Por Verónica Gago

 

O texto a seguir é a transcrição, traduzida e editada (com supervisão da autora) por mim, Isadora Guerreiro, da apresentação da professora e ativista argentina Verónica Gago no “Foro por La Igualdad: La democracia y los derechos a 20 años del 2001” realizado no dia 2 de dezembro de 2021 em Buenos Aires. Para assistir a fala completa: https://youtu.be/TcHi-S2MJEo a partir de 1h22min. Acredito que sua fala traz muitos elementos que dialogam com o contexto brasileiro e pretendo comentá-los na próxima coluna, iniciando um debate com a autora.

Vendo as distintas iniciativas destinadas a recordar 2001, me parece que há um sentimento de perplexidade, perturbador, que tem a ver com o fato de que recordamos o que está acontecendo. Não deixa de ser inquietante ver discursos econômicos e personagens deste momento passado que hoje estão na primeira página dos jornais. Esta superposição temporal é algo estranho, pois é algo que tem a ver com a passagem do tempo, mas também com uma espécie de loop que se repete – o que expressa tanto a essência da crise, quanto o que significa sua recursividade; como ela se repete e como ao mesmo tempo não estamos no mesmo lugar. Quais são então as diferenças?

Existem duas hipóteses que estão sendo discutidas: por um lado, seriam as forças da direita aquelas que teriam sabido interpretar certas pautas de 2001, e que hoje seriam as forças expressivas dessa crise. Acredito que esta hipótese – de que é a direita a canalizar certos impulsos daquilo que foi 2001 – seja bastante problemática, mas acho que temos que discuti-la. A outra hipótese que está circulando como análise da conjuntura é de que há uma espécie de “2001 sem 2001”. Como se tivéssemos os dados objetivos, certas condições estruturais objetivas de 2001, mas ao mesmo tempo faltaria, ou estaria ausente, a irrupção popular de rua, de forças sociais e políticas que se mostrou naquele momento.

É importante confrontar as duas hipóteses, pois segue havendo movimentos sociais, segue havendo discussão pública, segue havendo a perspectiva do que significa dezembro na Argentina, como a presença sempre possível de uma ruptura social e popular com capacidade de impugnação política “desde abajo” que nunca é totalmente anulada ou retirada.

De 2001 para cá existem dois elementos que eu gostaria de assinalar, que tem a ver com essas camadas de temporalidade da crise. O primeiro é sobre o que aconteceu com a questão do trabalho. Para dizê-lo de uma maneira muito sintética: se, em 2001, uma das principais pautas da politização coletiva era o desemprego e o que significava seu enfrentamento dentro de um regime de exclusão de mão de obra das reformas neoliberais, hoje estamos, inversamente, sobreocupados(as): há uma espécie de hiperprecarização por sobreocupação. Precisamos refletir sobre esta clivagem: se naquele momento o fundamental era a pauta do desemprego e a exclusão, hoje há uma espécie de inclusão por extrema precarização e superposição de jornadas de trabalho (que em muitos casos não chega nem sequer a um salário).

Há algo a refletir sobre o que significa esta disputa de tempo. Quais são as novas dinâmicas de apropriação de tempo e de trabalho? E, além disso, lembrar que também esses são os dois elementos a partir dos quais se discute mais teoricamente sobre o conceito de superexploração – ou seja, as condições de apropriação de tempo e de trabalho que já não se podem mais contabilizar por aquilo que chamamos de jornada laboral, senão pelas próprias condições de reprodução social.

O outro ponto – que está totalmente ligado a este – é a questão do endividamento, que se capilarizou, se expandiu para os domicílios, as famílias e os indivíduos. O endividamento se transformou numa forma de amortizar a diminuição de rendimentos e o peso da crise. Relacionado a isso, temos pensado sobre qual é a imagem que circula sobre a crise? Se há uma imagem própria de 2001 era a do estallido; e o que estamos vendo agora é que, nos últimos anos, estamos passando por uma implosão da crise. Não é que não exista crise, mas é que ela não explode da mesma maneira, para fora, nas ruas, mas implode – explode para dentro – nas casas e nos territórios. Isso nós podemos ver claramente nas dinâmicas de violência, tanto as violências de gênero dentro das casas, quanto nas distintas dinâmicas de violência no território.

