Por João Bernardo
A crise económica da década de 1930 é bem conhecida, parece-me inútil alongar-me aqui a este respeito e quero destacar apenas um aspecto. A Alemanha era já então um dos países mais industrializados, contando com uma das tecnologias mais avançadas. Apesar disto era altamente deficitária, porque o tratado de Versailles a obrigava a pagar todos os anos enormes reparações de guerra às potências vencedoras, sobretudo à França e à Grã-Bretanha. Ora, a guerra mundial levara estes dois países a contrair grandes dívidas perante os Estados Unidos, pelo que as indemnizações de guerra alemãs eram em boa medida canalizadas para os americanos, cujos bancos, por sua vez, faziam empréstimos à Alemanha para que ela pudesse pagar as reparações. Instaurara-se assim um circuito triangular: Alemanha → França + Grã-Bretanha → Estados Unidos → Alemanha etc. Quando, nos últimos anos da década de 1920, deflagrou nos Estados Unidos uma crise económica que desencadeou uma sucessão de falências bancárias, os empréstimos americanos à Alemanha ficaram comprometidos, o que por sua vez comprometeu o pagamento das reparações de guerra, com efeitos em cadeia que contribuíram para internacionalizar a crise.
A crise mundial foi precipitada, portanto, por uma ruptura nos circuitos financeiros internacionais, e esta retracção do horizonte económico inspirou ideias nacionalistas mesmo àquelas correntes políticas que não eram originariamente nacionalistas. A doença era apresentada como um remédio. Foi neste contexto, em Abril de 1934, que Leon Trotsky publicou na Foreign Affairs (vol. 12, nº 3) o artigo Nationalism and Economic Life. Trotsky começou por recordar que os fascismos proclamavam o nacionalismo económico, mas não era necessário insistir porque todos o sabiam e, aliás, os próprios dirigentes fascistas anunciavam alto e bom som a defesa de uma economia nacionalista. Por isso Trotsky advertiu que, se todo o fascismo era um nacionalismo económico, nem todo o nacionalismo económico era fascista.
E foi no decurso da sua argumentação que Trotsky escreveu: «Há vinte anos apenas, todos os manuais escolares ensinavam que o mais poderoso factor na produção da riqueza e da cultura é a divisão mundial do trabalho, assente nas condições naturais e históricas do desenvolvimento da humanidade. Mas agora imagina-se que as trocas mundiais estão na origem de todas as desgraças e todos os perigos. Rumo a casa! De regresso ao pátrio lar! Não só seria necessário corrigir o erro do almirante Perry, que fez explodir os muros da “autarcia” japonesa, como seria necessário também corrigir o erro ainda maior de Cristóvão Colombo, que ampliou desmedidamente a esfera da cultura humana». Trotsky foi assassinado em Agosto de 1940, mas isso não seria demasiado grave se desde então ele não tivesse sido assassinado todos os dias, e precisamente pelos seus discípulos. Uma verdadeira hecatombe! Existirá hoje algum partido trotskista — já nem digo partido, mas uma menina ou um menino trotskista — que ouse reconhecer que as viagens de Cristóvão Colombo ampliaram desmedidamente a esfera da cultura humana?
Prosseguindo aquele raciocínio, Trotsky considerou que «só uma perversa ignorância pode traçar qualquer oposição nítida entre a nação e a democracia liberal». Com efeito, ao mesmo tempo que nos séculos XVIII e XIX as burguesias democráticas haviam imposto a unidade e a independência das realidades nacionais, a economia tinha-se também expandido além-fronteiras. «[…] o desenvolvimento económico da humanidade, que derrubou os particularismos medievais, não se deteve no interior das fronteiras nacionais. O crescimento das trocas mundiais ocorreu paralelamente à formação das economias nacionais. Esta tendência de desenvolvimento — pelo menos no que diz respeito aos países avançados — encontrou uma expressão no deslocamento do centro de gravidade do mercado interno para o mercado estrangeiro». E Trotsky chegou então ao cerne da sua argumentação. «A crise actual, na qual estão sintetizadas todas as crises capitalistas do passado, significa, acima de tudo, a crise da vida económica nacional». Mas hoje a generalidade dos trotskistas — e não só, mas é deles que agora me lembro — foi absorvida pelo nacionalismo e rendeu-se ao mito da soberania económica e alimentar, pretendendo solucionar as crises, quaisquer crises, mediante aquilo que para Trotsky era precisamente o fulcro do problema, «a crise da vida económica nacional».
