Eddi Aguirre
Eddi Aguirre

Por Vitor Ahagon

Veja também as traduções para o inglês e o espanhol.

São Paulo. Carros. Buzinas. Fina que o ônibus tira. Cachorro latindo. Britadeira. Miséria… Muita miséria. Mas sabe quando, finalmente, chega aquela hora da noite em que você encosta a cabeça no travesseiro para descansar, depois de um dia de trabalho e todos os perrengues que ele nos dá, e pensa “ufa, finamente”?! Mas aí, como que em simbiose com tudo que experimentou no dia, você não se permite parar… E sua cabeça não para de pensar. Pois é, minha noite foi assim.

Não parava de pensar na história que minha companheira havia me relatado no dia anterior. Ela me contou que viu uma cena na Linha Azul que foi chocante. Quando chegou na plataforma, viu dois seguranças do metrô carregando várias mochilas. A princípio, achou que eles deveriam estar chegando ou indo embora do trabalho, mas então percebeu que estes dois seguranças estavam falando de forma intimidadora e “peitando” um terceiro homem, que vestia roupas simples, não carregava nada nas mãos, era negro e não esboçava nenhuma agressividade, muito pelo contrário, estava visivelmente desnorteado.

Foi aí que minha companheira percebeu que aquelas mochilas não eram dos seguranças, mas do terceiro homem. Provavelmente, dentro delas deveria haver produtos e mercadorias que ele estava vendendo nos vagões, e que haviam sido confiscados pelos seguranças. A quantidade de pessoas que vendem qualquer coisa no metrô sempre foi grande. Chocolate, chiclete, bala de goma, fone de ouvido bluetooth, carregador de celular, carteira de couro, relógio, o boneco do Homem Aranha que se prende no vidro da janela e cai lentamente hipnotizando as crianças — e a mim também —, enfim, uma infinidade de coisas. Mas desde a pandemia, o número de pessoas que estão trabalhando informalmente no “metrô shopping” cresceu brutalmente. Segundo o IBGE, cerca de 368 mil brasileiros foram demitidos de trabalhos formais entre abril e junho de 2020. Por sua vez, o número de trabalhadores informais no Brasil chegou a 38 milhões de pessoas no terceiro trimestre de 2021; isso representa 40,6% da população ativa no período.

Com o aumento do número de ambulantes nos metrôs, cresceu também o número de apreensões. Só em 2021 foram apreendidos 28,1 mil produtos, número muito maior que em 2020, de 19,2 mil, e em 2019, de 20,4 mil, ano em que ainda não vivíamos a pandemia de COVID-19, mas em que a taxa de desemprego já estava elevada.

Para se ter uma noção, o capitalismo é tão escroto que o governo do Estado de São Paulo e o SEBRAE criaram um programa chamado “Nos Trilhos do Empreendedorismo”, que tem por objetivo promover a capacitação e geração de oportunidades para vendedores ambulantes que atuam informalmente na CPTM. O programa orienta como o ambulante pode formalizar o seu comércio e fornece as noções básicas de gestão para a condução de uma nova empresa.

Sim, o capitalismo chegou a esse nível de cinismo e o recado que nos manda é: se não quer ser um criminoso, seja uma empresa! O Direito circunscreve os limites do que é permitido, mesmo se essa fronteira estiver no interior de nossa alma. Estado e Capital seguem abraçados unidos pela fé, sem um o outro não dança a música louca da indústria cultural. Muito provavelmente, o terceiro homem da história da minha companheira não estava trabalhando legalmente, não era um empresário de si mesmo, por isso seus produtos foram apreendidos. O terceiro homem, desnorteado e humilhado por não poder ter sequer a dignidade de ser trabalhador — ainda que informal —, começou a se aproximar, lenta e assustadoramente, da beira da plataforma. Com o olhar vazio e perdido, observava o trem se aproximar e, então, no último momento, os dois seguranças o puxaram de sopetão e confiscaram a última mercadoria, sua vida. Naquele momento, ele ganhou mais uma chance de viver uma vida sem trabalho, sem dignidade — e sem a escolha de não querer vivê-la.

A fotografia usada para ilustrar este artigo pertence a Eddi Aguirre.

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