Por Isadora de Andrade Guerreiro

 

Há algum tempo desce um nevoeiro nas lutas cujo adensamento durante a pandemia tem requerido andar de luz baixa, tateando o terreno para continuar avançando. As luzes altas, no desespero de enxergar caminhos possíveis, não raro ofuscam e levam ou à paralisia, ou a desastres. Um grupo de militantes decidiu mapear caminhos experimentados em meio à neblina, percorridos mais atentamente desde que “a coisa virou”, pós-eleição de Jair Bolsonaro. Com neblina densa, a pandemia os fez entrar em terrenos pantanosos, não percorridos pelos mais cautos. Entre call centers, entregadores de aplicativos, caminhoneiros, ambulantes nos trens, mobilizações pelo auxílio emergencial, uma efervescência de lutas pouco tradicionais se descortinava. Fizeram recentemente uma bela síntese das experiências em tom de análise de conjuntura, no texto “Masterclass de fim do mundo” – no qual a esperança de encontrar caminhos se confunde (ou se dispersa) continuamente com o angustiante vislumbre de que não se trata de mau tempo passageiro, mas de um (sentido do) tempo que veio para ficar. Nestes termos, a pergunta que não cala, a cada parágrafo, parece ser “faz sentido a busca de caminhos que levem a uma saída, ou juntemos forças e experiências de sobrevivência em meio ao desconhecido?”.

Convido à leitura do texto, que considero obrigatório àqueles que também começam a duvidar dos caminhos pretensamente luminosos prometidos após o “mau tempo”. Trata-se de uma importante síntese de um invejável compêndio de análises que vão desde textos da mídia tradicional, dos meios populares aos “cult”, de espectro ideológico diverso, até referências a coletivos e análises internacionais pouco conhecidos: esforço monumental de reflexão sobre o momento que vivemos, olhando “a contrapelo”, sem se deter em espetáculos triunfalistas, atuando a partir de relações de trabalho ali onde, acompanhando Dante ao inferno, “abandona-se toda a esperança” – mas, segundo Marx, vislumbram-se possibilidades de ação.

Farei aqui um debate com o texto, procurando ampliar os diálogos sobre ele e suas questões. Minha leitura, para quem ainda não conhece minhas colunas, passa sempre por costurar os nexos entre o mundo do trabalho – a esfera da produção – e o mundo da reprodução social, articulação a partir da qual olho para o urbano, e vice-versa. Neste sentido, o texto em questão faz pensar sobre o significado da contradição entre a falta de esperança no mundo do trabalho – que foi onde a esquerda, desde a revolução industrial, sempre colocou – e a impossibilidade de atuação e reflexão que o descarte. Assim, o texto não recusa a atuação militante no mundo do trabalho – como o fazem grupos identitários – mas, no entanto, também não encontra nele muitas esperanças, configurando-se como uma incógnita, ou, pelo menos, como uma esfinge para aqueles que procuram respostas.

Penso que tais respostas não são encontradas se o leitor de “Masterclass…” permanece fechado dentro do léxico da esfera da produção. Parece-me importante ler o texto, como uma pintura de Picasso, com olhos simultaneamente direcionados para o trabalho e para a reprodução social. Pois se trata da crônica de um tempo de giro histórico quando se dá uma nova fase de grande despossessão de meios de reprodução, necessária para a emergência de um novo sujeito, subsumido às necessidades de um capital em fase de extrema monopolização. Nestas condições, expedientes de sobrevivência, atividades que geram recursos são, mais do que confundidas e misturadas com trabalho produtivo, subsumidas às necessidades de uma forma de capital que se autonomizou da produção. Assim, a dinâmica de subsunção da esfera da reprodução social pelo capital fictício é facilmente confundida com precarização do trabalho que sustentaria uma retomada da acumulação de capital. Nestes termos, o mundo do trabalho fica sem sentido, pois se procura algo que não se encontra mais ali, embora tenha deixado um boneco em seu lugar. Assim, entendo que o que aparece como contradição insolúvel no texto aos olhos daqueles que apenas enxergam o mundo do trabalho, na verdade, se olhada de outro ponto de vista, ganha enorme força: depois do fim, seres humanos continuam precisando sobreviver. Resta disputar os sentidos desta sobrevivência, numa perspectiva de autonomia que pode mudar os rumos da história que, portanto, não acabou, como pode ser lido o citado “fim do mundo” do título do texto em questão.

 

Trabalho?

A escolha da análise de conjuntura pela atuação no mundo do trabalho em transformação em “Masterclass…” é pautada claramente pelas lutas nas quais o coletivo se envolve e descreve. Como um balé, vão sendo descortinadas lutas nos locais de trabalho nos quais a métrica da rotina opressiva está em compasso com a aceleração própria ao mundo virtual e financeiro – como os call centers e os entregadores de aplicativo. Com a pandemia, ronda o medo de algo desconhecido acompanhado da sombra de destruição que a gestão federal exerce cotidianamente, prometendo que não vai cuidar ou proteger ninguém.