Assim, com o objectivo de «libertar completamente as forças produtivas das grilhetas que lhes são impostas pelo Estado nacional», Trotsky teve de ir ainda mais longe, ou mais fundo. «A humanidade é impulsionada na sua ascensão histórica pela ambição de conseguir a maior quantidade possível de bens com o menor dispêndio de trabalho. Estes alicerces materiais do desenvolvimento cultural fornecem também o critério mais profundo que nos permite avaliar os regimes sociais e os programas políticos. Na esfera da sociedade humana, a lei da produtividade do trabalho tem a mesma importância que a lei da gravidade na esfera da mecânica». Este crescimento da produtividade, num percurso histórico para o qual Trotsky sublinhou o carácter contraditório, «determinou o triunfo do escravismo sobre o canibalismo, da servidão sobre o escravismo, do trabalho assalariado sobre a servidão». O aumento da produtividade constituía, para Trotsky, o motor do progresso humano. E ele abordou então a grave crise económica que assolava o mundo na época em que escreveu aquele artigo. «A lei da produtividade do trabalho choca freneticamente com as barreiras que ela própria ergueu. É isto que está no cerne da enorme crise do sistema económico moderno».
«Os políticos e teóricos conservadores, deparando de imprevisto com as tendências destrutivas da economia nacional e internacional», continuou Trotsky, «tendem a concluir que um excessivo desenvolvimento da tecnologia seria a principal causa das calamidades actuais. É difícil imaginar um paradoxo mais trágico!». Pobre Trotsky, o assassinato poupou-lhe ao menos a amargura de ver que já não são os «políticos e teóricos conservadores», mas sobretudo os esquerdistas — e entre eles tantos trotskistas! — quem defende hoje a regressão tecnológica. Naquela época a extrema-esquerda apresentava um projecto de futuro, mas hoje agarra-se à imagem mítica de um passado que nem sequer existiu. «A tarefa progressiva de adaptar a esfera das relações económicas e sociais à nova tecnologia é virada de pernas para o ar e apresentada como se fosse uma questão de restringir e limitar as forças produtivas de modo a que se ajustem aos velhos espaços nacionais e às velhas relações sociais». Estas palavras de Trotsky deviam ser colocadas numa tabuleta, para prevenir os incautos, à entrada de todas as experiências das vias campesinas e dos movimentos ecológicos e similares. Lasciate ogni speranza, voi ch’entrate.
E Trotsky continuou. «A orientação que visa uma economia fechada implica o estrangulamento artificial daqueles ramos da indústria que são aptos a fecundar com êxito a economia e a cultura dos outros países. E implica também a implantação artificial daquelas indústrias que não dispõem de condições de crescimento favoráveis no solo nacional. Assim, a ficção da auto-suficiência económica provoca, por um lado e pelo outro, tremendas despesas». Ficava delineada uma crítica de fundo do que viriam a ser as múltiplas experiências frustradas de socialismo terceiro-mundista. E essa crítica não poderia ser mais actual em quase todo o mundo, quando os programas populistas fazem de novo convergir a extrema-direita e a extrema-esquerda num comum proteccionismo económico.
