Publicado também em francês e italiano.

Por Caio de Amorim Féo e Mário Jorge da Motta Bastos

 

As guerras dependem de, mas também revelam, no curso da História, o nível de desenvolvimento das forças produtivas atingido pelas sociedades humanas nas mais diversas latitudes e dimensões do tempo. Talvez tenham sido até mesmo um elemento dinamizador desse desenvolvimento e do seu intercâmbio e disseminação entre sociedades diversas, ainda que as agruras e misérias deflagradas pelos conflitos façam sobretudo saltar aos olhos, literalmente, em especial para aqueles(as) que as padecem, a feição destrutiva da ação das forças em questão.

Aliás, por falar de História, parece indispensável ressaltar como essa velha senhora – a musa Clio tão desgastada pelas acostumadas chuvas de pedras, lanças e bombas que pautam a sua longa e sofrida existência – também constitui uma arma sistematicamente mobilizada e disputada nas batalhas pela conquista de corações e mentes das populações lançadas ao confronto. Dentre os muitos usos possíveis do passado devemos contabilizar a sua instrumentalização como arma de guerra na mobilização da opinião pública, ensinamento reafirmado pelo atual conflito entre a Rússia e a Ucrânia!

No discurso proferido por Vladimir Putin nas primeiras horas do dia 24 de fevereiro próximo passado, dirigido primariamente à população russa (e, logo, à ucraniana e ao mundo) e configurado pela mídia internacional como uma declaração de guerra formal, uma determinada leitura da História está no cerne dos argumentos que pretendem justificar a iniciativa militar. Em tom meio professoral/meio marechal e no bojo de uma “exposição de motivos” que durou cerca de 40 min., o presidente da Rússia configurou as ações que seriam logo desencadeadas como uma espécie de inciativa necessária à “correção” de erros históricos do passado (“recente”).[1]

Quando a farsa também é tragédia

Joseph Stálin (sempre ele) teria titubeado, no contexto da II Guerra Mundial, em reconhecer a volúpia do agressor germânico e a promover de imediato o seu enfrentamento. O monstro cresceu, devorou o pacto germânico-soviético e alimentou-se das milhões de vidas cobradas ao povo russo pela invasão das forças nazistas. Segundo Putin, “(…) logo nos primeiros meses de hostilidades, perdemos territórios enormes e estrategicamente importantes e milhões de pessoas. Na segunda vez não permitiremos tal erro, não temos o direito de o cometer.” A História não se repetiria. Só não fica claro se como farsa ou como tragédia…

Em discurso anterior à nação, datado de 21 de fevereiro do corrente, Vladimir Putin já havia invocado a História (“recente”) e, mais uma vez, o que lhe parece terem constituído outros tantos equívocos cometidos pelas lideranças revolucionárias e cuja conta, enfim, seria finalmente cobrada a uma Rússia que se encontraria em nova encruzilhada histórica neste início de milênio. A Ucrânia, segundo o líder, mais do que um país vizinho seria parte inalienável da história, da cultura e daquilo a que se referiu como “espaço espiritual” russo. “Desde tempos imemoriais, as pessoas que vivem no Sudoeste do que historicamente tem sido terra russa se autodenominam russos e cristãos ortodoxos. Este foi o caso antes do século XVII, quando uma parte desse território voltou ao estado russo, e depois.”[2]

A historicidade da “questão ucraniana” constituiria, segundo reafirma Putin, o fundamento indispensável à compreensão das razões e objetivos que embasariam a escalada das ações russas naquela região. “É claro que não podemos mudar os acontecimentos passados (…)”, afirmou então, sem explicitar admitir o que todo e qualquer professor de História pretende inculcar nos alunos que o ouvem, quando o ouvem: só há História contemporânea, porque todo passado é objeto de reapropriações nos presentes que se voltam a ele, e assim vivo e pulsante pode ser (trans)formado, torcido, esgarçado… A Ucrânia moderna teria sido uma criação, uma invenção da Rússia, o resultado de mais um erro histórico dos bolcheviques que, de soslaio, voltam a ser execrados por alguém cuja trajetória política guarda íntima relação com uma das mais duras expressões do estado soviético que o líder abomina.

Mas, a história não para por aí. Há muitas e muitas camadas dela mobilizáveis e mobilizadas no contexto em questão. A profundidade histórica parece mesmo ter o potencial pendor de adensar as ações no presente em curso, encharcá-las do líquido espesso que flui moroso na longa duração, envolvendo-as da substância viscosa que se pretende expressão de um muito antigo destino manifesto. Eu disse antigo, mas medieval seria, a rigor, mais apropriado.