Nesta conjuntura, os elementos que vão sendo levantados no texto constroem a imagem de caminhar na neblina, em terreno instável: entre o medo da demissão em meio à crise sanitária e a sensação de vitória com a demissão sem justa causa – movimento mundial de fuga de “trabalhos de merda” que, durante a pandemia, também passaram a significar o medo real de morrer trabalhando. Não se trata de lutas por direitos, algo que vai perdendo o sentido devido ao alto grau de desagregação social que a pandemia acelera. Trata-se de sobrevivência e desespero pelas contas a pagar no final do mês, numa cidadania de sujeitos endividados correndo contra o tempo. Em fuga inclusive da CLT, que aparece como mais uma das formas de prisão e opressão para quem percebe que ser o trabalhador que ela conforma vai, na prática, também morrer trabalhando. Lembrou-me de uma música do Mundo Livre S.A. (A Maldição (das páginas que não viram)): “Acham mesmo aceitável a vida se consumir numa deprimente corrida? (…) Funesta maratona sem linha de chegada”.

A pauta do progressismo ligado às lutas trabalhistas, portando, perde o sentido, “re-formista” buscando retomar uma forma que é recusada pelos próprios trabalhadores – sem que a necessidade de sobrevivência tenha solução para fora de um mundo do trabalho colapsado. O empreendedorismo aparece como possibilidade entre a busca por autonomia e a impossibilidade de sair do ciclo opressivo. Há uma espécie de reengajamento no mundo do trabalho, no qual a morte anunciada por todos os lados apenas faz acelerar a rotação da rotina, numa fuga para lugar nenhum – o novo normal.

O texto vai construindo esta dimensão que não é de beco sem saída (pois neste há uma barreira, um fim), mas de queda infinita, ou “maratona sem linha de chegada”, como na música. Um fim que não acaba. O termo usado no texto é tomado dos chineses: Nèijuăn, ou “involução”, que em uma tradução mais literal seria “rolar para dentro”. Outra imagem que recordei foi a do filme francês de Mathieu Kassovitz “La Haine” (“O ódio”), clássico de 1995 passado na periferia sublevada de Paris, que abre com a imagem de um coquetel Molotov caindo sobre o mundo, acompanhada da fala em off que descreve uma pessoa caindo do 50º andar e dizendo “até aqui tudo bem, até aqui tudo bem… o importante não é a queda, e sim a aterrissagem” (e o coquetel explode). Quase trinta anos depois, a angústia que o texto “Masterclass…” traz é que não houve a aterrissagem. E não está mais tudo bem! As atitudes desesperadas tomadas pelos trabalhadores – de suicídio espetacular ao voto em Bolsonaro – são lidas como uma tentativa de dar um ponto final numa tortura infinita, de achar o beco sem saída – de explodir, às vezes literalmente. São lembradas frases das estações de metrô em Hong Kong “prefiro virar cinzas do que pó” ou “se queimarmos, vocês queimam conosco”.

Minha leitura é que fica no ar se é possível ainda lermos isso como mundo do trabalho – nos termos de um capital variável, com custos planejados, produzindo estavelmente mais-valia. Tenho dificuldade de enxergar isso. Tenho dificuldade de ver alguma racionalidade do capital por trás disso que passe por uma simples planilha de custos. Só vejo fluxo de caixa de movimentação constante, tragando força de trabalho para o matadouro. Os autores trazem a imagem de que, depois do fim, alguém tem que ficar para varrer – ou seja, o trabalho continua. Fico na dúvida se a imagem é bem essa. Tendo a achar que ninguém varre mais, e ficamos no meio dos escombros buscando formas de sobrevivência. Temos que comer, não varrer. Mas o grupo de militantes que escreve o texto parece realmente acreditar que o trabalho permanece depois do fim, mas agora “sem forma”, assim como se transformaram as lutas. Pergunto-me se tal trabalho sem forma ainda é trabalho, ou se não é apenas expediente de sobrevivência – agora subsumido, ou seja, do ponto de vista do capital, mais uma forma de rentabilidade, não de acumulação (falei sobre isso no comentário ao texto de Daniel Giavarotti na coluna passada).

Vale, portanto, um maior aprofundamento no significado da chamada “viração”, que o texto retoma, fazendo o paralelo com a uberização – que seria, segundo Ludmila Abílio, a “subsunção real da viração”. Se nos atentarmos à descrição da viração no próprio texto (que retoma Vera Telles), nos deparamos com as formulações de “atividade que gera renda”, “atividades contingentes”, “expedientes legais e ilegais”, “percursos descontínuos no mercado de trabalho”. Ou seja: são dinâmicas de sobrevivência que atravessam (ou não) o mundo do trabalho, mas não se detém nele, não se con-formam (pois, afinal, ficam “sem forma”) por suas determinações internas.

Ao olhar para a uberização por meio das lutas dos entregadores, o texto abre uma chave importante neste aspecto: sem lutar por CLT (direitos), os trabalhadores se opõem àqueles que os empregam requisitando que sejam encarados como força de trabalho, ou seja, como capital variável, que tem custos. Não se conformam juridicamente, portanto, no campo dos direitos e dos contratos. Mas querem ser força de trabalho e, portanto, requisitam uma relação que não está dada. Pois está conformada por eles como expediente de sobrevivência, como viração e, pelo capital, como rentabilidade pelo uso de uma propriedade sua – o aplicativo. Renda de propriedade de um lado, reprodução da força de trabalho do outro. Mas a força de resistência, exercida na luta, é a reivindicação por trabalho! É necessário pensar, do ponto de vista da militância, o significado disso. Pois se foge do trabalhismo de um lado, e o encontra do outro… onde fica a luta por autonomia aí? Não se acha, no chão das lutas, a procurada “recusa ao trabalho”, ainda que haja recusa aos seus aspectos jurídicos-contratuais, não se recusam os seus rendimentos subordinados. Qual o significado, portanto, desta reivindicação difusa por “autonomia”? Que autonomia é esta, desencarnada politicamente?