Mas a tendência ao aumento da produtividade é irrefreável. «A lei básica da história humana deve inevitavelmente triunfar sobre os fenómenos marginais e secundários». E Trotsky interrogou. «De que maneira? De todas as maneiras. Um alto coeficiente de produtividade indica igualmente um alto coeficiente de forças destrutivas. Estarei eu a pregar a guerra? De modo nenhum. Não estou a pregar nada. Estou apenas a esboçar uma análise da situação mundial e a extrair conclusões das leis da mecânica económica. Não existe nada pior do que o tipo de cobardia mental que vira as costas aos factos e às tendências quando contradizem os seus ideais ou os seus preconceitos».
Pois é. «Não existe nada pior do que o tipo de cobardia mental que vira as costas aos factos e às tendências quando contradizem os seus ideais ou os seus preconceitos». Aos trotskistas — e aos outros também — que lerem este artigo desejo uma excelente semana.
Prezado João Bernardo,
Se, por um lado, me parece correto sua crítica, neste e em diversos outros artigos e comentários, a uma esquerda que defende a regressão tecnológica, por outro lado fica parecendo que é esta esquerda, não só a mentora “intelectual” desta posição, como é ela própria a agente desta realidade. Noutras palavras, fica parecendo que “as esquerdas” é que promovem e, sobretudo, “controlam” esta regressão tecnológica. E a palavra “controle”, penso eu, é, ou deveria ser, a palavra central a ser analisada.
Se, “O aumento da produtividade constituía, para Trotsky, o motor do progresso humano”, em seus textos, João Bernardo, o tempo e o controle sobre ese tempo é a essência do capitalismo. Se há uma guinada, ainda que parcial no campo produtivo, mas ampla no campo internacional, em favor desta “regressão tecnológica”, pela lógica, ela deve ser engendrada por que detém o controle do tempo nos processos produtivos, e não àqueles que estão subordinados a este controle, sejam estes de esquerda ou de direita.
A partir desta lógica, controle do tempo, pode-se comprovar, por exemplo, que o “Brasil está no mundo”, assim como está a Alemanha, Portugal, a Itália, a França e “todos mais”, inclusive a China, ou seja, mesmo com o aumento da mais valia relativa através do “avanço tecnológico”, há, também, o aumento da mais valia absoluta, através do aumento da jornada de trabalho, do tempo para aposentadoria, da redução salarial, do poder aquisitivo, da ecologia, do identitarismo, etc.
De fato, as “esquerdas” pecam em defender a manutenção da exploração de mais valia (seja por “controladores” de tempo negro, branco, homem, mulher, hétero, homo, etc). Pecam, ainda mais, por defender a exploração da mais valia em sua forma absoluta. Mas entre a defesa, por mais inaceitável que seja, e a sua implementação há uma distância que, me parece, bem longa. À quem implementa e controla “os tempos” de regressão tecnológica é que devemos, “à Tragtenberg”, questionar e combater.
Texto excelente! Gostaria que comentasse sobre este discurso de “independência” vindo da Europa e também ao fato de vir associado ao ecologismo. O bloco de países que se autoproclamam “ocidente” parecem ser resistentes ao desenvolvimento de outras nações. Qual é seu ponto de vista?
G. Beraht,
Com efeito, um pressuposto de tudo — ou quase tudo — o que tenho escrito é que o progresso da humanidade se deve à ambição de obter uma maior quantidade de bens e serviços com um menor dispêndio de tempo de trabalho, ou seja, aumentar a produtividade. No entanto, eu coloco sempre o problema de saber qual o sistema em que se insere esse aumento da produtividade, quais as relações de trabalho que promovem o aumento da produtividade. Por isso lhe dou toda a razão quando você escreve que «a palavra “controle”, penso eu, é, ou deveria ser, a palavra central a ser analisada».
