Por Freguês pensativo
O centro da cidade de Goiânia está morto, é o que se diz ou se dizia desde há alguns anos. Essa percepção está no fato de que, terminado o caótico e tumultuado dia de trabalho no centrão, o que sobra para a noite é um tráfego reduzido, ruas vazias e pessoas sem-teto que perambulam por ali, incluindo aqueles que por aqui são chamados crackeiros. Não há tantos bares como um dia já teve, não há lazer noturno como um dia já teve, não há tanto movimento depois das 18 horas como um dia já teve. Por isso um dia foi decretada a morte do centrão.
Alguns empresários espertos tiveram alguma ideia e bem no meio do centro histórico, a poucos metros da Praça Cívica, encrustado entre prédios residenciais, reformaram um casarão da época em que a cidade era uma mocinha e transformaram-no em uma pizzaria gourmet. As comidas e bebidas são de excelente qualidade e o ambiente ficou muito bonito, o que rendeu a essa empresa vários elogios em meios de comunicação que saudaram, sobretudo, o papel de preservador do patrimônio histórico e arquitetônico exercido, algo que, algumas pessoas ressaltaram, nem o poder público foi capaz de exercer. O restaurante atrai clientes que podem pagar pelas mercadorias de boa qualidade, o que faz muitos concluírem que toda empreitada tem o resultado positivo de “valorizar a região”. Talvez o Centro não esteja morto.
Morto o Centro nunca foi. Os sem-teto que por ali vivem são moradores do Centro, assim como os moradores dos prédios e das poucas casas que ainda restam, e muita vida continua após o expediente regular de trabalho. Morto, sim, só se for no sentido da falta de opções de lazer, como um dia já houve inclusive com patrocínio do poder público, com mostras de teatro, cinema e o famoso Chorinho, evento bem popular que ocorria no centro da cidade há poucos anos. Ainda assim, botecos mais populares resistiram ao tempo e continuaram existindo, além de outras opções de entretenimento, mas é verdade que o Centro morreu no sentido de não mais oferecer o que um público de classe média identificada como “alternativa” quer usufruir. Os empresários da pizzaria abriram um caminho.
Alguns jovens empreendedores, sendo uns que eram trabalhadores ou estudantes, resolveram juntar um capital e investir no Centro, apostando na ideia de oferecer um lazer alternativo à hegemonia do sertanejo mas sem deixar de romper com a hegemonia dos bares. São empresas bonitas, bem decoradas, agradáveis e com ótimos cardápios, além das músicas que agradam à clientela “alternativa” formada por uma heterogeneidade de indivíduos com uma preponderância daquele público típico de esquerda e identitários, sendo muitos trabalhadores qualificados ou estudantes universitários. Além dos novos bares, um cinema de rua que ainda sobrevive concorrendo com os cinemas de shopping exibindo os lançamentos hollywoodianos — além dele, o último cinema de rua sobrevivente é pornô. E também eventos ocasionais como a feira de discos de vinil, uma atividade que, obviamente, atrai um público bem específico, mas que faz parte do empreendimento coletivo desses pequenos patrões de dar vida ao centro.
Acontece que alguns desses pequenos patrões são pessoas identificadas com a esquerda, sendo uns com passado de militância política, e daí surgiu um lema comum entre eles que é “Ocupe o Centro!”. Na prática os bares são empresas concorrentes, mas pelas vias de publicidade um indica o outro, afinal a clientela alvo é praticamente a mesma, sendo o objetivo maior o de “ocupar” o Centro, dar vida e, na esteira do empreendimento da pizzaria gourmet, valorizar a região. Quanto mais gente no centro procurando uma opção de lazer, melhor para todos. Mas apesar da retórica estar viciada com o vocabulário de esquerda anticapitalista, a prática é que são empresas de propriedade privada como qualquer outra, porém com temáticas diferentes — ou nem tão diferentes, considerando que há tantos outros bares parecidos em bairros mais nobres. Apesar dos sonhos e desejos mais íntimos de alguns proprietários e sócios quanto a uma sociedade futura, a prática no presente os faz empregadores. Falar em ocupar o Centro, assim, com trejeitos de esquerda, só transporta para a lógica da empresa privada e da urbanização capitalista os ecos das palavras revolucionárias; é uma máscara. Não importa o que falem, não importa quais grafites tenham em suas paredes nem quais os nomes dos drinks no cardápio, ocupar pelas vias do mercado em nada rompe com a dinâmica da cidade capitalista, então o direito à cidade visado pelo “Ocupe o Centro!” continua sendo exclusivo.