Pois os mecanismos de controle sobre o “trabalho”, na uberização, não se diferenciam dos mecanismos de controle sobre a existência de corpos rentáveis – como a terra, no rentismo. Seu controle é via bancarização, endividamento – aprisionamento de energia futura, para que tais corpos não fujam da queda infinita, ou da corrida sem fim. A organização dos entregadores via whatsapp que o texto descreve parece uma boa imagem disso: trabalho e vida se misturam, se entrelaçam e se dispersam juntos, não acumulam nada.

 

No território: violência, fé e autogerenciamento subordinado

O controle de corpos rentáveis é a origem do país, nos marcos da escravidão. José de Souza Martins (“O cativeiro da terra”, 1978) analisa bem este processo, ao descrever a passagem da riqueza em forma de propriedade de escravos, para a riqueza na forma de terra – historicamente, lastros de empréstimos que se alternaram para permitir a implantação de um sistema produtivo no Brasil. Nada mais próximo ao que o texto “Masterclass…” relembra, no que concerne ao controle dos corpos dos entregadores na uberização: o “sistema jagunço”, longe da relação jurídica contratual, o léxico da violência aberta sobre corpos-mercadorias. O texto não entra na dimensão do crime organizado, das milícias, mas chama atenção para a necessidade de controle territorial destes corpos que, teoricamente, estão “livres”, são “autônomos”.

Nesta seara do controle territorial e do sistema jagunço – que substituem a aparente limpeza da relação contratual jurídica do trabalho (e a luta por direitos) – o texto entra no significado do lockdown durante a pandemia: “A sobreposição amapaense de colapsos completa a distopia brasileira, em que o Estado a um só tempo sabota medidas de isolamento social em nome da disciplina do trabalho, mas aciona um lockdown para conter a revolta popular”. Está bem posto o entrelaçamento necessário, nesta conjuntura, da esfera do trabalho com a dimensão urbana territorial: parar a cidade como mecanismo de controle de corpos que se revoltam, mas que precisam trabalhar. O controle algorítmico dos corpos pelos aplicativos promete, pelo que nos conta o texto, tensionar esta contradição. A rua permanece sendo difícil de controlar, mas elemento necessário nesta conjuntura de entrelaçamentos entre as esferas da produção e da reprodução social.

O texto vai relembrando manifestações de rua do período, que estiveram diretamente relacionadas ao mundo do trabalho “sem forma”: contra o lockdown, o “direito” de se virar. Diferentemente da década de 1990, de enorme desemprego, a população sobrante não é mais “reserva”, pois a viração está subsumida e as atividades que geram renda ocupam continuamente o tempo. Daí, continua o texto, as estratégias de convivência com o vírus e a emergência dos “kits covid”. Parece-me que essas dinâmicas de luta pelo trabalho são diferentes daquelas dos entregadores, pois são a parte da economia “desconectada” do controle do trabalho, mas ligada ao comércio, que por sua vez está ligado ao crédito. Essa população precisa da rua de outra forma, não como transporte, mas como local de trocas.

Abre-se então toda uma camada social ainda subsumida de maneira formal (e não real) aos desígnios do capital financeiro [1]. O “kit covid” se assemelha muito às soluções milagrosas, no campo da fé, como resposta desesperada à falta de opções. Uma dinâmica diferente do cotidiano dos entregadores, que andam na neblina de novas formas laborais que se confundem e se misturam com a viração: se sentem trabalhadores, lutam contra um “patrão” virtual, embora não tenham relações contratuais de trabalho. Nesta neblina de “viradores” em escalas diversas de subsunção, misturam-se, no território, formas também diversas de regulação e controle: da fé ao algoritmo, atravessados pelo sistema jagunço.

O texto não se desenvolve no campo da fé, o que acho que vale como reflexão futura, pois ele abre caminhos para se olhar para o fenômeno do ponto de vista desta conjuntura desesperadora da corrida sem linha de chegada. Pois a fé como forma popular de encarar o desespero se opõe à prática política, e isso marca parte do caráter da neblina. Enquanto a forma política se baseia no conflito, a fé se baseia na resiliência. Faz sentido que sejam as igrejas evangélicas aquelas que vão dar os instrumentos para o giro do mundo do trabalho em direção ao empreendedorismo: subsumem a autonomia dentro do campo da resiliência da fé.