Mas Trotsky era muito hábil — nos seus escritos, não na sua actividade política prática, em que foi tragicamente inábil — e por isso esquivou-se naquele artigo a mencionar as relações de trabalho. Isso é especialmente flagrante quando ele referiu, a respeito do crescimento histórico da produtividade, «o triunfo do escravismo sobre o canibalismo, da servidão sobre o escravismo, do trabalho assalariado sobre a servidão». Faltou-lhe prever o triunfo de quê sobre o trabalho assalariado. É certo que se tratava de um artigo para a Foreign Affairs e não de um panfleto revolucionário, mas essa mesma lacuna enferma tudo o que Trotsky escreveu sobre a organização económica da União Soviética e sobre a crítica ao stalinismo, como eu analisei extensa e detalhadamente noutro lado.
Mas o fundamental do comentário de G. Beraht parece-me ser a referência à relação das esquerdas com a produtividade. Ora, cabe aqui uma pergunta — quais esquerdas?
Por um lado, existe a esquerda do politicamente correcto, dos identitarismos, do ABCD+, dos estudos pós-coloniais e de tudo o mais que se seguirá. Ora, actualmente essa esquerda é 1) hegemónica no capitalismo ocidental e 2) promotora do aumento da produtividade. Na União Europeia, no Reino Unido e no Canadá existe cada vez mais legislação impondo os pontos de vista dessa esquerda e criminalizando quem a eles se oponha. A Hungria e a Polónia constituem excepções parciais, e por isso estão a sofrer retaliações dos órgãos centrais da União Europeia. Nos Estados Unidos, neste momento, a situação é ambígua, porque a nível do governo federal o politicamente correcto é totalmente hegemónico, embora não o seja a nível de muitos estados nem do Supremo Tribunal. Ora, para verificarmos como a esquerda politicamente correcta é promotora do aumento da produtividade basta consultar os artigos publicados no site da McKinsey, o maior organismo mundial de consultoria de empresa. Não só a esquerda politicamente correcta promove a renovação das elites, o que, por si só, contribui para o rejuvenescimento do capitalismo e, portanto, para o aumento da produtividade, como facilita as condições de exploração no interior das empresas, já que os trabalhadores de uma dada identidade vêem com bons olhos que os gestores tenham a mesma identidade, o que estimula a mais-valia relativa.
Mas existe ainda uma esquerda focada na economia, embora cada vez mais marginalizada. Ora, esta esquerda deixou de mencionar as relações de trabalho e o controle sobre o tempo de trabalho e, em vez disso, passou a defender a regressão tecnológica e a fazer a apologia de certos sistemas laborais estritamente decorrentes da mais-valia absoluta. É elucidativa a relação desta esquerda com a ecologia, sobretudo com a chamada ecologia profunda.
P.S.: Acrescento uma coisa. Acabo de ler num editorial do último número de The Economist, que saiu agora: «[…] one of the hottest trends in finance: environmental, social and governance (esg) investing. It is an attempt to make capitalism work better and deal with the grave threat posed by climate change. It has ballooned in recent years; the titans of investment management claim that more than a third of their assets, or $35trn in total, are monitored through one esg lens or another. It is on the lips of bosses and officials everywhere».
***
Ricardo Ronaldo Pinto,
Perguntar é rápido, mas responder…
De uma maneira ultra-sintética, as minhas linhas de argumentação seriam as seguintes. Todo o capitalismo não só desenvolvido, mas que continua em desenvolvimento, tem um interesse vital em promover o desenvolvimento capitalista dos restantes países. O desenvolvimento capitalista não é um jogo de soma zero. Um exemplo flagrante: enquanto Stalin mandava desmontar e transferir para a União Soviética as instalações industriais do que havia sido o Terceiro Reich, os Estados Unidos aplicavam na Europa o Plano Marshall. Outro exemplo: os americanos espatifaram durante anos o Vietnam, mas quando a guerra acabou passaram a investir no desenvolvimento económico desse país. Talvez mais flagrante ainda é o caso do Japão, que pouco depois de derrotado na segunda guerra mundial se tornou numa das mais importantes potências económicas. A lista não pára aqui, porque a Coreia, depois de ter sido uma colónia japonesa, tratada abjectamente pelos colonizadores, converteu-se, na sua metade sul, num centro económico indispensável ao capitalismo mundial. Ou as Índias Orientais Holandesas, que depois de terem conquistado a independência, numa guerra de guerrilhas posterior à segunda guerra mundial, se converteram numa Indonésia onde o capitalismo cresceu e se desenvolveu. Podia continuar a alinhar exemplos, a tal ponto que o mais importante não é esta regra, mas as excepções. E a África é a mais significativa destas excepções. Por que motivo os países africanos, que partiram de situações mais propícias do que a Coreia ou o Vietnam ou a Indonésia, constituem, no seu conjunto, o pedaço do mundo mais mal governado? Penso que a explicação se encontra, não nas relações económicas mundiais, mas na estrutura arcaica das elites locais. Tenho pensado muito no assunto e não encontro outra linha de resposta. E o mesmo se pode dizer a respeito da maior parte dos países da América Latina.
