cachorro poderia trazer narrativas mais profundas do que uma perspectiva reduzida a transmitir mensagens. O que chamaríamos de “filme panfleto”.

    “O problema do herói, não importando a vertente política que ele traga, é que ele não oferece um debate concreto sobre os problemas cotidianos dos trabalhadores. Traz uma fuga deles, bastante prazerosa inclusive. Logo, se alguns setores da esquerda pensam que podem usar essa alegoria como meio de transmissão de propostas políticas, isso mostra a ilusão com a mobilização social que pretende levar debates supostamente maiores para os menores, que afligem a massa do público espectador. Podem trazer uma tendência de verticalização que existe nesse setor, porém o apelo popular é forte, pelo sucesso que essas narrativas trazem. Há formas de trabalhar narrativas que superem essa lógica? Já houve o “herói multidão” de Sergei Eisenstein, quando se trata de narrativa rápida numa mensagem política. Porém, há muitos filmes que trazem adaptações dessa jornada, mesmo com foco em protagonistas individuais, mas que trabalham uma questão rica e criativa da nossa realidade social. Em termos de entrar no debate com o fascismo, podemos lembrar de Eles não usam Black Tie de Gianfrancesco Guarnieri no roteiro, onde mostra um grupo de famílias de operários, cujo drama é a tensão econômica de criar filhos, sustentar a vida, com a exploração de uma fábrica, debates entre sindicalistas e mobilizações grevistas. A prática da delação de alguns deles, trazida aqui como um elemento ambíguo e real, com a repressão de uma greve, mobilizada com dificuldade, pela conciliação do sindicato e pouca adesão da categoria, é um ambiente muito rico para debater as bases do fascismo durante a ditadura civil-militar. Isso é a dificuldade de mobilização diante de narrativas concretas, onde os protagonistas contam com suas próprias vidas para resolver. Outros que trazem boas discussões são A Queda e Os Fuzis, de Ruy Guerra, onde a violência e relações de classe são presentes. “O Homem que virou suco” também trazem uma boa discussão sobre o trabalhador precarizado sendo moído pela sociedade ao ser confundido com um homem rico e bem sucedido. Obras recentes, como Que horas ela volta?, Campo Grande e o Central do Brasil. Ou até o enigmático Manelão, Caçador de orelhas, de Ozualdo Candeias, um dos fundadores do movimento Cinema Marginal. Esses exemplos podem servir como narrativas simples, que debatem o fascismo no sentido de um movimento de capitulação da classe trabalhadora diante da exploração capitalista, que pode tomar proporções de paixão e apoio à repressão”

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here