Embora não embarque nesta seara da fé, o texto vai olhar para as redes de solidariedade que dão são base de sustentação de certa resiliência, mais materialista do que a fé. O texto vai fazer uma leitura destes processos (também via Ludmila Abílio) como formas de

autogerenciamento subordinado: característico do trabalho por aplicativos se mostra, aqui, uma tendência para a sobrevivência em geral na catástrofe. Das máscaras de pano feitas em casa e vendidas na rua – fonte de renda para quem sempre inventa um jeito de se virar – às barreiras sanitárias nas quais se revezavam moradores voluntários nas entradas de pequenos municípios e zonas turísticas, a quarentena só pôde existir na base da gambiarra, numa somatória de esforços descoordenados (e, não raro, conflitantes entre si) que resultou, no fim das contas, num gigantesco trabalho sujo. Enquanto se enterravam os mortos, todos colaboramos – em isolamento ou na correria – para manter a máquina urbana em funcionamento”.

Desta máquina urbana, dentro da neblina dos diversos graus de subsunção da viração, acredito que os militantes que escrevem “Masterclass…” fazem uma escolha de atuar dentro das esferas de maior nível. Eu diria a eles que, se a escolha é atuar nesta neblina, é importante, ao menos, entender o campo como um todo: pois as esferas da viração de menor grau de subsunção ao capital, ocupadas pela população sobrante – entre a rua e o sistema penal, o trabalho doméstico, variadas formas de trabalho feminino precário etc. – na verdade apenas passam por outros mecanismos, mais dependentes da intervenção estatal, mas estão também no mesmo terreno pantanoso. Também na pandemia administraram corpos nas ocupações de terra de despejados da pandemia, nas ruas, na cracolândia, na cadeia, e todos estes estão sendo preparados pelo Estado para renderem fluxos financeiros através do Impacto Social, das Parcerias Público-Privadas (PPP) e da economia compartilhada e plataformizada. São faces do mesmo processo – mas talvez as formas de luta associadas não apontem para a autonomia desejada, já que passam pelas lutas por dentro do Estado. Ainda acho que vale entendê-las como parte do processo, pois é ali que se movimentam dinâmicas de reestruturação do capital que também se espalham pelas formas de luta de segmentos de maior grau de subsunção.

Deste ponto de vista, eu discordo em parte com a frase final do texto, de que o “proletariado” não tem “nada a esperar e também nada a perder”. Pois me parece que o que está em jogo é a perda completa de sua autonomia mais profunda, disputada a ser subsumida de forma real pelo capital financeiro. Desconfio que o coletivo também suspeita disso pois, do contrário, não estaria “militando” por algo. Senão, do que se trataria tal militância?

 

Militância na neblina

A parte final do texto faz um esforço autoreflexivo sobre a própria militância: a “luta de classes sem forma”. As lutas são rotativas como o trabalho, com enorme dificuldade de acúmulo organizativo, se dispersando na nuvem. O que antigamente era chamado de “base” só existe no momento do enfrentamento e some em seguida. O conceito utilizado é o de “não-movimentos” (Endnotes), no qual há uma espécie de “luta de classes sem organização de classe”. É traçada uma linha entre as jornadas de 2013 e o Bolsonarismo, onde se percebe uma “insatisfação latente, que pode se reverter no avesso do impulso original”. Coloca-se em questão o futuro da própria atuação no mundo do trabalho, numa conjuntura de recusa às suas formas conhecidas, nas quais só há experiência negativa. Parece-me que é a própria noção de “militância” que precisa ser pensada, algo que o coletivo não faz, e nos deixa com “gostinho de quero mais”.

A raiz etimológica da palavra militância está na guerra: o soldado defende algo. Dentro de uma perspectiva mais fechada do que se entendeu por militância na fase industrial do capitalismo, muitos leitores de “Masterclass…” terminarão o texto perguntando “mas o que o grupo está defendendo?”. Seriam militantes em meio à “guerra híbrida”? É difícil catalogar tais lutas quando elas não trazem consigo nem alguma esperança de transformação, dentro da perspectiva de busca por algo que não está dado, de futuro; nem de resistência, no sentido de que antes, em algum passado identificável, a situação fosse melhor. Não são revolucionárias nem reformistas. Seria uma atuação “resiliente”, inercial, preocupada em fazer crônicas da “involução”?

Contraponho-me a este tipo de leitura. Como expus no início deste texto, acho que “Masterclass…” precisa ser lido com outro olhar, para fora das caixinhas puras do “mundo do trabalho” ou da “reprodução social” ou da “esfera da circulação”. O que ele nos propõe é a explosão destes limites, na medida em que a neblina embaralha elementos conhecidos e nos coloca frente a uma nova forma social. Penso que ela está ligada a uma fase de ultramonopolização do capital, na qual suas formas fictícias subsumem todas estas caixinhas. O coletivo fala pouco disso, parece ainda tatear buscando encontrar elementos reconhecíveis, familiares ao que se entendeu um dia por “militância”, em um mundo que não existe mais – algo que sabem, mas não o fazem (para parafrasear Marx) – ao menos ainda, considerando a tática da luz baixa em meio ao nevoeiro.