Durante o dia, quando o Centro é “vivo”, é uma loucura de circulação de pessoas e mercadorias. Quantos desses trabalhadores que passam a manhã e a tarde por ali usufruem dessas novas opções de lazer? Quantos deles de fato moram no centro ou perto dali? Aqueles estudantes trabalhadores do vários cursinhos e cursos técnicos na região frequentam esses bares? Qual o perfil daqueles clientes que pretendem, junto a essas novas empresas, “ocupar” o Centro? Para muitas pessoas o Centro é local de exploração do trabalho e já estarão em casa (ou em um ônibus lotado, ou em algum terminal) quando as alternativas de lazer abrirem as portas. Para quem trabalha ou precisa resolver algum “corre” no Centro, talvez até passe despercebido que ali é um grande documento histórico sobre a construção da capital, seja pelo seu desenho urbanístico, pelos monumentos, prédios públicos ou outros imóveis que sobreviveram à especulação imobiliária em consórcio com o poder público, que em Goiânia sempre entendeu tombamento pelo sentido mais literal. É esse aspecto de documento histórico que atrai interessados pela história da cidade e pela variante goianiense da art déco e que também atiça o fetiche hipster daqueles saudosistas do tempo em que não viveram. E é esse fetiche hipster pelo Centro que embasa empreendimentos como o “Ocupe o Centro!”.
Muito longe do Centro há várias ocupações de terrenos por trabalhadores sem-teto. Algumas coordenadas por movimentos sociais de luta por moradia, outras não, mas é certo que para muitos trabalhadores, principalmente com a carestia, desemprego e efeitos da pandemia, ocupar um pedaço de terreno na periferia se tornou a primeira opção para sobrevivência. Para esses moradores o Centro é muito longe, não apenas geograficamente: o Centro é outro mundo e praticamente nunca frequentam, exceto quando precisam de algum serviço que só existe por lá; para outros o Centro é uma lembrança do caminho de quando vieram da estação rodoviária. O Centro não é para qualquer um e, de fato, é preciso ocupá-lo.
“Ocupe o Centro!”, na perspectiva desses trabalhadores sem-teto, teria outro sentido: seria uma nova frente de luta, além da ocupação de terrenos nas periferias, reivindicando a finalidade social de imóveis abandonados no centro e que poderiam ser destinados a essas pessoas sem moradia. Ocupar o Centro, por essa via, afrontaria a propriedade privada e iria contra a ideia da valorização da região, afinal muitos vizinhos preferem um imóvel abandonado a um imóvel cheio de gente pobre e com uma bandeira vermelha na fachada. Com esse exemplo, sim, o lema “Ocupe o Centro!” cumpriria com seu sentido original de luta pelo direito à cidade em antagonismo à lógica do mercado imobiliário que prefere espaços exclusivos e caros, como empresas que atendem a determinados nichos de mercado.
Goiânia já foi considerada por um estudo da ONU como a cidade mais desigual da América Latina — não sei se ainda é —, o que significa que a discrepância entre ricos e pobres é muito evidente. Déficit habitacional, aqui há: muita gente sem casa e muitíssimas casas sem gente. Problemas de transporte, aqui também há. Para além das zonas centrais, há uma grande periferia e ainda há as cidades da região metropolitana. Dessas regiões saem milhares de trabalhadores todos os dias para as zonas centrais, incluindo o Centro, enfrentando um transporte coletivo regido pelo lucro: linhas insuficientes que nem sempre vão direto ao centro, demandando conexões em terminais ou o pagamento de mais de uma passagem para se chegar ao destino; ônibus superlotados; linhas com horários que atendem preferencialmente o fluxo de força de trabalho, diminuindo o ritmo à noite quando um ônibus faria toda a diferença para se usufruir de um lazer no Centro. Nos novos bares do Centro, que surgem como proposta de “ocupação” de espaços, ou a reivindicação ao direito por um pedaço da cidade, só podem frequentar aqueles que já têm carona ou um carro próprio ou, ainda não saindo do âmbito do carro próprio, aqueles que usam serviços de transporte por aplicativo. Muitos trabalhadores se encaixam nesses parâmetros, claro, inclusive eu — trabalhadores que são explorados, sem dúvida, mas que pela natureza das profissões ou pelo grau de qualificação já têm um salário que permite frequentar esses espaços. Não são todos os trabalhadores que podem usufruir disso, aliás a grande parte dos trabalhadores têm outros rendimentos e outras concepções de lazer.
