Por M. Major
Investimento, no sentido macroeconômico, é todo capital alocado para aumento da capacidade produtiva, seja para maior produção de um bem ou expansão da oferta de um serviço. Incluem-se, portanto, gastos com máquinas, ferramentas, novos estabelecimentos, contratação de novos empregados, etc. Essa categoria tem relação direta com o crescimento da economia, uma vez que é o mecanismo pelo qual a oferta se expande.
Desde 2008, uma drástica mudança ocorreu nas decisões de alocação de capital, ligada ao processo de expansão monetária e o consequente hiperdesenvolvimento do mercado financeiro. A fim de controlar as consequências da crise, como a queda no preço de ativos e falência de grandes empresas, os principais Bancos Centrais do mundo passaram a ativamente expandir seus balanços comprando milhares de ativos públicos e privados [1].
Desde 2007 até o final de 2021, na Europa, o montante de ativos sob posse dos Bancos Centrais (Banco Central Europeu e Bancos Centrais nacionais) aumentou mais de quatro vezes; o do Banco do Japão (BoJ) e do Federal Reserve (FED – EUA) cresceram cerca de seis e oito vezes, respectivamente. Somando a alta dos ativos destes três bancos são aproximadamente US$ 21 trilhões que durante este período saíram dos bancos e foram injetados nos Tesouros dos Governos ou balanços das empresas e bancos que venderam tais ativos [2].
Contradizendo a cartilha econômica neoliberal [3], apesar deste enorme montante de capital injetado na economia, o mundo desenvolvido viveu anos de inflação super controlada, chegando a problemas de deflação por diversas vezes.
Se o aumento brutal da oferta monetária não gerou pressão de alta nos preços de consumo, este capital ficou acumulado em alguma outra parte da cadeia. O dinheiro arrecadado com a venda desses ativos não foi direcionado para investimentos, no sentido macroeconômico dado acima, e não está sendo convertido em novas fábricas, compras de máquinas, novos empregos. Existe mais dinheiro na economia, mas este dinheiro não está rodando pelas mãos da população.
Um forte indicativo de que este capital não está sendo convertido em investimento é a estagnação do crescimento da economia real (indústria, varejo e serviços), durante o mesmo período. Nota-se forte inflação nos preços dos ativos no mercado financeiro, cujo crescimento não é acompanhado pelo desenvolvimento dos outros setores da economia. Cria-se um distanciamento entre os dois mundos, o mercado financeiro cresce e se desenvolve, drenando recursos da indústria e varejo.
O principal diagnóstico atrela a falta de investimento aos supostos altos riscos e custos implícitos. No caso dos riscos, em cenários de estagnação, investir com expectativa de queda de demanda não faz sentido. Deste modo, a solução seria criar incentivos fortes o suficiente para driblar o risco.
Estes incentivos podem se dar por grandes investimentos públicos, que dariam início a um processo de aquecimento da demanda, ou por tentativas liberais de melhorar o chamado “ambiente de negócios”. Desta segunda opção, surgem agendas reformistas voltadas normalmente para diminuir os custos das empresas. Contudo, o corte de custos não garante que o capital será destinado para investimento.
Cortar impostos pagos pelas empresas foi a solução do governo Trump em 2017. Contudo, os investimentos privados no PIB dos Estados Unidos não reagiram, nem o emprego subiu como consequência direta desta medida. Os donos de empresas utilizaram o excedente concedido para comprar de volta as ações de suas empresas (buybacks) e, portanto, inflar o valor das mesmas no mercado financeiro.
No Brasil, um discurso muito semelhante foi utilizado para aprovar a reforma trabalhista durante o Governo Temer. A crença de que reduzir os custos dos trabalhadores aumentaria o emprego, uma vez que as empresas contratariam mais, foi completamente frustrada. Antes mesmo dos efeitos da pandemia, nota-se que o montante de pessoas empregadas no Brasil não reagiu à reforma. O que se viu foi uma alteração na composição do emprego, que passou de maioria formal, com carteira assinada, para enorme montante de empregados informais, temporários e/ou emprego por conta própria.
