Por Arthur Moura

Leia aqui a primeira parte do artigo.

Todo produtor terá que obrigatoriamente optar por qual caminho seguir, ainda que esteja inconsciente disso. Quanto mais crítico for seu pensamento, naturalmente mais obstáculos encontrará. Até mesmo as relações pessoais e familiares podem se tornar um desafio para o artista. E chegará algum momento na vida em que o artista se perguntará: é possível continuar fazendo o que faço? O que preciso compreender e fazer para superar qualquer possibilidade de invisibilidade ou esquecimento? E principalmente: como ganhar dinheiro com o que faço? Isso é de fato possível? O desestímulo que a sociedade burguesa cria contra os artistas e produtores não pode ser suficiente para neutralizá-los. Esse desestímulo é permanente, todos devemos saber disso sem que este seja o maior dos problemas. Essa é uma condição perene, nem por isso irreversível. O artista deve pensar a arte não como expressão individualizada que brota dos seus dedos ou neurônios. Pensar a arte integra um movimento intelectual e teórico crítico, não se resumindo à mera produção artística de um determinado sujeito. À arte produzida cabe a reflexão sobre aquilo que se faz e seu efeito social. É preciso pensá-la como processo ontológico do ser social confrontando tudo aquilo que nasce como expressão artística com o meio social e as temporalidades históricas.

A arte, elemento imprescindível em qualquer gregariedade humana, é resultado de profunda inquietação e necessidade vital. A arte necessariamente reflete o seu contexto histórico, situando-a nas tensões sociais mais gerais. A sua expressão é resultado da condição material de quem a cria. A formação ou capital cultural/educacional que o sujeito dispõe habilita-o ou não a expressar aquilo que o incomoda. Dependendo das condições técnicas, uma determinada produção pode ser aceita ou não em determinado circuito ou cena. Isso faz com que muito do que se produz nasça como insatisfação e desejo de mudança de uma determinada realidade social, o que caracteriza diversos estilos musicais como o Punk e o Rap ou o Cinema Novo. Os campos artístico e cultural são estrategicamente importantes na afirmação de um determinado conjunto de ideias que servirá a um fim específico. Há um verdadeiro desprezo pela arte e pela cultura no capitalismo e na sociedade hodierna, materializando-se em desvalorização direta daquilo que se produz e, nos piores casos, incêndios contra lugares que prezam pela história, memória, cultura e arte, como foi o caso do Museu Nacional há pouco tempo. Nada disso acontece descolado de um contexto social marcado pelas cisões de classes e os interesses inconciliáveis dessas mesmas classes. Dentro desse cenário contraditório, boa parte das expressões artísticas de alguma forma dialoga com as necessidades e exigências da sociedade de consumo, o que gera uma série de problemas para a arte produzida e para o artista que a produz. As sociedades capitalistas de uma forma geral têm uma relação bastante utilitária com a arte. Seus museus lotados de pinturas e exposições muitas vezes acompanhados de todo um misticismo que forja uma redoma, fetichizando o real significado daquelas expressões; grandes músicos em espetáculos memoráveis; o maravilhoso cinema que encanta espectadores. Todas essas expressões de sucesso escondem outras sem as quais nenhum referencial poderia existir. Essa relação contraditória com a arte é a forma como o mercado encontra para manter sua própria dinâmica, reconhecendo e usando tais expressões a seu favor. Essa dinâmica na verdade funciona reconhecendo uns em detrimento de outros, sendo o parâmetro dessa avaliação o valor maior que a arte pode oferecer ao Capital: o lucro. O único alvo que o Capital tem em mira, como bem coloca Marx, é a busca insaciável e incessante do lucro. Como capitalista, diz Marx, “um homem vem a ter um único impulso vital, a tendência a criar valor e valor excedente, para fazer com que os meios de produção absorvam a maior quantidade possível de valor excedente”.

O capital é uma máquina, ou melhor, um sistema sociometabólico que se autoalimenta indefinidamente num movimento de autoexpansão de caráter predatório, incontrolável e que destina a apenas uma classe o controle da economia e das formas de sociabilidade, num suposto movimento de autorregulação do mercado, o que inevitavelmente causa profundos danos a uma imensa maioria pelo fato de haver a superexploração do trabalho. O que no final das contas garante os privilégios da burguesia, dos detentores do capital; não confundir com a mera posse de equivalente universal. O fetiche da mercadoria, onde a prática social mais reiterada é a da compra e da venda, é central nesse processo. O fetiche requer a si as vias pelas quais é processado todo um conjunto de alienação capaz de reorganizar as forças produtivas ao objetivo comum do capital, qual seja, a sua reprodução indefinida. É, portanto, um fenômeno complexo, só possível de ser compreendido em sua essência se observado em suas múltiplas faces de acordo com o seu tempo histórico. Como é um sistema em profunda contradição, opera dialeticamente a partir de certas estruturas, organizações e instituições que supostamente prezam pelo bem comum. Essas estruturas de poder tampouco estão alijadas de um contexto social maior e, por que não, global. Toda essa rede de poder se afirma num elemento fundamental: o fetichismo da mercadoria. Segundo Reinaldo Carcanholo,