Eu acho mesmo que todo trabalhador deveria ter direito a frequentar um cinema de rua no Centro, ou a frequentar um bar com ambiente confortável e bem decorado, a comer pratos elaborados por pessoas estudadas em gastronomia e a tomar um chopp IPA; ou ter o direito a morar, visitar, passear e usufruir do grande documento histórico que é o Centro e com todos os serviços que lá são oferecidos. Porém o Centro é caro e os preços que esses bares colocam não são tão acessíveis. É a valorização da região. Qual impacto o “Ocupe o Centro!” pode ter no âmbito do direito à cidade? É uma proposta de pequenos empresários solidários entre si que “hipsteriza” o lazer no Centro. “Hipsterizar” é “gourmetizar” e isso significa gentrificar. Os espaços não deixam de ser exclusivos, afinal o público-alvo é bem específico; os preços das mercadorias são altos, e só pode frequentar quem tenha condições de transporte. A “valorização”, ou seja, a gentrificação, acaba por excluir quem não está no nível dos padrões criados na região — se o “Ocupe o Centro!” tiver sucesso como esses empresários desejam, o que será dos sem-teto do Centro? O que será dos crackeiros? O que será dos moradores inquilinos que não podem suportar mais um aumento de aluguel? O que será da proposta de se popularizar o Centro? Quem vai poder frequentar os lazeres do Centro?
Apesar do vocabulário esquerdista desses jovens pequenos empreendedores, ocupar o centro na perspectiva deles, ou seja, pela iniciativa privada, é o que já acontece há muito nas grandes cidades: gentrificação. Ocupemos, sim, o Centro. Mas de que tipo de ocupação estamos falando?
As fotografias de rua no Centro de Goiânia que ilustram esse texto são de Renato Vital.
Quem tem um patrão de esquerda sabe que além da exploração vêm a esperteza de lidar (leia-se perseguir) trabalhador que se mobiliza e que aponta as contradições.
Este texto é estupendo! Fiquei instigado a refletir sobre a apropriação de um discurso mais radical (mesmo que sejam apenas fraseologias) como forma de competir com outros capitalistas ou semicapitalistas no intuito de atrair mais clientes e, naturalmente, conseguir mais lucros ao vender suas mercadorias. “Ocupe o centro”, retirando o véu místico dessa fraseologia quando dita por esses pequenos capitalistas, significa “ocupe meu comércio e compre minhas mercadorias”. Se assemelha um pouco com aqueles “capitalistas de aplicativos” (na falta de um nome melhor) que no discurso dizem fornecer serviços de qualidade, sem burocracias, ecologicamente sustentáveis etc, mas que na verdade só dizem isso para vencer a competição com outros capitalistas. Minhas congratulações ao “Freguês Pensativo” que foi um freguês que, indo além das aparências, não caiu no canto da sereia capitalista recheadas de fraseologias oportunistas. Compartilho também minhas reflexões:
Para mim, o centro de toda cidade está realmente morto. Na verdade, não apenas o centro das cidades, mas a sociedade capitalista em sua totalidade, isto pois, o trabalho morto é que impera sobre o trabalho vivo, isto é, o trabalho produtivo é submetido ao controle de um não-trabalhador. O “freguês pensativo” deve ter olhado ao seu redor enquanto consumia as mercadorias de um patrão “politicamente correto” e percebeu, acertadamente, que aquele lugar era frequentado por um público bastante específico e que “ocupe o centro” não passava de uma fachada. No entanto, deve-se ir além disso. O problema não é o acesso ao lazer, acesso a casas vazias por aqueles que não as possuem, acesso a um bar bonito por todos. Permitir o acesso (ao lazer, às casas, aos bares, a arte etc) não mudaria muito a situação deplorável dos centros da cidade. E digo mais, em alguns países de capitalismo imperialista, os burgueses permitiram, entre as décadas de 1950 e 1960, efetivamente o acesso ao conjunto da população a TUDO isso. Mesmo com o acesso, as cidades continuaram mortas. O que mudou foi que o cheiro de morte foi ocultado pelo cheiro doce de algumas flores, como acontece em qualquer funeral. E estas flores apodreceram a partir de 1960 e se somaram ao cheiro da putrefação real das cidades. O que realmente deu vida àquele território geográfico das cidades foram as manifestações, protestos e greves que ocorreram ao longo da década de 1960 que questionavam não alguns aspectos da cidade, mas a própria cidade. Não questionavam o acesso ao lazer, mas o próprio lazer. Não questionavam o acesso à universidade, mas a própria universidade. Isto deu vida àquele lugar a partir do enterro do cadáver-cidade. Finalmente vislumbramos a celebração do vivo.