Essas formas de violência reorganizam formas econômicas. Reorganizam as formas de organizar a produção e a reprodução coletiva. Então acredito que nesta transformação da imagem do estallido à implosão há outra clivagem importante, e por isso eu falava sobre “2001 sem 2001”: a crise tem uma metamorfose particular ligada às dinâmicas de trabalho, às formas de violência e a outras imagens com as quais podemos pensar suas particularidades.

Para entrar na questão da dívida em particular, acredito que se possa fazer uma genealogia de como, na Argentina, houve uma expansão do sistema financeiro em direção aos setores que estavam por fora do radar das instâncias financeiras bancárias clássicas; e como os subsídios sociais funcionaram por vários anos como parte do vínculo, ou forma de acesso, à bancarização compulsória de certos setores sociais – em particular dos mais precarizados. Precisamos discutir então sobre a relação entre bancarização e políticas sociais, que se modificaram nos últimos 15 anos – basta pensarmos sobre o que aconteceu a partir do IFE [Ingreso Familiar de Emergencia]. Pois existem formas de endividamento e formas financeiras que absorvem recursos das políticas públicas. O fundamental é como a expansão e capilarização do endividamento doméstico se transformou em uma forma de organizar a gestão cotidiana da pobreza, da amortização da inflação e da dolarização dos insumos básicos da reprodução social – ou seja, medicamentos, alimentos e moradia.

Isso é chave para pensar o feminismo argentino em particular, sobre como ele se politizou a partir da discussão sobre a dívida. Pois esta capilarização do endividamento doméstico colocou as casas como terminais privilegiados do sistema financeiro. Temos então um deslocamento e uma espacialidade própria de como as finanças aterrissam nestes territórios domésticos, como a dívida se tornou uma questão chave para garantir a reprodução social, para completar rendimentos; e como a dívida tem também múltiplos sentidos, pois as casas – como terminais financeiros – acabam gerindo distintos tipos de dívida. Quando fazemos pesquisa empírica, vemos que esses domicílios têm uma multiplicidade de dívidas e, muitas vezes, dívidas que financiam dívidas. Então temos que pensar de que forma o endividamento doméstico está garantindo a reprodução social; a forma como este endividamento é múltiplo e, portanto, implica em distintas taxas de juros, distintas relações pessoais ou mediadas com distintas entidades financeiras bancárias e não bancárias; e a maneira como a dívida se relaciona com as políticas públicas. São todas distintas formas que caracterizam esta implosão da vida cotidiana, esta impossibilidade de garantir a reprodução social, esta superexploração do nosso tempo e do nosso trabalho que se compensa com dívida, com essas maneiras de amarrar o futuro, por conta da impossibilidade de resolver, com rendimentos atuais, a vida cotidiana nos seus elementos mais básicos.

Na Argentina há algo interessante, pois isso se discute em termos públicos e políticos. Em particular, se conseguiu – graças à massificação do feminismo – tomar esse tema histórico do endividamento externo e vinculá-lo ao endividamento doméstico. Em particular depois do estado que ficou o país com o endividamento de Macri; e a partir das formas como se fez pedagogia, em particular pedagogia feminista, para mostrar como as políticas de austeridade, de ajuste, de corte de recursos públicos – que implica em endividamento externo –, se traduzem na obrigatoriedade de se tomar dívida para viver. Essa é uma pauta que se consolidou como eixo de inteligibilidade, de compreensão, para entender que hoje nos vemos obrigados(as) a tomar dívida, a financiar cartões, empréstimos entre vizinhos, informais, de todo tipo, para viver.