O setor privado aloca seus recursos buscando exclusivamente maior lucro. Logo, se o capital não está sendo encaminhado para investimento, outro destino mais vantajoso está na mesa. Difícil, contudo, competir com o regime gerado pelos grandes Bancos Centrais, sob o qual ativos de todas as qualidades são jogados em seus balanços, garantindo, por hora, a estabilidade de um mercado financeiro inflado.
O papel central das finanças no mundo atual implica em constante risco para a estabilidade do sistema econômico. A chave para isso é a imensa capacidade das finanças de inflar risco, consenso inclusive entre economistas liberais. Nas próprias palavras de John Maynard Keynes (1936):
Speculators may do no harm as bubbles on a steady stream of enterprise. But the position is serious when enterprise becomes a bubble on a whirlpool of speculation. When the capital development of a country becomes a by-product of the activities of a casino, the job is likely to be ill-done.
Estamos presos em um perigoso ciclo vicioso, se o capital está voltado para o mercado financeiro, os demais setores ficam enfraquecidos, o emprego fragilizado e, portanto, a demanda também; sem demanda, alocar capital em expansão de oferta não faz sentido e o investimento sistematicamente volta para o mercado financeiro.
Notas
[1] Quantitative Easing é o nome da política monetária adotada pelos Bancos Centrais como reação à crise de 2008.
[2] Fonte dos dados: https://www.yardeni.com/pub/balsheetwk.pdf
[3] Na economia monetária, a teoria quantitativa da moeda (Quantity Theory of Money QTM), afirma que o nível geral de preços de bens e serviços é diretamente proporcional à quantidade de dinheiro em circulação, ou oferta de moeda. Tal teoria foi desenvolvida no final do Século XIX e seus principais nomes são Simon Newcomb, Alfred de Foville, Irving Fisher e Ludwig von Mises.
M. Major, gostaria de entender uma coisa. Se os Bancos Centrais tomaram tais medidas, aumentando a oferta de dinheiro, justamente para salvar a dita “economia real”, esses efeitos no mercado financeiro que você comenta, não são justamente o resultado necessário da sobre-vida da “economia real” conseguida por essas medidas?
Você diz que o mercado financeiro “drena” recursos da “economia real”. Essa drenagem não é justamente um mecanismo necessário para evitar uma crise maior de sobre-produção, num contexto de baixa demanda?
As medidas tomadas pelos BCs em 2008 não foram únicas, foram acompanhadas de fortes pacotes fiscais dos Governos. De fato, o conjunto dessas medidas conseguiu na época garantir a recuperação de todos os setores da economia. Contudo, os pacotes fiscais, ao cumprirem o seu propósito, tiveram fim; curiosamente o QE dos Bancos Centrais estão ai até hoje. Este mecanismo, na prática, foi o que garantiu nos últimos 12 anos (não vou contar os anos de pandemia) a estabilidade do mercado financeiro e não o desenvolvimento dos demais setores. Se esses recursos estivessem de fato saindo do mercado financeiro e sendo alocados como investimento nos demais setores, o que tudo indica que não acontece, então daria para argumentar, como sua primeira pergunta sugere, que a compra de ativos é o que sustenta a “sobre-vida da ‘economia real'”.
Em resposta à segunda pergunta, não faz muito sentido pensar em sobre-produção como um problema sistêmico e global atualmente. Muito menos que isso seria a causa do hiperdesenvolvimento do mercado financeiro. Minha questão é outra: supondo que as decisões de investimento estão sendo sistematicamente voltadas para ativos, o que irá reverter a baixa demanda? O que acontece quando não vale mais a pena abrir uma empresa, contratar pessoas, produzir um bem (ou serviço), pois investir o seu capital em produtos financeiros sistematicamente da mais retorno? É uma questão de como o capital está organizado e quais as consequências disso para a sociedade.