O “Centro”, portanto, já está ocupado da melhor forma possível que um “centro” pode ser ocupado atualmente. É infelizmente essa a tendência fundamentada na submissão do trabalho vivo pelo trabalho morto. Enquanto o centro for “um centro”, continuará, por mais que exijamos sua ressurreição, um cadáver. E pior, um cadáver que já nasceu morto. Exijamos não sua ocupação, e sim sua destruição, seguindo o exemplo do movimento piqueteiro na Argentina que questionaram a própria cidade. E isso o “freguês pensativo” concorda:
“Ocupar o Centro, por essa via, afrontaria a propriedade privada e iria contra a ideia da valorização da região, afinal muitos vizinhos preferem um imóvel abandonado a um imóvel cheio de gente pobre e com uma bandeira vermelha na fachada. Com esse exemplo, sim, o lema “Ocupe o Centro!” cumpriria com seu sentido original de luta pelo direito à cidade em antagonismo à lógica do mercado imobiliário que prefere espaços exclusivos e caros, como empresas que atendem a determinados nichos de mercado”.
No entanto, apenas ocupar não é suficiente. E não devemos exigir “direito à cidade”, pois isto significaria o direito a algo já morto. Exijamos, então, o impossível: a destruição da cidade através do questionamento da propriedade privada e contra a submissão do trabalho vivo pelo trabalho morto! Pelos conselhos de bairros e conselhos de fábrica que gerirão a sociedade, invertendo a relação: o trabalho vivo reinará sobre o trabalho morto!
vamos lá né.uns desses patrões ai são anarquistas e na epoca quemilitavam eram sectrários pra caralho e recusavam a conversar com outras forças de esquerda pq com pelego não se discute. Depois cederam uma sala do imovel pro psol porque devia rolar um aluguel. Agora fazem reunião com vereador do cidadania, veereadora do Psdb e comando da guarda civil metropolitana pro rolê deles prosperar no centro.
Numa das diversas noites quentes de Goiânia, um jovem rebelde decide se reunir com alguns desconhecidos para beber uma cerveja gelada. Para sua desgraça, sua rebeldia não o permitia beber em um bar cuja música mais tocada em seu interior seja denominada de “sertanejo universitário”. Ele se recusava! Acreditava que a tolerância dos ouvidos para com a música sertaneja era bestializante. Não! Seu ouvido não aprenderá a tolerar acordes maiores tocados em um violão como forma de sustentar duas vozes que nada acrescentaria para o mundo. No entanto, para aumentar ainda mais sua própria desgraça, sua rebeldia também não o permitia compartilhar um mesmo local com pessoas despolitizadas. Não! Seu ouvido, além de não tolerar a música sertaneja, não tolerá, igualmente, qualquer conversa que não seja politizada, que não aborde a luta contra o Estado, ou o machismo e racismo estrutural da nossa sociedade. Assim, reuniu em um bar onde tocava os sucessos de Belchior, aquele indivíduo que diz de forma profunda e inteligente que é APENAS um cantor latino-americano e que utilizava de forma estupenda acordes menores e com sétima em seu violão; se reuniu com os amigos em um bar cuja conversa entre as pessoas era incrível, pois abordava o racismo estrutural que surgiu de alguma estrutura estruturante que nos estruturava, e que a cada brinde gritava “viva la revolución” e todos respondiam com “viva!!”; e ainda, aquele bar que nosso jovem rapaz escolheu frequentar daria a oportunidade para ele desfrutar dos corpos femininos praticamente nus, pois todos ali eram a favor da liberdade sexual da mulher. Mas não se enganem! Não mesmo! Nosso rapaz não olhava para aqueles corpos nus para se excitar, pois isso seria muito superficial e, com certeza, seria sintoma do machismo estrutural que também surgiu de alguma estrutura estruturante que nos estruturava. Nosso rapaz rebelde apenas olhava para aqueles corpos nus como forma de contemplação da revolução sexual que está por vir. Nosso rapaz, satisfeito, com certeza pagaria um preço maior na cerveja para que sua rebeldia vivesse sempre em paz!
Depois do anúncio de um evento hardcore-punk patrocinado por um candidata pelo PSDB, um bar com temática anarquista e o MST, que privatizará temporariamente um beco da cidade (de acesso público), sendo necessário o pagamento de 50 reais para usufruir do show, uma juventude punk que não tem 50 conto pra pagar no evento e puta com a instrumentalização das pautas populares por um anti-capitalismo de estilo de vida extremamente gourmetizado desabofou no twitter. Tais comentários foram coletados por organizadores do evento, unificados e depois compartilhados em forma de vídeo. A crítica era que esses jovens punks que não tem 50 conto pra acessar um local que é público e curtir shows de bandas da cena do qual fazem parte são irresponsáveis por desqualificar o evento, por os organizadores fazem muito por 1) pagar o que não é pago para os artistas, 2) fazer “operação” de bar todo trans, 3) distribuir absorventes em presídios, e mais algumas ações sociais. Me lembrou muito dos debates recentes na direita sobre quem tinha mais direito de falar mal do outro baseado na quantidade de dinheiro que doou para o Rio Grande do Sul. Neymar, inclusive, doou R$ 21 milhões.