O ponto importante é ver como a questão do domicílio, do doméstico e das moradias, se transformou nesse terminal financeiro. Isso ao longo da pandemia se aprofundou enormemente, justamente por causa da crise do aluguel – e, o que vimos surgir durante a pandemia, por conta de uma quantidade enorme de dívidas de aluguel, foram os despejos e remoções (inclusive quando esses alugueis estavam garantidos formalmente). E vimos que durante a pandemia também aumentaram os números de violência doméstica e procuramos visibilizar a engrenagem entre essas formas de violência financeira e violência de gênero – em particular observando que os despejos se deram principalmente entre as mulheres com filhos, e que as imobiliárias pressionaram e chantagearam principalmente as inquilinas mulheres.

Portanto, a moradia se converteu, durante a pandemia, no epicentro do conflito, não apenas pela soma de dívidas, mas também porque é às moradias que se dirigiu toda uma nova tecnologia financeira – que tem a ver também com as plataformas digitais e com uma nova onda de bancarização ligada a formas de inclusão financeira que se aceleraram tanto para que as famílias acessem subsídios (como fez o IFE, que incluiu toda uma população que não estava no radar); quanto toda uma infraestrutura para as plataformas digitais de serviços mais ou menos baratos que ajudaram a resolver as condições de precariedade trabalhista, e de intensificação dos cuidados que aconteceram na pandemia.

Com Luci Cavallero colocamos o conceito de “violência proprietária”, para pensar como a propriedade exerce e intensifica formas de violência durante a pandemia. O que vimos foi emergirem e se multiplicarem dívidas durante a pandemia, que estão cada vez mais ligadas à reprodução social e que colocam a moradia no centro de uma conflitividade estratégica. Pois hoje vemos que a moradia – que antes era conceituada como espaço de resguardo, o privado, o doméstico – agora é completamente assediada por tecnologia financeira, tanto pela questão do endividamento, quanto pela questão das plataformas, ou ainda pela questão da especulação imobiliária.

Então, para terminar, queria dizer dois pontos a mais. Um tem a ver com pensar e mapear os circuitos destas formas de extrativismo financeiro, que articulam tanto estes sistemas de endividamento, quanto a especulação imobiliária, como a conexão entre a expansão da fronteira do agronegócio com o aumento dos preços do aluguel. Não é casual que hoje, na Argentina, se está discutindo lei de aluguel e lei de terras como os dois pontos de maior conflito deste momento. E temos que recordar que as finanças, ainda que se queiram autônomas, que pretendam se abstrair permanentemente do corpo e do solo, não podem deixar de depender do trabalho e da terra. São os dois elementos que, embora as finanças permanentemente queiram se emancipar, não podem deixar de lado – e isso é o que hoje está em conflito. E a moradia está no centro, justamente, pois consegue articular trabalho precarizado, endividamento e a questão da reprodução social.

Então me parece que há uma espacialidade aí que é chave, estratégica, que podemos abordar de distintas formas – desde as políticas de moradia, até a especulação financeiro-imobiliária, (especialmente sobre certos bairros), ou sobre a expansão da fronteira do agronegócio e sua repercussão no mercado imobiliário, e ainda o que implica o endividamento na reprodução social. Creio que há vários eixos que podemos visibilizar e que estão hoje no centro do conflito, conectando permanentemente esta discussão sobre a dívida no nível público – a dívida externa – com a dívida em sua tradução cotidiana, a dívida que assegura o que comemos, como vivemos e a quem devemos.

1 COMENTÁRIO

  1. Caminhando pelas ruas de Buenos Aires é notável a quantidade de propagandas de serviços relacionados às criptomoedas. Carteiras virtuais, jogos de NFTs, novas moedas, etc, etc. Acho que isso revela também uma condição material de vida onde poupar dinheiro é um grande desafio. Uma década inteira vivendo com inflação de dois dígitos, tocamos (espero) um teto de 50% este ano. O valor do salário mínimo em dólares vem caindo a cada ano. Me parece que junto das novas formas de endividamento, estamos vendo também a disseminação de novas formas de poupança.

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