Quando a farsa também é tragédia

Em 12 de julho de 2021, o presidente russo publicou no site oficial do Kremlin o ensaio On the Historical Unity of Russians and Ukrainian (Sobre a Unidade Histórica dos Russos e Ucranianos), em que historiciza a identidade profunda da Ucrânia e da Rússia. Sua narrativa tem início na afirmação de que “(…) russos, ucranianos e bielorrussos são todos descendentes da Antiga Rus, que era o maior estado da Europa”, comportando um território no qual várias “(…) tribos eslavas e outras ainda, em uma vasta área que abrangia Ladoga, Nóvgorod, Pskov, Kiev e Chernigov, estavam reunidas por uma língua (o que agora chamamos de russo antigo), por vínculos econômicos e pelo poder dos príncipes da dinastia Riurik. E, posteriormente, no batismo da Rus, (pela) fé ortodoxa”. Segundo o líder, nem mesmo as crescentes desavenças que pautavam o convívio entre as “duas nações” nos últimos anos seriam capazes de obscurecer a unidade histórica e espiritual daqueles povos.[3]

A unidade que, na perspectiva de Putin, teria agregado e cimentado a diversidade original remeteria ao século IX da Era Comum, quando a unidade política Rus começou a se estruturar com a conquista de Kyiv (ou Kiev) pelo kniaz (príncipe) Oleg no ano de 882, segundo refere uma narrativa tardia – a Pověstĭ vremenĭnyhŭ lětŭ (Narrativa dos Anos Passados) – datada do século XII. Desde então estaria constituído, supõe o líder russo, um estado Rus por excelência, estendendo-se por um longo território cujas populações seriam progressivamente unificadas culturalmente. Ainda que não seja a História apanágio exclusivo dos historiadores (que ademais alimentaram e seguem alimentando, sem muito pudor, com suas “análises” os poderes estabelecidos), o que admitem saber os profissionais de Clio sobre a questão?

Antes do mais, é preciso explicar a origem do termo “rus”. Etimologicamente, é possível que o termo derive do verbo remar (rōþs) em nórdico antigo, ou mesmo do substantivo rōþR ou rōþz, significando, assim, “remadores” ou aqueles que compõem a tripulação de barcos movidos a remos no curso de uma expedição. A referência parece estar ligada especialmente aos habitantes da atual Suécia, e os termos das línguas fino-bálticas atuais que significam “sueco”, como ruotsi, em finlandês, e root’si, em estoniano, parecem indicar o sentido original da palavra rus. De toda forma, a origem remete ao universo dos guerreiros conhecidos como vikings, que, partindo da Escandinávia promoveram razias em terras do Ocidente europeu e do Leste euroasiático, especialmente entre os séculos VIII e X. Nos territórios onde atualmente se encontram a Bielorrússia, a Ucrânia e a Rússia, tais guerreiros eram particularmente designados por variagues (varjagŭ), que, tendo erguido assentamentos permanentes naquelas regiões e se integrado aos povos locais passariam a ser designados predominantemente pelo termo rus.[4]

Desde o ano de 862, o chefe guerreiro escandinavo Riurik teria governado os rus naquelas regiões, dando início à dinastia Riurikovitch, da qual fez parte o referido Oleg. Na década de 880, a cidade de Kiev se tornou o principal centro do que começava a se configurar como a entidade política Rus, e a partir de então diversas etnias que ali conviviam ampliaram uma interação que acabaria por resultar em um amplo processo de miscigenação ao longo dos séculos seguintes. Entre as etnias que viriam, enfim, a compor a Rus contavam-se escandinavos, eslavos, bálticos, fino-úgricos e turcos.

Embora a entidade política Rus tenha, de fato, se iniciado com Oleg em Kyiv, não há razões para considerarmos que a cidade constituísse um centro que reunisse sob seu controle todos os assentamentos rus naquela região. Nas áreas vinculadas a Nóvgorod e Gorodische, por exemplo, situadas na margem norte do lago Ilmen, é possível que a entidade política rus local tenha sofrido influência direta do Caganato Cazar, localizado mais a leste daquela região, sendo, inclusive, governada por um “cã” que foi mencionado, por volta de 839, nos relatos de uma comitiva rus. Nas margens do rio Volga, sabemos da existência de um assentamento rus nas primeiras décadas do século X, referido pelo árabe Ibn Faḍlān em 922, cuja independência em relação a Kyiv deve ter sido considerável. Parece evidente, assim, que o quadro constituído na época, segundo os registros disponíveis, não apoia a proposição de Putin acerca da ancestral existência de um estado Rus unificado que, desde sempre, amalgamara a considerável diversidade de muitos níveis que compunha a entidade Rus.

Quando a farsa também é tragédia

Se a realidade Rus de então era marcada pela diversidade de povos e de entidades políticas constitutivas, torna-se difícil supor a existência de uma unidade linguística ou cultural em geral que congregasse as diversas etnias e as reduzisse a qualquer unidade. É mesmo muito pouco provável que o poder e a ascendência da dinastia Riurikovitch se estendesse pela maior parte do território ao longo de sua existência. Impondo-se à Rus até o século XVI, no curso desse longo período sua área efetiva de supremacia política expandiu-se e reduziu-se em várias ocasiões. À Kyiv e à sua centralidade opuseram-se, por diversas vezes e em vários períodos, as pretensões de outros centros políticos rus, como Vladimir-Suzdal e Smolensk, na atual Rússia, e Chernigov, na atual Ucrânia. Contudo, as opiniões são divididas em relação a qual região ganhou centralidade após o declínio de Kyiv.