O fetichismo é o mecanismo regulador das relações sociais na sociedade capitalista, permite o funcionamento e a regulação indireta do processo de produção da distribuição e da apropriação por meio do mercado. Além disso, o fetichismo é um fenômeno indispensável na preservação da ordem capitalista. Por meio dele, o conjunto dos seres humanos, em particular os subalternos, acreditam que o mundo é regido por determinações naturais, por leis naturais e imutáveis, e que, portanto, nada podem fazer contra isso. Acreditando-se dominados por forças naturais, tais seres (e todos eles, mas especialmente os subalternos) convertem-se em escravos: “o mundo sempre foi assim e nada há a fazer.” Sua impotência, autoatribuída, torna-se real, concretiza-se.

As escolas, universidades, repartições burocráticas e jurídicas e todo o conjunto (com salvas exceções) dos espaços e territórios da cidade-empresa visam perpetuar a fabricação de um homem dócil, adaptado a uma realidade mercantilizada, privando-o de sua própria liberdade que se acentua no que diz respeito às restrições consolidando as relações de dominação. Oxigenar essa realidade por si só é um ato de coragem e bravura. A fábrica que tudo fetichiza também fetichizou a revolta, espetacularizando-a, transformando muitas vezes o enfrentamento numa via para o suicídio, o que reafirma o espetáculo como norma social. A emancipação necessária, portanto, está muito além da mera cidadania, vistos os seus próprios limites estruturais. Ivo Tonet nos dá uma boa pista a este respeito. Diz o autor:

Este conceito de cidadania não estaria sendo utilizado de forma pouco crítica ou seria ele, efetivamente, aceito como sinônimo de plena liberdade humana? Será de fato livre uma sociedade onde vigem plenamente as liberdades democráticas? Será este tipo de sociedade o horizonte inultrapassável da humanidade, isto é, uma forma de sociabilidade aberta ao contínuo aperfeiçoamento? Não haverá uma confusão entre socialidade e cidadania, sendo a primeira um componente da natureza essencial do ser social e a segunda uma categoria histórica e concretamente datada? Não será a cidadania, embora ressalvando decididamente os seus aspectos positivos e a sua importância na história da humanidade, uma forma de liberdade essencialmente limitada? A crítica radical à cidadania implicaria, necessariamente, uma opção por uma forma autocrática de sociabilidade? Haveria bases razoáveis, isto é, reais, para sustentar a possibilidade de uma forma superior de sociabilidade, radicalmente diferente da forma democrático-cidadã? Qual seria a natureza essencial daquela forma? E quais as consequências que derivariam daí para a prática educativa hoje? (Tonet, Ivo. Educar para a cidadania ou para a liberdade? 2005)

O uso que o mercado faz da arte, portanto, diz respeito ao quanto cada expressão ou manifestação artística pode render em ganhos financeiros. Somente a partir daí seu valor social é percebido. Até então, essas produções estão no campo do famigerado underground (que é uma incógnita para muitos) ou do amadorismo, que se define por seu eterno estágio de menoridade sem grande valor. Como bem coloca Marshall Berman em Aventuras no Marxismo, “o capitalismo é terrível porque fomenta a energia humana, o sentimento espontâneo e o desenvolvimento humano com o único objetivo de esmagá-los, a não ser nos poucos vencedores que ocupam o topo”. É claro que a modernidade trouxe uma série de benefícios incomparavelmente superior às formas de organização social anteriores. No entanto, a dialética de Marx permite pensar que “o mesmo sistema social que tortura os trabalhadores também os ensina e transforma de tal forma que enquanto sofrem, eles começam a transbordar de energia e ideias”. Essas ideias muitas vezes materializam-se naquilo que genericamente denominamos “arte”. O artista não é só aquele que produz uma determinada expressão, mas o que reflete sobre a condição daquilo que se cria; das contradições em torno da sua criação e de como isso se relaciona com o meio e quais os resultados disso tudo na sua vida prática. Pensemos a produção artística no contemporâneo. Essas forças criativas estão absolutamente relacionadas com o contraditório contexto que as cercam, sofrendo e reagindo de acordo com a correlação de forças e o momento histórico, atestando muitas vezes a permanência ou extinção de determinada expressão. Se para muitos o termo “artista” parece um tanto quanto banal ou algo genérico, tipo um balaio de gatos, para nós deve ser discutido como algo necessário à própria funcionalidade das sociedades. O artista é aquele que cria e oferece ao público e a todo tecido social algo mais que o simples consumo de um determinado produto/mercadoria. A arte produzida expressa a materialidade de um conjunto de elementos praticados e organizados de forma a dar sentido a uma determinada concepção, que ao ter contato com os demais gera reações diversas, produzindo outros comportamentos e subjetividades, o que escapa ao controle até mesmo de quem produz. Pensemos agora a questão do cinema mais propriamente dito.