A melhor prova a contrario de que todo o capitalismo em desenvolvimento tem um interesse vital em promover o desenvolvimento dos outros países é o que ocorre hoje com os Estados Unidos. O presidente Trump desembaraçou-se tanto quanto lhe foi possível das responsabilidades multilaterais dos Estados Unidos e estava disposto a desembaraçar-se igualmente da Nato, porque os Estados Unidos são uma potência económica declinante. E, assim, Trump optou pela reacção defensiva que Trotsky começara por recordar no seu artigo — o nacionalismo económico. Aparentemente, o presidente Biden segue uma linha oposta e regressa à multilateralidade das relações económicas. Mas a reacção americana à invasão putinesca da Ucrânia apressou precisamente a ruptura dessa multilateralidade, acelerando a cisão do mundo em dois blocos, e é agora a China quem anima o bloco capitalista mais activo e empreendedor. Talvez aquele programa imperialista chinês que é vulgarmente designado como Nova Rota da Seda consiga fazer a África sair da cleptocracia e passar para o desenvolvimento económico. Pelo menos, tem-se esforçado nesse sentido. Se conseguir, terá, uma vez mais, mostrado que o capitalismo não é um jogo de soma zero e que um centro em desenvolvimento precisa de desenvolver os outros países, porque sem isto não conseguirá prosseguir o seu próprio desenvolvimento.
As citações do Trotsky fariam arrepiar os antropólogos nos dias de hoje, e não só eles. Primeiro ele considera os povos que viviam na chamada América antes da chegada de Colombo como não humanos. Afinal, se Colombo “ampliou desmedidamente a esfera da cultura humana”, é porque não existiam antes seres humanos (e nem cultura, que existe em qualquer sociedade humana) nessas terras.
Já em outra passagem ele extrapola a as sociedade humanas que existem e existiram os valores instituintes do capitalismo, da própria sociedade em que ele vivia: “A humanidade é impulsionada na sua ascensão histórica pela ambição de conseguir a maior quantidade possível de bens com o menor dispêndio de trabalho”.
A crítica a essa projeção da economia política à história universal, projeção presente já em Marx e outros de sua época, foi feita provavelmente por vários autores. Me lembro de dois, que gosto bastante, Castoriadis e Baurdrillard (esse último particularmente em ‘Le miroir de la production’).
As duas questões se conectam. Não enxergar outra cultura humana além daquela da sociedade em que se vive.
E foi na busca do aumento de produtividade que Trotsky e Lenin foram entusiastas do taylorismo na URSS.
E aí a questão que fica, uma vez que a linha de produção pode servir a um aumento de produtividade, mas é uma técnica de dominação do trabalhador pelo capitalista: Seria regresso tecnológico os trabalhadores tomarem para si uma fábrica e modificarem o processo de trabalho e as próprias máquinas para terem controle sobre seu trabalho? As experiência históricas de tomada das fábricas pelos trabalhadores, de autogestão em momentos revolucionários, em que se começa a modificar os processos de trabalho, operaram um aumento ou redução da produtividade?