Vejo o grupo como parte de uma espécie de “novíssimos personagens” (lembrando Eder Sader) preocupados com a possibilidade de formas organizativas autônomas em meio à “involução”. Qual o significado das lutas quando o trabalho se confunde com a reprodução social em meio à viração? Como pensar as lutas por autonomia, separadas das lutas por direitos e por melhores condições de trabalho? Este tipo de luta se depara com elementos que também se afastaram destes dois polos: empreendedorismo e revolta, que dialogam com o léxico de extrema direita [2]. Daí o perigo da neblina, quando não se sabe onde pisa. Há que se estar com os pés firmes ao chão histórico que se desagrega, luz baixa para mapear o desconhecido e coragem para seguir. Isso, o grupo parece ter de sobra.

 

Notas:

[1] Para quem quiser se aprofundar nestes termos, sugiro a leitura do “Capítulo VI Inédito do Capital”, de Marx.

[2] A reportagem de Clarissa Levy, da Agência Pública, no último dia 4 de abril (“A máquina oculta de propaganda do iFood”) mostra claramente como elementos presentes nas lutas são facilmente apropriados e redirecionados para horizontes conservadores, o famoso “mudar para permanecer”, com claras aproximações com a “revolução dentro da ordem” com a qual João Bernardo caracteriza os fascismos.

14 COMENTÁRIOS

  1. Minha maior critica a esse texto é que existe uma ambiguidade não explorada por esses militantes acerca do que afirmam ser “trabalho sujo”: os exemplos são mais sutis ao serem retratados nesta intervenção, referem-se à produção doméstica de máscaras de pano ou às barreiras sanitárias, evidente com muitos limites, mas em intervenções passadas esse “trabalho sujo” era um mecanismo de sobrevivência da classe trabalhadora, que recorreu a formas ativas e passivas de resistência (e outras saídas mais drásticas) em oposição à engrenagem usual dos rumos do que o capitalismo tomou no Brasil. Em Entre o isolamento e a correria a análise adquire ares mais catastróficos, por outro lado é bom, hoje, esses militantes, e a extrema-esquerda em geral, admitir que está dirigindo na neblina. Penso que existe um potencial não explorado nessas iniciativas de autocuidado que ao passo que não interrompem integralmente os ramos produtivos, ao menos desorienta sua disciplina vertical, produzindo relações sociais de novo tipo. Se essas relações sociais de novo tipo não conseguem perdurar ou mesmo não conseguem desafiar os gestores não é um sintoma de que os esforços foram infrutíferos, significa que não houve força o suficiente dos proletários em consolidar um novo modo de vida. Dessa forma, o trabalho sujo para os militantes parece que constitui o motor da viração no Brasil, e que isto seria uma tendência incontornável. Essa conclusão, de que não há disputa destes processos, já me parece ser um caso problemático, que é conformar-se com a neblina.

    No mais, parabenizo os militantes pela reflexão. Seguimos na luta!

  2. ​​Como sempre, o texto da Isadora Guerreiro é preciso. A continuação do debate com “masterclass de fim do mundo” é algo essencial e pode ser um campo para continuarmos a mapear o terreno das lutas sociais – que a cada rodada da crise mais se parece com uma “terra-de-ninguém”, o que não signifique que circula muito sofrimento dentro das várias trincheiras e, claro, existam meios colaborativos e solidários de lidar com isso.

    Isadora coloca questões importantes. A reivindicação dos “motocas” é por mais trabalho, mas já é estruturalmente impossível incorporá-los como “capital variável” – Chico de Oliveira matou essa charada com o “O Ornitorrinco”. E de certa maneira esse é um “conflito” central para se pensar em alternativas, embora o grupo de militantes não deem qualquer fórmula enlatada para sair dessa merda toda – afinal, seria impossível nesse momento.

    A questão que me levanta é: se “não acumulam nada”, como o capital exerce ainda sua forma de dominação? Já que Postone demonstra que a dominação social do capital é uma forma de dominação que se realiza no próprio tempo de trabalho, então, o que significa hoje dominação social? A meu ver, está na extensão de uma precariedade: uma dominação pela precariedade (e não pelo trabalho). Por isso venho pensando na “universalização da forma-periferia”, afinal, a precariedade é constitutiva desses espaços, mas ela passa a se generalizar em diferentes matizes e intensidades. Isso obriga o reordenamento do nosso campo de lutas.

    A antiga homogeneidade dada pelo mundo do trabalho, que permitia a identificação com o “ser-trabalhador” já era. E o que aparece daí é uma enorme complexidade de situações que ainda carecemos de um mapeamento cognitivo capaz de dar conta – acho que Gabriel Tupinambá e Edemilson Paraná, no livro Arquitetura de Arestas, demonstram muito bem isso. Como nota Isadora, “Masterclass…” oferece uma explosão dos limites clássicos e sustentam a indeterminação para pensar em alternativas. A neblina faz parte desse processo, mas é importante seguir, em luz baixa e sem parar. A luz alta, de quem quer pegar toda essa totalidade em crise à mão, em identidade com o conceito, vai se cegar; parar irá causar um engavetamento enorme. O que Masterclass e Isadora estão fazendo (entre outros) é continuar pensando as possibilidades de seguir nesse nevoeiro.