Toda a história do nosso país pode ser contada através do cinema. Certamente algum cineasta pensa em produzir um filme sobre os acontecimentos que estão se dando agora com antagonismos tão evidentes. A política é um prato cheio para o cinema. O cinema toca em questões cada vez mais profundas, ainda que em alguns casos, pelo seu comprometimento com o Capital, deixe de questionar e passe a afirmar o establishment. Mas o que me interessa aqui é introduzir questões importantes que venho discutindo com meus companheiros de produção: o que se quer com este cinema que se faz ou que cinema é possível fazer nas condições dadas? Digo, no caso dos produtores e trabalhadores do audiovisual, da comunicação. Que tipo de organização é necessário construir para a produção e distribuição desse cinema que se quer fazer ou que se faz? Que tipo de teoria é preciso desenvolver para fomentar a emancipação e a educação do olhar? E o mais importante: como contribuir para a revolução social utilizando o cinema para isso? E por fim, qual é a função do cinema na sociedade? São realmente muitas questões, mas temos que pensá-las.

O cinema parte de investigação; de linguagem e campos do conhecimento. É, devido a isso, uma arte de difícil acesso e produção. A sua qualidade depende da habilidade de quem a produz. Na medida em que essa habilidade é monopolizada ou restringida a poucos, a arte vira algo exclusivo das classes dominantes. Vira uma arte aristocrática. Por isso a ideia de que o cinema é feito para poucos. Se o cinema de fato fosse feito para poucos, a indústria não teria sentido. A massa consome cinema, as empresas investem em cinema. O lucros são, portanto, altos! Não é essa, mais uma vez, a intenção do cinema revolucionário. Estamos debatendo em como produzir um cinema autônomo e antagônico aos mercados da arte. Como produzir este cinema? A partir das parcerias estabelecidas, do conhecimento acumulado e das redes estabelecidas, a função do produtor é aproximar este cinema do projeto de classe ao qual se filia. É preciso pensar criticamente a produção do cinema em tempos de crise financeira, moral e política, onde o caos generalizado, violência e repressão, coloca-nos a toda prova de dificuldades, fazendo com que muitos trabalhadores do cinema tomem para si a solução imediatista e inócua de superação da precariedade através dos modelos de mercado, tornando-se empreendedor de si e mercantilizando tudo quanto for possível, resultando em expressões esvaziadas de conteúdo crítico. Por mais que o mercado e a indústria divulguem ganhos suntuosos, sabemos, pois, que ele é concentrado nas mãos de poucos. Essa é a velha saída individualista ou corporativa. Ela se encontra na prateleira de todas as áreas e está à disposição, mesmo que no campo da imaginação ou alucinação, a todo tecido social. Debater sobre mercado e formação de redes é de fundamental interesse para nós, enquanto produtores de cinema, pois buscamos meios independentes e coletivos para viabilizar nossa produção.