Não é o próprio conceito de ‘produtividade’ que é modificado (ou mesmo extinto) numa sociedade em que o trabalho não é alienado e nem dominado por patrões?
Uma das questões das empresas que passam a ser autogeridas é conseguirem mudar substancialmente o processo produtivo (se desfazerem da organização de trabalho e técnicas de dominação capitalistas) e manterem uma produtividade para sobreviverem num mercado que ainda é hegemonicamente o de uma sociedade capitalista. Não há relação necessária entre mudança nas relações de produção e aumento da produtividade. Trotsky e Lenin escolheram o taylorismo, como bons ‘patrões’ que eram então, uma vez que o fim era aumento da produtividade e não a experiência vivida dos trabalhadores no chão da fábrica.
Outra questão, já vi dados sobre empresas que estimulam a “diversidade” terem maiores ganhos e lucros (o livro do Pablo Polese “Machismo, racismo, capitalismo identitário” traz bastante dados nesse sentido). Mas ainda faltam dados de que esse lucro maior se deve a aumento de produtividade (alguns dados, pelo que lembro, relacionam esses ganhos maiores ao mercado que essas empresas conquistam).
Tornar compatíveis a autogestão e a produtividade constitui o núcleo do texto “O problema da escala no anarquismo e o caso do comunismo cibernético”, de Aurora Apolito, um dos mais importantes já publicados neste site (aqui: https://passapalavra.info/2020/07/133143/). Enquanto a classe trabalhadora, porém, continuar a encarar a produtividade como um problema e um interesse dos capitalistas, continuaremos sem os meios de compatibilizar as duas coisas, deixando de efetivar uma modernidade industrial não capitalista.
LeoV,
entendo a coisa mais ou menos assim: o valor está ligado ao tempo de trabalho socialmente necessário. A distribuição global do valor produzido pelo conjunto de empresas e produtores (que determinará o lucro) é feita conforme o nível de produtividade (mais-valia relativa), onde uma empresa produz em menos tempo que o socialmente necessário, e por isso abocanha uma fatia maior do valor global, ou então por meio de mecanismos da mais-valia absoluta (protecionismo, violência, guerra, espoliação, retomada de direitos etc.). O mecanismo fundamental da lucratividade e do poder das empresas reside na mais-valia relativa, portanto no aumento da produtividade, portanto na redução do tempo de trabalho socialmente necessário, portanto na redução da quantidade de horas de trabalho necessárias para produzir X, seja produto ou serviço. Por isso, em situações de disciplina na produção, ou seja, na ausência de greves e outros conflitos sociais, o setor mais importante de uma empresa é o P&D (Pesquisa e Desenvolvimento), onde se chegará à aplicação produtiva da ciência e tecnologia. Esse setor é ainda empurrado e forçado a se desenvolver quando os conflitos sociais estão latentes (sempre) e principalmente quando explodem (então há urgência de ganho de produtividade para que a empresa consiga assimilar as lutas e demandas dos trabalhadores, cedendo em valores de uso/salário/direitos o adicional que ganhou em termos de valor). O que venho defendendo é que cada vez mais se torna relevante o setor de I&D (Inclusão e Diversidade). Esse setor não atua apenas no âmbito da conquista de mercados, o que entendo ser típico da mais-valia absoluta e portanto pouco eficaz em termos de expansão sólida do poder e da lucratividade da empresa. Esse setor atua a nível da mais-valia relativa, ou seja, aumenta a produtividade da empresa. E o faz não apenas em termos de disciplinar os operários e operárias negras e coloridas no sentido de fazerem menos greves, menos sabotagens, menos poros de trabalho, mas no sentido de produzirem mais engajados e mais felizes e por isso produzirem mais em menos tempo. Se se imagina a fábrica fordista-taylorista a la Charles Chaplin 1936, do operário apertando parafusos, pode soar estranho pensar que contratar mulheres e negros e dar centralidade ao identitarismo faz aumentar a produtividade, mas se se compreende as empresas como toyotistas e uberizadas, portanto como totalmente