  3. Isadora, queria debater um tema que talvez não seja central, mas não termino de “fechar” na minha cabeça. Você argumenta que a viração não poderia ser entendida como trabalho, a coloca como geração de renda em contraposição ao salário. Para isso diz que a renda vem da propriedade (aplicativo, meios de produção, etc). Seguindo os teus textos eu entendo que isso também se relaciona com a tal separação entre renda e trabalho, encontrando na renda básica universal uma modalidade desta separação, ou então alguns mecanismos legais do passado que instituíam, por exemplo, um salário fixo mensal em contraposição ao salário por peça.
    Teus argumentos parecem apontar para uma espécie de “fim do trabalho”, convidando-nos a pensar uma nova configuração da existência do proletariado urbano. Entendo que a forma salário pode nos remeter a um passado onde um coletivo de trabalhadores unificados por um processo de trabalho ou até mesmo por um salário nominal podia protestar contra o seu empregador. Mas a renda também é uma figura do passado, e associada às classes dominantes!
    Não entendo o motivo para assumir as diferentes virações como algo diferente do trabalho, ainda que fosse pensado como algo mais próximo do artesanato. E menos ainda para pensar nesta subsunção do capital fictício, considerando toda a infraestrutura de produção industrial necessária para que um aplicativo como o Uber possa operar em qualquer grande cidade. Se trata de pensar que a produção destas infraestruturas colossais ocorre sem a determinação dos valores de suas matérias primas, dos salários e dos lucros auferidos?

  4. Alan,
    Acho que no seu comentário há uma igualação entre “viração” e “trabalho sujo”, que entendo serem conceitos diferentes. O texto aborda justamente as ambiguidades da viração, entre a necessidade de sobrevivência, as precariedades e a subsunção ao capital, que poderiam se transformar em luta e construção de autonomia. O “trabalho sujo”, no entanto, tem a ver com trabalhos que acabam servindo para necessidades e objetivos contrários aos interesses das classes trabalhadoras ou populares: servem à resiliência e à possibilidade de continuidade das “maldades” do capital. “Trabalho sujo” pode ser ou não viração, e vice-versa. Quando você diz “o trabalho sujo para os militantes parece que constitui o motor da viração no Brasil” não entendo da mesma maneira: o motor da viração é a necessidade de sobrevivência na adversidade. Se isso se transforma em um “trabalho sujo”, é outra questão. Pode se transformar ou não. Se os militantes apostaram na luta dentro da viração, acredito que veem também outras possibilidades de autonomia a ser construída ali. Mas deixo a eles próprios responderem, se quiserem.

    Thiago,
    Vamos aprofundar esse debate sobre “o que significa hoje dominação social”! Se, como você diz (a partir do Postone), ela é “uma forma de dominação que se realiza no próprio tempo de trabalho” (algo que vem do próprio Marx), penso que a subsunção se trata aqui de transformar em “tempo de trabalho” todas as relações sociais, inclusive aquelas relacionadas à reprodução social. No entanto, a coisa complica mesmo quando esse “trabalho” é cada vez mais descarnado, ainda que continue como atividade geradora de renda. Achei interessante sua tese da “forma-periferia” no sentido de que a precariedade passa a ter um papel para o capital fictício diferente daquele que tinha para o capital produtivo. Vamos aprofundar a ideia!

    Lucas,
    Primeiro sobre a relação entre viração e trabalho: entendo que a viração é um modo de reprodução da vida que passa por diversas formas de geração de rendas, inclusive, eventualmente, o trabalho assalariado ou outras atividades formais. A questão é a não regularidade e a indiferença entre atividades formais/informais, legais/ilegais, ou seja, a forma jurídica contratual do trabalho assalariado não está posta como condição para a atividade existir e, nem mesmo, a efetiva produtividade dela para o capital. Tenho pensado (de forma tateante, colocando à prova aqui com vocês, por isso desde já agradeço) que este modo de vida envolve também formas rentistas associadas à precariedade laboral. Tenho achado que são combinações dessas várias formas, entre salário mensal, salário por peça, renda de propriedade etc. Assim, acho que a viração não pode ser entendida apenas como “trabalho precário”, como se ele fosse uma única coisa, mas sim como uma intermitente passagem por formas variadas de atividades que geram renda.
    Não se trata de ver nisso um sentido necessariamente positivo ou negativo. Acho importante entendermos esta conjuntura na qual este tipo solução é visto como “empreendedorismo” (de forma positiva, inclusive dentro da esquerda), para pensarmos e atuarmos nas lutas daí decorrentes ou necessárias para um objetivo de alcançar autonomia frente a qualquer forma historicamente determinada de dominação do capital. Nesse sentido, não se trata de defender estas formas rentistas internas às virações em contraposição ao trabalho assalariado formal, nem mesmo defender este – como faz a esquerda tradicional. Trata-se de analisar uma conjuntura e ativar a luta de classes – que não pode se limitar às formas mais “clássicas” de trabalho.
    Acho que você me confundiu com a Raquel Azevedo, que fazia a coluna “Diabo da economia”, que defende a renda básica universal como forma de separação entre renda e trabalho. Eu tenho minhas dúvidas quanto a esta formulação, pois a renda básica tem sido usada para promover ainda maior vinculação com o capital financeiro, na medida em que tem sido feita por meio da bancarização em massa, gerando endividamento. Mas não é um assunto que eu entenda profundamente como a Raquel, então prefiro parar por aqui.
    Por fim, sim, você está certo: o rentismo é uma forma “do passado”, inclusive pré-capitalista. Marx fez um grande esforço em entender o lugar da renda da terra sob forma especificamente capitalista, através da noção de renda capitalizada – que tem a ver com a capacidade de ganhos futuros de determinada propriedade, transformada em preço. Não vem ao caso aqui explicar toda a teoria, mas o que eu acho que importa para o argumento aqui é que o desenvolvimento do capitalismo engendra novas formas a partir de antigas. Portanto, mais do que dispensar as formas “do passado”, acho mais interessante entender sua transformação – e combinação. Não dispenso a forma-salário (por tempo ou por peça) como uma das formas que perpassam a viração, apenas tenho insistido para olharmos formas rentistas no meio dessas relações – o que pode, inclusive, levar a pensar numa especificidade da precariedade laboral atualmente diversa daquela da fase industrial, com outras determinações. Que elevam o grau de contradição, na medida em que o trabalhador passa a se confundir, subjetivamente, com um precário proprietário de instrumentos de trabalho, acreditando numa autonomia que não tem.