Pensar a formação de redes é também nos colocar na condição de construtores de formas de rede que são construídas a partir de pautas comuns. Por mais que existam diferentes segmentos da esquerda, tem que haver pautas comuns. Essas pautas são de interesse político e social. Este é apenas o primeiro passo. A rede é também uma questão de sobrevivência. O cinema é uma ferramenta imprescindível na defesa dos grandes interesses de classe. Essa arte está longe de ser um mero divertimento. Obviamente que a utilizamos também para isso. Vamos ao cinema em encontros com amigos e namorados, para ter contato com outras sinergias, e saímos afetados, dependendo daquilo que nos é mostrado. Por isso, é normal fazermos balanços, ainda que breves e de forma mental, após ver um filme. Esse afeto é carregado de valores que por vezes se confrontam com os nossos, causando as reações mais diversas. Às vezes estranhamento ou má compreensão, outras vezes uma profunda identificação com aquilo que vivemos ou pretendemos viver. Como cada frame é pensado, nada é mostrado gratuitamente. Desde a elaboração do roteiro, filmagem e montagem, tudo é milimetricamente pensado, até mesmo no cinema mais livre. O exercício da montagem, por exemplo, estabelece o que entra e o que fica de fora, definindo o conteúdo e a narrativa do filme. Por isso, explorar e compreender essa arte requer uma boa compreensão dos fatores sociais que determinam aquilo que se produz. No entanto, utilizamos o cinema primordialmente para confrontar nossos limites pessoais, mas principalmente aqueles que atravancam o avanço das sociedades, denunciando as contradições através das ferramentas do audiovisual. O filme político é, portanto, uma arma eficaz nas disputas hegemônicas. Ainda que as esquerdas, de uma maneira geral, tenham entendido mal a função do cinema (arriscaria dizer que alguns setores simplesmente recusam essa ferramenta como algo necessário), a sua produção acaba avançando por outros lados, que por uma falta de organização é facilmente cooptado pelo mercado e suas formas de fetiche e espetáculo. Digo que as esquerdas entendem mal porque, em primeiro lugar, muito mal produzem filmes, muito menos apoiam-se os produtores, restringindo-se a algumas exceções de nomes já demasiadamente conhecidos, funcionando muitas vezes como um outro mercado. A esquerda não fomenta a produção cinematográfica, e seus produtores, por uma parca formação intelectual, acabam se formando por outros referenciais e naturalmente servindo a outros interesses. As esquerdas, portanto, não fazem uso dessa ferramenta tão necessária à luta dos trabalhadores, que diariamente são bombardeados com mil notícias capciosas da direita e produções com megainvestimentos. Os partidos, sindicatos e organizações autônomas muito recentemente tem se preocupado com o audiovisual, beneficiando a cobertura de manifestações ou a análise política, mas nunca a construção lúdica da emancipação humana ou simplesmente uma montagem agressiva que denuncie com eficácia os desmandos do Capital e do Estado e fomente a revolta popular. Eles não têm quadros qualificados para isso. E que diferença faz este apoio? Para quem produz, muita. Para os trabalhadores, o ganho é ainda maior.

O cinema político é aquele que se agrega às lutas sociais desenvolvendo-se no seu interior, independente do seu modo de financiamento. Seja nas culturas de resistência ou nos movimentos sociais, este cinema se forja a partir de necessidades reais e concretas. Sua precariedade, no entanto, é o seu principal limite, o que muitas vezes reduz a sua vitalidade, resultando na sua anulação. O cinema que é possível fazer então, na maioria das vezes, é tecnicamente limitado, mas nem por isso perde no seu potencial crítico, como é o caso de Atrás da Porta, filme visceral de Vladimir Seixas, ou À Margem da Imagem, de Evaldo Mocarzel, que aborda os porquês de um importante setor da classe trabalhadora estar alheio às construções narrativas imagéticas e, quando aparecem, são marcadamente caricaturizados ou utilizados em prol de interesses privados. A distribuição desse cinema também é precária, pois não existem redes horizontais estabelecidas a partir de um objetivo centrado e comum, necessário à construção de alternativas ao mercado que tudo traga. Os produtores, então, são obrigados a adentrar em regras muito pouco conhecidas e que têm seus mecanismos próprios de seleção, que estão longe de ser democráticos. O que se quer com este cinema é limitado mais uma vez por estes fatores. Registrar-se na Ancine, ter um MEI [1], pagar taxas, impostos, enfim, tudo isso não necessariamente precisa fazer parte da construção cinematográfica. Produzir um filme independente com orçamento médio é algo muitíssimo difícil. Os filmes políticos produzidos são, neste universo, os mais baratos. A função do cinema político é certamente contribuir da melhor forma possível às necessidades mais urgentes da classe trabalhadora, contribuindo para a sua organização e emancipação. É função deste cinema denunciar (sem pestanejar) a burguesia como classe dominante e seus aparatos, como a polícia, a justiça burguesa e a sua mídia, que entorpece os trabalhadores com mentiras e mentiras. Dentro disso, o cinema entra num debate ainda maior, que é o campo da comunicação.

A terceira parte do artigo pode ser lida AQUI.

Notas dos editores

[1] Registro de Micro Empreendedor Individual (MEI).

Ilustram este artigo cenas de filmes de Georges Méliès (1861-1938).

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