dependentes, hoje, da criatividade e engenhosidade, e especialmente se se foca em empresas de ponta, centradas na tecnologia e nos serviços, fica mais fácil entender como se dá o ganho de produtividade: os gestores perceberam que uma empresa colorida e diversificada identitariamente é uma empresa mais criativa, mais “resiliente”, mais dotada de “soft skills” que reduzem o tempo de trabalho socialmente necessário para o desenvolvimento de uma ideia ou produto ou serviço, como por exemplo saber que uma caneta bic rosa pelo dobro do preço não vai pegar bem ou que um comercial super engenhoso na verdade passa uma imagem contestável ou que o videogame de guerra seria mais atrativo para alguns segmentos se houvesse um bonequinho com farda rosa ou que seria legal desenvolver um shampoo com tecnologia específica para cabelo crespo ou que determinado som emitido pode remeter a algo preconceituoso ou racista ou machista. Todos esses exemplos aparentam estar tocando no tema de conquista de mercado, mas não estão, pois não se trata de ofertar um mesmo produto ou serviço e sim de desenvolver produtos e serviços com tecnologia e estética bastante complexas e totalmente atreladas à produtividade da empresa, e em seguida aos seus lucros, posto que se produz em menos tempo o comercial, serviço, imagem e produto social e politicamente correto, em termos identitários. Em termos absurdos, para ilustrar, é como se enquanto um operário branco demoraria 20 horas para ter uma ideia boa sobre creme facial para negros, uma negra teria a ideia em 10 horas. Nesse sentido talvez seja possível dizer que o capitalismo identitário converte em ganhos de produtividade e capitaliza para si aspectos das experiências, numa espécie de espoliação da cultura dos oprimidos e de diversos know how politica, ideológica e economicamente úteis na consolidação do poder da empresa e da expansão de seus lucros. O capitalismo identitário se desenvolve a reboque de uma sociedade que impõe valores de uso identitários e formas politicamente corretas de exploração do valor, portanto relações sociais identitariamente conformadas dentro e fora da empresa. A adequação aos parâmetros sociais identitários é uma adequação em termos de relações de produção e por isso é mais produtiva a empresa que mais rápido se adequa a tais parâmetros, conseguindo tocar certos saberes e realizar certos conjunto de exigências em um menor tempo de trabalho socialmente necessário.
Ao longo de décadas tenho escrito muitas centenas, se não milhares, de páginas defendendo a produtividade como mecanismo do progresso humano e criticando a regressão tecnológica. E escrevi centenas de páginas criticando a forma como Trotsky, enquanto dirigente da União Soviética, pretendeu implementar a produtividade. Voltei há pouco a tratar do assunto, num comentário em resposta a G. Beraht. De qualquer modo, o último comentário de Fagner Enrique resume lapidarmente o problema.
Quero agora somente destacar que ao afirmar que Colombo ampliara desmedidamente a esfera da cultura humana, Trotsky estava a dizer que essa esfera fora ampliada de ambos os lados. Trotsky não ignorava o alto nível civilizacional que havia sido atingido por alguns povos das duas Américas. Ele era muito culto, contrariamente ao que sucede hoje com muitos dos seus seguidores e com muitos dos seus detractores. Ele era muito inteligente, também.
Nos cursos de ciências humanas, ao menos na atualidade, Pierre Clastres é leitura obrigatória para entender que o surgimento do Estado e da sociedade de classes reside no ascenso da economia complexa. As comunidades, no entanto, não são capazes de se expandir sem complexificar sua economia, trata-se de uma constatação empírica que fez com que Clastres batesse na parede, esse raciocínio nunca impediu que alguns — muitos — anticapitalistas defendessem a regressão tecnológica, mas trata-se de algo evidente em sua obra. De outro lado, Há estudos inovadores sobre a reformulação da economia complexa aos parâmetros autogeridos, como o de Aurora Apolito, e isso deveria ser matéria de nosso interesse imediato.