No ano de 1169, o kniaz de Vladimir-Suzdal, Andrey Bogolyubsky, promoveu uma incursão à cidade de Kyiv que resultou na obtenção de diversos espólios, inclusive ícones e outros pertences da Igreja. Pelo prisma da historiografia russa, a partir desse momento a centralidade da Rus se desloca de Kyiv em direção ao norte, base de poder de Vladimir-Suzdal, vindo a compor parte da Moscóvia ou reino de Moscou. Com a conquista de grande parte do território da Rus, incluindo Kyiv, pela Horda Dourada mongol, em meados do século XIII, essa perspectiva teria se acentuado. No entanto, de acordo com a historiografia ucraniana a situação é distinta, já que em sua perspectiva o reino da Galícia-Volhynia (circunscrito à região que comporta parte das atuais Polônia, Ucrânia e Bielorrússia) teria se configurado como o sucessor de Kyiv a partir de 1199, até a Galícia ser conquistada pelo rei Casimiro III, da Polônia, em 1349, e a Volhynia ser controlada pelo Grão-Ducado da Lituânia, no ano de 1350.[5]

As iniciativas de apropriação do passado Rus promovidas pelos regimes estabelecidos tanto na Rússia quanto na Ucrânia são sistematicamente mobilizadas em prol da promoção do que, na esteira de Josep Fontana, poderíamos configurar como uma “economia política”: um discurso de legitimação do presente que afirma a sua inevitabilidade histórica como resultado de uma jornada progressiva pontuada por grandes feitos que se projetam em linha reta no tempo desde o mais remoto passado. Em Veliky Nóvgorod, na Rússia, encontra-se o Milênio da Rússia (Тысячелетие России), um monumento erguido em 1862 em comemoração aos mil anos da suposta chegada do chefe Riurik nas terras da Rus. Em Kyiv encontramos um monumento erguido em 1911 que retrata a figura da princesa Olga, cujo ápice do poder dataria de meados do século X, figura cujo destaque deriva de sua condição de primeira liderança rus a se converter ao cristianismo ortodoxo.[6]

A mobilização desses lugares de memória e a invenção de tradições operado pelas partes em conflito nos dizem muito acerca de como o passado pode ser utilizado. Sistematicamente reelaborado nos presentes que se sucedem no tempo, ele é instrumento quase imemorial de justificação do status quo. Se a memória de toda e qualquer nação é socialmente construída, a recordação e mobilização dos rus por Vladimir Putin, agregada a uma certa interpretação do passado mais recente da Ucrânia, parecem dar sentido à pretensão de uma unidade fundacional que foi, que nunca deveria deixar de ter sido e que, portanto, deveria voltar a ser… Não assumiria o próprio Vladimir Putin a condição ideológica de um Riurik redivivo? Ao se repetir como farsa, lamentavelmente, a História não deixa de ser também tragédia!

Quando a farsa também é tragédia

Notas

[1] Texto traduzido do original disponível no site oficial do Kremlin: Visão | A declaração de guerra de Putin – na íntegra: “Quem nos tentar impedir, deve saber que a resposta da Rússia será imediata” (sapo.pt). Acesso em: 07/04/2022.

[2] Texto traduzido do original disponível no site oficial do Kremlin: DefesaNet – US RU OTAN – IMPORTANTE – Discurso Vladimir Putin 21 Fevereiro 2022. Acesso em 07/04/2022.

[3] Texto original disponível em <http://en.kremlin.ru/events/president/news/66181>. Acesso em: 07/04/2022.

[4] FRANKLIN, Simon; SHEPARD, Jonathan. The Emergence of Rus 750-1200. Essex: Longman, 1996, p. 28.

[5] PLOKHY, Serhii. The Gates of Europe: A History of Ukraine. New York: Basic Books, 2015, p. 57-60.

[6] SIMONE, Lucas R.; NEVES, Leandro César S. The Middle Ages and the construction of Ukrainian national Identity: a brief analysis of Kyiv’s public space. In: ARAÚJO, Vinícius César Dreger de; GUERRA, Luiz Felipe de A. Medievalisms in a global perspective, p. 8 (no prelo).

 

Sobre os autores

Caio de Amorim Féo é licenciado em História pela Universidade Federal Fluminense no ano de 2020, mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (PPGH-UFF) no ano de 2022, e doutorando em História pelo mesmo programa, estudando os processos decorrentes das incursões vikings sob a perspectiva da História Global, além de membro do Translatio Studii – Núcleo Dimensões do Medievo.

Mário Jorge da Motta Bastos é Professor Associado do curso de Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, onde atua também no Programa de Pós-Graduação, além de coordenador do Centro Ciro Cardoso de Pesquisa do Pré-Capitalismo (CCCP-PréK), pesquisador do Translatio Studii – Núcleo Dimensões do Medievo e bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq.

 

As artes que ilustram o texto são da autoria de Sergey Belik (1953 -).

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