  5. Isadora, me desculpe! Realmente confundi as autoras das ideias! É que realmente são duas excelentes colunistas (a Raquel infelizmente ex) do site. Obrigado pelo nível dos teus textos e das tuas respostas!

  6. Isadora, agradeço o comentário. Só gostaria de corrigir e reforçar que o que se defende implicitamente neste texto (o “masterclass”, não o seu) não é que a viração é o caminho para a construção de autonomia, mas que a busca por autonomia nos marcos contraditórios da sobrevivência perante o capitalismo se reduziria a “trabalho sujo” para esses militantes. o meu incômodo está expresso logo no trecho que você extraiu do Masterclass “(…)a quarentena só pôde existir na base da gambiarra, numa somatória de esforços descoordenados (e, não raro, conflitantes entre si) que resultou, no fim das contas, num gigantesco trabalho sujo. Enquanto se enterravam os mortos, todos colaboramos – em isolamento ou na correria – para manter a máquina urbana em funcionamento”. É nesse contexto que é usado o termo “trabalho sujo”. E por isso eu achei problemático.

  7. Entrando na controvérsia sobre o trabalho sujo, que apareceu nos comentários:

    O texto Masterclass por duas vezes usa o conceito de trabalho sujo. No segunda vez que ele é usado me parece que não há controvérsia, pois ele é usado da forma, digamos, “tradicional”. Isto é, nomeia um trabalho que a princípio fere a ética, um trabalho que implica sofrimento a outro, ou um trabalho que implica fazer o mal.

    O problema está na primeira vez que o conceito aparece no texto, que é o que levou à controvérsia aqui. A controvérsia surgiu pois na tal passagem do texto Masterclass em que “trabalho sujo” é usado, os autores estão dando um sentido que não vi em nenhum outro escrito de qualquer autor ou autora que seja.
    Fazer máscaras nada tem de trabalho sujo, bem pelo contrário. Mas os autores usam trabalho sujo aí não no sentido de um trabalho específico, mas como o resultado do trabalho coletivo global na sociedade (uma inovação ou distorção do conceito, como se queira):
    “resultou, no fim das contas, num gigantesco trabalho sujo”.

    Os autores estão dizendo que diante do negacionismo pandêmico como política pública ou como prática social, toda atividade resultou num trabalho sujo globalmente falando. Bem, o problema de alargar o conceito assim é que fora da pandemia também se pode dizer o mesmo, que tudo que os trabalhadores fazem resulta num gigantesco trabalho sujo, uma vez que estando dentro das sociedades capitalistas os trabalhos resultam globalmente na manutenção do capitalismo e da miséria, morte e sofrimento decorrente desses sistema econômico e social.

    Resumindo, a controvérsia só surgiu aqui porque na primeira vez que aparece no texto o conceito de ‘trabalho sujo’ está bastante heterodoxo, digamos.

  8. Léo V, a origem do uso “heterodoxo” do termo provavelmente nos leva de volta ao ensaio do Paulo Arantes no Novo tempo do mundo, “Sale boulot”.

  9. Radapé,

    Não. No artigo mencionado, Paulo Arantes usa o conceito de trabalho sujo como ele normalmente aparece na literatura, cono Dejours usa. Uma ação que seria considerada não ética mas acaba sendo aceita por estar na forma trabalho. Um trabalho que gera o mal ou sofrimento a outro. Trata-se sempre de um trabalho concreto específico e nunca do resultado do conjunto abstrato de rodos os trabalhos. Prosuzir máscaras e montar barreiras sanitárias não sao trabalho sujo, bem pelo contrário.

