Por Jan Cenek

 

Soube por uma matéria da BBC que surgiu – em inglês, como sempre – uma nova palavra para se usar nas relações amorosas: hardballing. Significa “jogar pesado”. Teria a ver com os encontros por meio de sites e aplicativos e estaria sendo usada pela Geração Z, que são pessoas com menos de 30 anos. A ideia é expor intenções e expectativas antes do primeiro encontro, para evitar desgastes e perda de tempo. A mesma matéria informa sobre outra palavra proveniente do inglês e surgida no ambiente dos relacionamentos virtuais: ghosting. Significa que uma pessoa cortou relações sem explicar o porquê, causando incômodo.

A matéria e as palavras em inglês me fizeram pensar num verso que acreditava ser de Drummond: “o amor e outras mercadorias”. Achava que, com esse verso, o poeta de Itabira encerrava um poema com a ironia que lhe é peculiar. Mas qual? Seria mesmo de Drummond? Não identifiquei nem na internet nem na coleção completa do poeta itabirano. Mas pedi ajuda e uma amiga resolveu a questão, trata-se do poema Aurora [1]:

[…]
Como é maravilhoso o amor
(o amor e outros produtos).
Dançai meus irmãos!
A morte virá depois
como um sacramento.

O verso não está no final do poema nem é exatamente como eu lembrava. Mas a ironia drummondiana está ali igualando o amor a uma mercadoria, como se as relações de produção se confundissem com as relações amorosas, que é o que o ocorre no tempo presente. O que é hardballing senão um critério de produtividade aplicado ao amor, para evitar “perda de tempo”?

Um amigo poeta, algumas décadas anterior à Geração Z, contou-me sobre um encontro que tivera por meio de um aplicativo. Passada a tensão inicial. Alguns goles de cerveja depois, a conversa fluiu e estava agradável. Foi quando a interlocutora começou a alternar sorrisos simpáticos com perguntas sérias, que pareciam extraídas de um questionário semiestruturado, talvez validado em sites de relacionamento. Eram questões sobre família, trabalho e futuro. Era como se ele estivesse sendo entrevistado sem ter sido informado e sem ter assinado termo de consentimento. Por fim, ela afirmou perguntando: “acho que você não viveu todas as aventuras que gostaria de ter vivido.” Ao que ele, que é leitor do Quixote, respondeu que aquela seria a grande aventura da vida dele, como se ela fosse uma Dulcineia del Toboso finalmente encontrada. Desconfio que meu amigo foi reprovado exatamente naquele momento. Dom Quixote e aventuras não combinam com relacionamentos baseados em critérios de produtividade. Voltaram a se encontrar. A conversa foi agradável. Mas depois ela desapareceu. O que o meu amigo poeta definiu como a “arte da fuga” foi na verdade um gosthing. A palavra ainda não existia, mas o que foi aquele desaparecimento súbito senão um gosthing?

Antigamente se discutia se amor à primeira vista existia ou não. Atualmente os critérios de produtividade são capazes de matar o amor antes do primeiro encontro. Eu já imaginava que pessoas da tal Geração Z nunca brincaram na rua nem empinaram pipa. Mas pensar que as novas gerações estão desaprendendo a flertar é uma ideia atroz. “Que século, meu Deus!” – diria Drummond [2]. Até um romancista liberal, como Mario Vargas Llossa [3], sabe que o erotismo representa um momento elevado da civilização e é um dos seus componentes determinantes: “trazido a público, vulgarizado, degrada-se e eclipsa-se, não realiza a desanimalização e a humanização espiritual e artística da atividade sexual que outrora possibilitou.” O que pensar de uma civilização que exclui o erotismo, que obriga as pessoas a exporem intenções e expectativas antes do primeiro encontro? Como se intenções e expectativas não se construíssem aos poucos, dia após dia. Como se intenções e expectativas não variassem de caso a caso e com o tempo. Por mais assustador que possa parecer para a tal Geração Z, sim, há pessoas que desaparecem e não voltamos a ver, com outras se constrói “apenas” uma aventura amorosa, em alguns casos se forma uma amizade para sempre e, não raro, tudo se mistura numa mesma história. “O amor é imprevisível”, e não é apenas na cidade de São Paulo, como na canção [4]. Ou, para usar novamente o bardo de Itabira [5]:

Carlos, sossegue, o amor
é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe
o que será.
[…]

O amor se constrói à meia-luz, numa penumbra suave, como num fim de tarde ou num começo de manhã. A iluminação excessiva – a ponto de eliminar completamente o mistério – nada resolve, antes atrapalha. Junichiro Tanizaki afirmou “que a beleza inexiste sem sombra.” [6]. Creio que o mesmo vale para o amor. No final do poema Não se mate, que citei acima, Drummond concorda comigo:

[…]
O amor no escuro, não, no claro
é sempre triste, meu filho Carlos,
mas não diga nada a ninguém,
ninguém sabe nem saberá.

Quando penso nas pessoas se relacionando por sites e aplicativos, exigindo que intenções e expectativas sejam explicitadas antes do primeiro encontro, lembro das formigas que correm apressadas pelas paredes. Elas se cruzam, param brevemente, se encaram e seguem em direções opostas, sem perder tempo.

Notas

[1] O poema Aurora abre o livro Brejo das almas, que é o segundo publicado por Carlos Drummond de Andrade.
[2] O verso de Drummond está no poema Edifício Esplendor, que compõe o livro José.
[3] Trecho citado está no ensaio A civilização do espetáculo, que compõe o livro homônimo.
[4] Verso da canção Lá vou eu, que é de Luiz Sérgio Carlini e Rita Lee e foi interpretada também por Zélia Duncan: “Na cidade de São Paulo/ O amor é imprevisível como você/ E eu/ E o céu”
[5] O trecho de Drummond está no início do poema Não se mate, que compõe o livro Brejo das almas.
[6] A sacada de Junichiro Tanizaki está no ensaio Em louvor da sombra.

