Por Vitor Ahagon
Quarta-feira. 5:45 e o despertador toca. Soneca. 5:55 levanto. Escovo os dentes, faço o café e às 6:30 pego a bicicleta para ir ao trabalho e foi justamente nessa hora que uma mulher perdeu uma das pernas…
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Quando cheguei na escola, fui dar aula para a terceira série, que na época quando fui estudante se chamava terceiro ano. Lembro que “no meu tempo” minha cabeça estava mais fora da escola do que dentro, imaginava como minha vida seria depois de anos naquele lugar que me trazia tanta angústia, mas também muitas risadas. Duas décadas se passaram desde que saí da escola, mas esse sentimento ambíguo do antigo terceiro ano, e agora terceira série, continua o mesmo. No meu caso, o que mudou é que deixei de ocupar o lugar de estudante para estar no de educador. Por ainda lembrar dessa vontade louca de querer estar na escola mas sair dela, entrei na sala. Comecei a aula e numa das tantas divagações que faço, comentei do caso que registrei em texto no Passa Palavra, e foi nesse momento que um dos estudantes pediu a palavra…
— Mano, foi em um dia normal como os outros, sabe? Isso aconteceu na primeira semana de aula, especificamente em uma quarta-feira. Eu arrumei as minhas coisas e fui para o colégio, quando deu umas 6:30, cheguei na estação CPTM, Guaianases, perto de casa… Naquele dia, tinha dado problema na linha e os trens estavam chegando na estação com um intervalo maior, com isso a plataforma foi enchendo cada vez mais….
Aqui em Guaianases, tem os trens que vêm de Mogi das Cruzes e vão para a Luz, e também tem os próprios trens que saem de Guaianases. Esse trem de Guaianases, geralmente vem da Luz, fica em Guaianases por uns minutos e depois vai para a Luz de novo.
Eu estava esperando esse trem que vem da Luz, daí quando ele estava chegando na plataforma, o pessoal começou a empurrar os outros. Nessa, uma mulher acabou caindo nos trilhos e foi atropelada pelo trem e teve a sua perna decepada na frente de todo mundo.
De repente a sala toda, inclusive eu, olhamos para o estudante com o horror estampado em nossos rostos. Porém, na realidade, casos como esses não são tão incomuns em São Paulo. Só em 2021, o número de acidentes na linha 11-Coral foi de 363, média de quase um acidente por dia. Esse número vem caindo ao longo dos anos, mas muitos outros acidentes de outras naturezas continuam acontecendo nas linhas, como o caso do trem da linha 8-Diamante que colidiu com uma barreira de proteção na estação Júlio Prestes ou do trabalhador haitiano que morreu eletrocutado quando fazia a manutenção da linha 9 ou ainda o jovem de 18 anos que foi encontrado morto nos trilhos da estação Palmeiras/Barra Funda.
A CPTM argumentou que o jovem cometeu suicídio — versão contestada pela família —, já o maquinista do trem que colidiu na barreira de proteção foi demitido. Ou seja, em ambos os casos os responsáveis por essas tragédias foram as próprias vítimas. Entretanto, nós sabemos quem é o verdadeiro responsável por esses desastres: o capitalismo. É o capitalismo que precariza o trabalho. É o capitalismo que faz com que os trens se atrasem. É o capitalismo que nos amputa todos os dias, um, dois membros. Ficamos sem pernas, sem braços, sem razão, sem emoção. Somos tragados pelo cansaço e quando nos damos conta, colidimos com o muro de proteção, um muro que não nos protege, muito pelo contrário. Parece que o capitalismo é essa linha de trem que inexoravelmente nos leva para um muro. O intuito é nos chocar contra ele, e, no final das contas, a culpa será nossa e não da linha do trem que nos levou até lá.
Todos os dias, sem percebermos, por mais difícil que seja, por mais que nos demos mais dez minutos de paz, levantamos de nossas camas e partimos para uma guerra não declarada, uma guerra que é tão comum que nem parece uma guerra, mas o número das baixas dessa guerra cresce exponencialmente. De tempos em tempos, a guerra de classes fica mais ou menos evidente, mas ela sempre está ali, e também aqui, e os sobreviventes dessa guerra ficam marcados pelo resto da vida, mesmo que as cicatrizes sejam invisíveis. E foi assim que perguntei ao estudante qual tinha sido a reação das pessoas quando viram a mulher perder uma das pernas…
— Ah, professor… Uma parte ficou desesperada e começaram a gritar e a chorar, outras pessoas sem noção começaram a gravar e outras pessoas simplesmente só entraram no trem e prosseguiram viagem. Esse dia eu fui para o colégio, porque não tive coragem de voltar para casa. Eu não ia conseguir dormir e iria ficar remoendo isso na minha cabeça. Mano… É foda professor! Eu fiquei traumatizado, até hoje sinto o maior desconforto em pegar o trem…
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Amanhã será mais uma manhã… O despertador vai tocar às 5:45 e vou colocar na soneca. Vou levantar às 5:55 e escovar os dentes. Fazer o café e às 6:30, pegar minha bicicleta para sair, mas sabendo, mais do que ontem, que não vou apenas para o trabalho, mas para a guerra…