  10. Sobre a controvérsia em relação ao conceito de trabalho sujo, me parece que Rodapé está correto ao apontar o texto do PA como referência desse uso digamos alargado do conceito, já que o autor trata justamente de acompanhar a ousadia de Dejours ao pensar trabalho e sofrimento social no neoliberalismo a partir da experiência Nazi. Entretanto, a discussão deles parece um tanto distante mesmo do exemplo das mascaras, que eu entendo ser problemática na medida em que toma na chave da “colaboração” com o Mal o que parece ser “resistência” a ele. Aqui talvez seria mais interessante explicitar a própria dificuldade de distinguir as coisas. De certo modo sim, todos os expedientes improvisados e mambembes encontrados pelos despossuídos e pelos remediados para tentar diminuir a catástrofe pandêmica não deixam de ser também um modo de manter o sistema funcionando, a roda do trabalho girando (em falso). A hipótese não enunciada seria talvez aquela ideia que alguns filósofos chegaram a vislumbrar nos primeiros meses da pandemia: uma quebra da ordem ao “parar tudo”. Nada mais didático, portanto, do que o nosso jagunço-mor, porta voz bronco mas adequado das injunções do sistema capitalista, que desde o início bradou: o Brasil não pode parar.

    Porém, visto do ponto de vista individual – que é como a crise sanitária foi “resolvida” exemplarmente no Brasil, na base do cada um por si, em que a completa ausência de solidariedade social vai muito bem obrigado com o verniz ultra-liberal – parece que “resiliência” e “resistência” se confundem. Esse o ponto que acho que a Isadora poderia ter desenvolvido mais. Ela está destacando que o horizonte das lutas atuais é sobreviver e olhe lá. A urgência da luta por sobrevivência básica não é novidade nenhuma. A novidade seria que essa demanda urgente não se traduz em potencial ruptura, em horizonte de transformação etc. A hipótese que está subjacente aqui e poderia dar um sentido mais claro à essa luta de “resistência” é, salvo-engano, a do devir-necro do capitalismo: expulsão da força de trabalho e extermínio da população sobrante. Coisa que o Brasil também dá fartas demonstrações de expertise. O problema é que as formas de sobrevivência à essa catástrofe/extermínio são elas mesmas estratégias parasitadas ou forjadas pelas “formas rentistas” adotadas pelo capital financeiro. De modo que essa população sobrante não é simplesmente exterminada, ela é “aproveitada” de outra maneira (que não pelo trabalho regular, etc). Tô viajando muito ou é mais ou menos por aí?

    O que eu penso é que o uso meio “absolutizado” ou “essencialista” (me perdoem, não me vem a cabeça expressão melhor) da noção de “autonomia” – que frequenta os textos mas não é discutida detidamente ou problematizada – acaba atrapalhando mais do que ajudando. Pra mim falta aí análise de conjuntura mais tradicional para identificar onde e quando os interesses conflitantes podem gerar cismas, brechas, rupturas. E inclusive pensar articulações entre diferentes lutas decisivas da nossa conjuntura. Por exemplo, sobre a ambiguidade da resiliência/resistência, não seria interessante pensar junto com os movimentos indígenas, os movimentos do campo, para quem resistir no território e construir a “autonomia” são as tarefas centrais? E muita vezes adotando estratégias propriamente insurgentes! Aqui concordo com a crítica da Isadora ao texto do Masterclass, que parece muito colado na ideia de perseguir as formas mais avançadas da subsunção real da viração ao capital como se daí fossem sair as lutas mais explosivas/insurgentes etc…

  11. Sobre o trabalho sujo, vou fazer uma correção no que escrevi. Na literatura o trabalho sujo muitas vezes é usado em um sentido mais literal. Mas esse não é o sentido que importa aqui. O que importa no texto e o que importa para mim também é o sentido que é usado por Dejours e pelo Paulo Arantes, que é referido no texto Masterclass.

    Paulo Arantes baseia todo o seu artigo no Dejours. Ele não alarga o conceito. Trabalho sujo para Dejours, e no texto do Paulo Arantes é o trabalho que inverte o que seria ético. É o trabalho de fazer o mal a alguém. De matar, de fazer sofrer etc. Isso é trabalho sujo, para Dejours e no texto do Paulo Arantes.

    Não faz sentido falar em trabalho sujo quando pessoas estão produzindo máscara na pandemia. E em termos conceituais também não faz sentido alargar o conceito a ponto de englobar todos que vivem e trabalham numa sociedade em que sofrimento é gerado. O conceito assim já não distinguiria nada, torna-se inútil. Iguala quem produz uma máscara para prevenir doença e morte daquele que trabalha para incentivar que não se use medidas preventivas, por exemplo.

  12. interessante que o debate foi para esse lado, dado que houve militantes que, em plena pandemia, acusavam outros militantes de “fazer o mesmo que a OMS” simplesmente por fomentar o auto-cuidado e as recomendações sanitárias em lugares de trabalho e comunidades pobres.
    Pode haver quem queira se focar na “centralidade do conflito”, mas outra coisa é dizer que os demais fazem “trabalho sujo”. Chegamos na fronteira da canalhice.

  13. Leo V, entendo e concordo com o que diz. Mas reforço que o problema está longe de ser apenas semântico. O entendimento que está implícito é que toda medida solidária e de apoio mútuo que não impõe uma derrocada às relações sociais de produção capitalistas são “sujas” porque reforçam o capitalismo, apesar de apresentar soluções alternativas. Se militantes decidem que seus camaradas não vão morrer, é a esses camaradas que o socialismo está sendo prometido, pois lhes é impossível uma democracia zumbi(https://passapalavra.info/2020/03/130409/). Não é um uso errôneo do termo, é uma extensão de seu uso. E um entendimento bem perigoso, a meu ver.

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