4 COMENTÁRIOS

  1. O amor romântico. Este é um tema a se pensar:
    O quanto de verdade há na hipótese de necessidade de o encontrarmos na figura do outro com a finalidade de nós tornarmos um par?
    Ultimamente venho questionando sobre a validade disso, se não seria mais um dos valores imputidos para que, mais uma vez, sejamos apenas uma marionete social, pois se não somos completo, passaremos a vida em busca de nossa metade, o que já movimentaria grande parte de nosso tempo em torno de tal consumo.
    E, assim, o “mercado do amor” se agiganta: revistas, roupas, perfumes, acessórios unissex, dia dos namorados, presentes, casas, móveis, viagens, motéis, flores, casamentos, noivado etc
    Consequentemente, o sujeito que não encontra seu par pode encontrar alívio com terapias e outras maneiras – incluindo subterfúgios para que se sinta menos incompleto.
    Sobre a geração Z é interessante a conclusão pragmática que foi encontrada por ela na medida em que a mesma se depara com tantos desencontros e decepções testemunhada por filhos e netos frente a sofrimentos – e crimes passionais cometidos pelas gerações anteriores.
    Se ela – a geração Z – está correta ou não é algo que somente o tempo dirá ou não, no entanto, o que ouso dizer é que a atitude de se buscar o par que lhe falta em sites que propõem unir os interesses e distanciar “currículos” não compatíveis é, no mínimo, economizar todas as problemáticas vividas por seus pais, avós, tios e toda a sociedade.
    Se isso não é romântico, do ponto de vista idealizado, é a busca pelo acerto, pela harmonia, é assim que entendo.
    Não sou da geração Z, mas minha mente arguta anseia pela verdade, pelo equilíbrio e pelas parcerias para a construção de um bem – estar no mundo.
    Não tenho interesse em encontrar pessoas que não me entendam, nem ficar junto às pessoas do sexo oposto, cujas me levariam a lutar para ser acolhida ou percebida como alguém que mereça ser amada.
    Entendo o papel da mulher numa sociedade machista, a qual sempre foi outorgada como sendo coadjuvante, não valorizada enquanto ser independente, a que viveu subalternidades e foi desqualificada como ser social, embora, desde a modernidade tenha conquistado títulos nunca antes nem sonhado.
    Nesse sentido, a nós mulheres que enfrentamos até hoje o feminicídio, a violência doméstica e sexual junto à parte que deveria nos completar, vejo com bons olhos essa nova posição colocada pela geração Z, pois é uma proposta para evitar esses imbróglios.
    Pensando no homem da atualidade, outro dia um amigo me contou sobre um encontro amoroso que teve um final muito estressante: ele paquerou durante 6 meses uma garota na faculdade que, mesmo comprometida, lhe correspondia em olhares e simpatias, coisa que assegurou o interesse por todo o semestre. Até que, finalmente, ela solteira veio a ele para conversarem e saíram para tomar umas no barzinho. No final da noite ela perguntou se ela poderia dormir na casa dele e com o sim, ela ainda fez a recomendação de que não haveria sexo, no que o amigo concordou. Só que ao chegar no apartamento dele, ela voltou atrás na sua decisão e o sexo aconteceu. Dia seguinte, depois do Café da manhã, repetiram a dose. E ela foi embora com despedida regada a beijos e abraços deixando meu amigo muito feliz. Passado uma semana, a garota envia uma mensagem desconcertante dizendo que ela sabia que aquilo que houve entre eles foi um abuso sexual. Mas por qual motivo? Por ela estar embriagada.
    A geração Z, mais uma vez é colocada em cheque e retorna com esse comportamento defensivo, não apenas para a mulher, mas também para o novo homem. Afinal, qual homem quer ser acusado injustamente?.
    Então, se a vida imita a arte, o amor imita os romances e as poesias, os problemas oriundos da sociedade de homens e mulheres exigem soluções.
    A geração Z foi em busca não apenas da parte cabível e sim da resolução do que pode se tornar um empecilho à felicidade do casal:, formado com ambos conectados a interesses comuns, evitando conflitos futuros.
    Se isso não é romântico, é preferível aos dissabores que podem surgir entre pessoas que acreditam ter encontrado seu par quando, na verdade, encontraram seu algoz.

  2. Pois é, meu amigo! Fomos (ultra)passados. Como toda época histórica é forjada antes de seu marco formal, essa “catracalização” da existência já se insinua há algum tempo, precede o surgimento da geração Z. O caso mais antigo do amigo citado em seu artigo é exemplar. Nesse sentido é mais apropriado pensá-la como continuidade histórica de um conservadorismo latente que como trânsfuga. As novas gerações quase nunca se vêem nas perdas das grandes dimensões humanas que significam como posteridade, justa razão do saudosismo dos velhos. Nova, tende a ver o fracasso e desaparecimento do erotismo pela ótica econômica das perdas e ganhos, minimizando as perdas e maximizando os ganhos. Quando a lógica empresarial avança sobre o núcleo mais íntimo da personalidade, tempo é algo que temos cada vez menos. Time is money.

    Da prática do hardballing, que é não perder tempo, aos protocolos que pretendem gerenciar o flerte e as relações amorosas para evitar abusos, é a mesma decadência: tudo programado. A vida não passa de um purgatório fora do qual o que sobra é a existência ôca. “Decadence avec elegance”. E pra citar outra do cancioneiro popular: “É triste ver tantos robôs fabricados, programados, esquematizados/Com passos ensaiados, excêntricos, esquizofrênicos/Em nome da modernidade”.☆

    ☆Língua de Trapo, “Fraude”.

  3. Os versos da canção do Língua de Trapo me fizeram lembrar da provocação do Kundera contra o Rimbaud: “Ser absolutamente moderno é ser aliado de seus próprios coveiros.”

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